sábado, 8 de setembro de 2018

O fenômeno Bolsonaro e a iconoclastia dos tempos

O fenômeno Bolsonaro é, no mínimo, bastante significativo do nosso momento histórico. Surfa numa onda explosivamente iconoclasta, que quer acabar com tudo o que está aí, sem considerar que o deputado federal em Brasília há sete legislaturas é parte integrante desse "tudo-que-está-aí" - parte envolvida do chifre ao rabo.

A vontade desses fiéis seguidores é tacar fogo, destruir os vestígios, acabar com todo um passado e torná-lo cinza. Um procedimento que, por si só, não seria um problema: a História é constituída como a soma de diversos vetores de forças que são influenciados a cada instante pelas vontades coletivas, e coletivamente individuais. Mas é um arranjo por demais arriscado. Anda-se sobre o fio fino, e é necessário equilíbrio.

A destruição de ícones já foi explorada de outras maneiras, agora e aqui, e em outros momentos e longitudes. Penso primeiramente em Nietzsche, o filósofo do martelo, e o seu crepúsculo dos ídolos, com a sugestão de acabar com a profunda influência do cristianismo no Ocidente. Ou mesmo no sistema filosófico-religioso do Vedas, em que Shiva, um dos deuses da trimúrti, a santíssima trindade hinduísta, era o responsável pela destruição. Ou no Exu, das tradições afrodescendentes, que abre os caminhos, ou mesmo na sua influência mais direta: a das igrejas neopentecostais que vendem propostas de "desamarrar" o caminho do seguidor.

O que todos esses formatos têm em comum é a tentativa de, após a destruição, buscar uma reconstrução - seja da sociedade, seja do indivíduo [essa ficção] - em outros moldes. É necessário que um mundo "morra", passemos pelo luto, e então outro possa renascer. Os bolsominions, não. Parecem só querer o caos, o nada, o vazio completo. Um niilismo passivo e triste, ancorado numa busca eufórica pela celebração do nada, da ausência completa.

Claro, confrontados com algum tipo de dúvida, eles sugerem abstratamente refundar uma nova história, baseada num passado inventado, tentando espelhar uma identidade [o maior erro do Estado] almejada, de um homem rústico, macho, duro - afável apenas com os seus próximos mais próximos. É um personagem forjado numa "maioria" como ideal - e, sabemos, maiorias não existem.

Essa trajetória sugerida é completamente inventada e sem qualquer apoio na realidade factual. Um delírio, em outras palavras. Prova disso é pensar que os principais pilares de sustentação do Bolsonaro são o combate à corrupção [mesmo que Bolsonaro desvie verba de gabinete para assessores fantasmas]; o fim da chamada impunidade, por um ideal de segurança [mesmo com um discurso frontalmente contra pobres e segmentos periféricos da sociedade em geral]; e, por fim, e talvez o mais representativo desse niilismo passivo: a lacração. Bolsonaro falaria "verdades", sem se importar com o interlocutor [mesmo que essas "verdades" não sejam, enfim, verdades - como quando invariavelmente repete boatos tais como o do "kit gay"].

Por isso que foi tão impressionante o "confronto" com Bonner - quanto maior se sente e se coloca o adversário, melhor fica o meme do dia seguinte. Por isso, também, imagino, que Ciro tomou o caminho do não-confronto. Não há como, jogando o mesmo jogo dele, derrubar um personagem vivendo descolado da realidade. Por isso, ainda, que a "lacrada" de Marina sobre Bolsonaro foi tão celebrada - era uma outra forma de atacá-lo. Contra ele, Ciro deve diminuir o tom, Marina aumentar.

A transformação exaltada de um deputado medíocre em um messias dentro de um contexto em que o principal alvo é o caos, torna o próprio político um alvo da sanha criada pela sua turba. Bem diferentemente das acusações contra Lula, por exemplo. Quando o ex-presidente fala em "nós x eles", ele não está incentivando a violência, mas mostrando o abismo social bizarro existente. Ele está tirando o véu de sobre as violências cotidianas que o andar de cima já estala e sempre estalou nas costas daqueles da base da pirâmide socioeconômica. Por isso, qualquer tipo de comparação com Lula, ou a tentativa de dizer que estamos no meio de um redemoinho social, é, na melhor das intenções, a junção de pontas de cabos diferentes.

Sem querer culpar a própria vítima do ataque pelo próprio ataque [a vítima tem, no mínimo, a razão de querer continuar viva], não é possível almejar acabar com os ícones e, ao mesmo tempo, se tornar um. Não é possível usar tão e somente a linguagem da violência e querer escapar dela. Não cabe dar de ombros para atentados anteriores contra candidatos, para mortes de colegas deputadas, ignorar tragédias, quase comemorar a destruição de passados indesejados (por ele), propor fuzilamentos e limpezas étnicas, e querer ainda assim passar incólume dos ódios gerados por esses ódios. O alvo é colocado de volta bem no meio da barriga.

Que os atos dessa semana nos sirvam para minorar nossos discursos.

ps. não podemos mesmo reclamar de tédio em nossas campanhas políticas.

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