Os defensores dos bairros proibidos
Gostaria que esse texto se transformasse, no futuro, em um primeiro capítulo dum grande livro em que contarei todas as minhas memórias em detalhes. Neste escrito, entretanto, não narrarei nenhuma das minhas façanhas, nenhuma das minhas missões civilizadoras, nada que eu tenha feito. Tentarei somente introduzir o conceito que me guia, aquele me torna um ser que existe para ajudar o próximo.
Se você está me lendo, já posso afirmar sem muita margem para erros, que somos seres especiais, únicos. É uma questão de estatística. Não tenho os números de cabeça, mas entre em um sítio de um instituto de pesquisa qualquer para saber quantos entre os habitantes desse país sabem ler e escrever. O número fica ainda menor quando peneiramos para aqueles que tem o hábito de ler livros ordinários. E, quer você queira ou não, tornamo-nos a elite quando compramos livros como o meu que, com certeza, não estará no hall dos mais vendidos. Por isso, acostume-se, você é um dos poucos.
Para comprovar a tese de que estamos no cume da montanha, posso afirmar sem nem ao menos lhe conhecer que, bem provavelmente, você fez alguma faculdade, ou está em curso agora. Eu, por exemplo, fiz engenharia. Poderia ter feito medicina, direito, administração, economia, nada iria mudar muito a minha formação. Você estudou num colégio particular – eu passei quinze anos num de freiras – ou nesses públicos que tem provas semelhantes a vestibulares. Ou seja, possui um bem que a grande maioria daqueles que tem a sua nacionalidade não tem: educação. Não tenho a menor idéia do que você fez com a sua, mas eu usei a minha para servir aos meus semelhantes.
Para fazer aquilo que faço hoje em dia, não precisei de nenhum grande trauma para mudar a minha vida. Isso só existe em filmes e nos piores manuais de psicologia. Apenas observei meus arredores e decidi que do jeito que estava, não dava mais. Não houve um estopim, algo fatídico, somente um amontoado de situações que tornaram toda a convivência impossível.
Tenho esposa, duas filhas, uma casa espaçosa e confortável perto da praia, um carro, minha mulher anda com outro, uma casa na serra e outra num balneário. Lutei muito para conseguir isso tudo. Trabalho desde os dezesseis anos na firma de construção que meu pai deixou para mim. Tripliquei o seu tamanho sem nunca ter entrado num “esquema” dessas (ditas) autoridades públicas. Ganho licitações apenas com o meu suor e esforço. Pago todos os meus impostos em dia e nunca, nunca na minha vida, subornei qualquer fiscal.
Porém essas mesmas autoridades públicas resolveram ignorar cidadãos de bem, como eu ou você. Aqueles porque nosso país sobrevive, agonizantemente, devo admitir, mas sobrevive. O descaso para conosco já é endêmico e nos últimos anos tem piorado cada vez mais. Há umas duas décadas, mais ou menos, a situação ficou insustentável. Conheço dezenas, não é um ou outro, mas dezenas de amigos, trabalhadores como eu, que empregam, por suas vezes, centenas de homens nas suas empresas, e que vivem numa total situação de esquizofrenia e mania de perseguição. Tudo por causa dessa escalada da violência.
Tentei evitar a citação direta desse termo porque parece que já está muito batido e perdeu todo o seu real peso. Por isso, alegarei que estamos vivendo em algo que chamo de “barco do medo”. Tentamos navegar nosso caminho em paz, porém somos sempre interceptados por piratas que enlevam nossos bens e aterrorizam nossas famílias. Isolamo-nos, então. E, como os responsáveis pela nossa segurança não tomam nenhum tipo de atitude, achei por bem que eu, cidadão em dia com as minhas obrigações e habitante do cume dessa nossa sociedade, deveria tentar da melhor forma, resolver esse problema.
Acreditava piamente antes de começar esse ofício que não conseguiria resolver em cem por cento dos casos essas atrocidades que nos rodeiam. A minha intenção nem era essa exatamente. Queria criar algum tipo de resistência em nosso gueto, uma espécie de redoma de proteção contra esse invasor que toma as nossas moradias e impede de fazermos aquilo que queremos na hora desejada. Todavia, os resultados vêm se mostrando mais prósperos que o esperado.
Vivemos isolados do mundo não por vontade, mas por necessidade. Vivemos numa espécie de roleta-russa onde, mais cedo ou tarde, seremos os sorteados. Vivemos rodeados por essa doença, por esse câncer que come a nossa sociedade e agora chegou ao núcleo, ao centro, à parte mais nobre. Ficarmos de braços cruzados seria como assinar um atestado de óbito de toda a civilização da maneira como nós a conhecemos. Tudo a nossa volta se transformaria numa guerrilha, de maneira ainda mais aberta do que hoje. Queria, com o que eu faço, mostrar que nós não estamos sozinhos, desprotegidos, que não será fácil para eles virem aqui e tirar de uma