Todas as moedas que carregava no bolso caíram no chão ao passar da roleta. Rapidamente, se apressou para pegá-las e pagar o trocador. Era a final da copa do mundo e estava nervoso porque estava atrasado. Ou atrasado porque estava nervoso, não sabia ao certo. Tentou se lembrar se algo parecido já havia acontecido com ele em outra copa do mundo. Ficou matutando a idéia por alguns instantes até se sentar. Perguntou para Rodrigo, que estava ao seu lado, se ele se lembrava de algo. Rodrigo não respondeu nada de imediato, mas, passados alguns segundos, lembrou-se, Em 94, no jogo que o Brasil jogou melhor, contra a Holanda, perdi dez reais, eu achou que isso deve ser sorte para o Brasil. Deu uma pausa e continuou, Viu, agora o Brasil vai ganhar, não adianta você e suas mandingas contrárias, Fernando respondeu, Não é mandinga e você sabe, não estou torcendo contra o Brasil, apenas acho que em 98 foi a mesma coisa, esperávamos muito e perdemos na final, desde 70 que uma seleção não ganha a copa com 100% de aproveitamento. Ficou um silêncio entre os dois. E, Fernando completou, em 94, você perdeu o dinheiro após o jogo.
Eles iam ver o jogo na casa da Petra o que preocupava Fernando. Todos os jogos dessa copa, ele tinha visto em casa e só depois tinha saído. Rodrigo disse para Fernando, Não se preocupe, nós não vimos a final de 98 juntos, o que quer dizer que podemos ver os jogos juntos que não trará azar. No que Fernando respondeu de pronto, Nem a de 94, logo a sua teoria não tem nenhum sentido. Mas, retorquiu Rodrigo, em 94 nós nem nos conhecíamos. Fernando então balançou a cabeça e disse com ar tristonho, Mais um motivo, mais um motivo.
Rodrigo começou a ficar preocupado e olhou para Fernando que, por sua vez, olhava pela janela do ônibus para fora, para as pessoas na rua. Foi Fernando que cortou o silêncio dessa vez, Eu vejo essas pessoas na rua, parece até carnaval, todos pulando, todos em confraternização, será mais um ano de decepção. Deu uma pausa quase dramática quase cômica e continuou, Será que o povo não se cansa de se decepcionar? Rodrigo respondeu, Olhe, talvez a gente ganhe dessa vez, quem sabe? Não, Fernando disse secamente, acho que chegamos mais longe do que imaginávamos, A Alemanha, então nem se fala, ninguém achava que ela passaria das oitavas, Nesse caso é diferente, a Alemanha é um time de chegada que joga contra o favorito, como em 74.
Que horas são, impacientou-se Fernando para Rodrigo, Calma, são ainda, mexeu o braço, bateu no relógio, colocou-o no ouvido, Parou, falou Rodrigo com ar de surpresa, Como assim parou, Parou ora, parou, Não pode ser, o meu relógio quebrou durante a partida do Brasil contra a Argentina em 90, eu estava vendo o jogo com uns amigos na minha casa quando em um dos muitos gols perdidos pelo Muller eu bati com o punho na parede e quebrei o relógio. Fernando arriou a cabeça até a altura das mãos e começou a se descabelar. Peraí, disse Rodrigo, O camarada, dirigiu-se para um senhor grisalho de grandes bigodes brancos e boina que estava na sua frente com um radinho de pilha no ouvido e perguntou, Que horas são, hein amigo, São, o senhor respondeu com um sotaque português carregado, deixe-me ver, oito horas. Fernando levantou a cabeça e falou olhando para Rodrigo, Agora mais essa, encontramos um português que deve ser torcedor do Vasco e que tem síndrome de vice, fora que ele deve estar puto porque Portugal foi eliminada e deve estar torcendo contra o Brasil. O português grisalho que estava mais interessado no programa do rádio apenas olhou de rabo-de-olho para os dois e não disse nada. Já Rodrigo falou para Fernando, Calma Fernando, fale mais baixo porque senão seremos linchados aqui no ônibus.
Pelo menos se brigarmos, disse Fernando, O Brasil ganha. E completou, Em 92, quando o Flamengo foi penta, eu entrei na maior briga da minha vida, encontramos com alguns torcedores do Botafogo voltando para casa e ai foi uma porradaria do cacete, Não, a gente não pode brigar, disse Rodrigo, Como assim, Lembra em 95 quando o Fluminense foi campeão carioca em cima do seu Flamengo com o gol de barriga do Renato gaúcho, Lembro, claro, Pois bem, no brasileiro o Flu chegou nas semifinais e goleou o Santos aqui no Maracanã por 4 a 1, no jogo de volta podíamos perder por diferença de até dois gols que nos classificaríamos para a final, Rodrigo começou a se empolgar, aumentou o tom da voz, Peguei um ônibus da torcida organizada e fui, moleque, para São Paulo para comemorar a classificação do Flu, o resto você deve saber. Rodrigo dá uma pausa, olha para o chão rapidamente, levanta a cabeça e continua, Nem gosto de lembrar daquele Ale, Rodrigo dá um murro no banco da frente que chama a atenção dos passageiros, Tenho raiva até hoje do Joel por ter escalado aquele monstro para marcar o Giovanni. Dá uma segunda pausa, E para piorar, na saída do jogo, a torcida do Santos, que estava em maior número, meteu a porrada na gente.
Fez-se um pequeno silêncio. Fernando sacudia a perna impacientemente, o que contagiava, pela proximidade talvez, Rodrigo. Fernando perguntou, Que horas devem ser, Não sei, mas a gente salta no próximo ponto. Levantaram-se os dois e ambos fizeram sinal para o ônibus parar. Fernando desceu reclamando, Tomara que tenha poucas mulheres para ver o jogo, Que isso, Fernando, estou te estranhando, Cara, é final de copa do mundo, que pode demorar anos, décadas para acontecer de novo, há homens que nasceram, viveram e morreram e não viram uma só vez a seleção chegar lá, e, convenhamos, aturar mulher durante uma partida de futebol é dose, Ah, isso eu tenho que concordar, mas eu acho que você vai ficar um pouco decepcionado então, a Petra disse que chamaria várias amigas, Bem, já que é assim, é melhor então aproveitar as meninas. Ambos deram os primeiros sorrisos do dia.
Apertaram o botão do porteiro-eletrônico da casa da Petra. Ela morava em um condomínio de casas. A dela, em particular, tinha um quintal com uma pequena piscina e uma churrasqueira na parede. Era uma casa grande que cabia várias pessoas. Veriam o jogo na sala de estar, que era a maior da casa.
Antes de adentrar, porém, escutaram algumas vozes que vinham da sala. Era o irmão mais novo da Petra discutindo com a mãe, Oh mãe, você não pode tirar o sofá da sala assim, eu tenho que ver o jogo nele, se eu não assistir nele o Brasil vai perder, João Henrique, deixa de bobeira, eu tenho que tirar o sofá para dar mais espaço para todas as pessoas verem o jogo na sala, Mas mãe, se eu não assistir ao jogo daí de cima e o Brasil perder, vou me sentir culpado pela derrota pelos próximos quatro anos, Não adianta, João Henrique, eu vou tirar o sofá e pronto. Nesse momento Fernando entrou na casa e já começou a falar, Dona Janete, bom dia, desculpe me intrometer na conversa, mas acho de vital importância essa discussão, diria que é do interesse de toda a nação, eu acho que a senhora deveria reconsiderar a idéia de tirar o sofá da sala, Mas o espaço, replicou D. Janete, Ora, continuou Fernando, a senhora poderia colocar o sofá ali, e apontou para a entrada do corredor, assim o João Henrique poderá assistir ao jogo da maneira que ele precisa, No corredor, perguntou a mãe da Petra, Sim, em cima do sofá e no corredor, lembre-se de que esse ato poderá ser lembrado para sempre, Tudo bem, tudo bem, já que vocês insistem tanto. E o sofá ficou ali, no meio do caminho, atrapalhando todo mundo na passagem, com o João Henrique em cima durante todo o jogo.
Todos foram para a sala lotando-a. Eram quase vinte pessoas num espaço que caberiam apenas cinco, em dias normais. Mas era a final da copa do mundo. A seleção entra, se posiciona para ouvir o hino e então, a tv fica muda, O que houve, perguntou Rodrigo assustado, Vamos ver o jogo sem som, falou num tom de reclamação Fernando, É coisa do Matias, falou ironicamente lá do corredor João Henrique, Ele diz que a gente não deve escutar o jogo pela tv, mas pelo rádio para lembrar as copas de 58 e 62, Mas ele nem era vivo nessa época, falou Fernando, O meu amor diz que é para dar sorte, explicou Petra que estava agarrado no pescoço do Matias. Fernando então, cochichou no ouvido do Rodrigo, Que coisa estranha desse cara, hein, no que Rodrigo respondeu, E ainda namora a Petra, eu não gosto dele.
Começou o jogo e todo mundo escutando o jogo pelo rádio e vendo pela tv. As mulheres gritando e reclamando de toda bola perdida e os homens comendo todo o sabugo dos dedos. O jogo em si estava realmente tenso, com mais jogadas de perigo criadas pelo Brasil que pela Alemanha.
Fim do primeiro tempo, todo mundo se levanta e se encaminha para a cozinha passando por cima do João Henrique. Eis que Matias começa a falar em voz alta, Eu vi numa vidente na tv anteontem que o Brasil iria jogar melhor no primeiro tempo, até metendo uma bola na trave, mas terminaria no zero a zero. No segundo, o Brasil sairia na frente com um gol do Ronaldo e depois a Alemanha conseguiria virar com gols do Klose e do Bierhoff, numa falha bisonha do Lúcio, Fernando, muito nervoso, fala num canto da cozinha com Rodrigo, Esse cara é louco, fica agourando o Brasil, Rodrigo balança a cabeça confirmando a sentença.
Logo se escuta o João Henrique, Galera, vai começar o segundo tempo. Todos correm para as respectivas posições. E só a seleção ataca no recomeço do jogo. Logo sai o gol do Ronaldo e todo mundo se levanta e se abraça, mesmo não se conhecendo ou, quiçá, se gostando. Num canto da sala, dona Janete começa a pular sozinha com um terço na mão. Fernando pergunta para Petra, O que é isso, Minha mãe prometeu que a cada gol do Brasil ela iria pular e cantar o hino brasileiro segurando um terço, Ah, virando-se para Rodrigo completa, entendo. Matias que estava quieto na frente da Petra começa a falar quando o Bierhoff se aquece para entrar, Olha o que a vidente falou, olha o que a vidente falou. Fernando com voz baixa diz para Rodrigo, Se ele não parar eu vou meter a porrada nele, Não faz isso não porque assim o Brasil vai perder. Bierhoff entra no lugar do Klose e Fernando não se segura, E ai Matias, o que vai acontecer agora, O Bierhoff pode ainda fazer gol dele e o do Klose, responde de primeira calando-o. Fernando vira-se novamente para Rodrigo e cochicha mais uma vez, Cara, se o Brasil ganhar, eu juro que não vou torcer por futebol nos próximos quatro anos, Sshhh, responde Rodrigo porque Kléberson avançava pela lateral direita e cruza para o Rivaldo que abre as pernas deixando passar para o Ronaldo que chuta para o gol e marca novamente. Todos se abraçam, dona Janete pula com o terço na mão e Fernando aproveita a confusão para dar pequenos socos em Matias.
Quando todo mundo volta para a tensão normal da final, a sala fica num silêncio absurdo. Todos grudam os olhos na tv esperando do o rádio se escutasse o apito final. A bola vai para Denílson e o juiz pede a bola para encerrar. Todo mundo pulando, se abraçando, alguém pede para colocar na Globo para ouvir o Galvão gritando, É penta, todos vão para a rua do condomínio para celebrar quando, Matias reclama para Petra, Amor, estou sentindo umas dores na costela, e ela responde, Deve ser a tensão, querido.
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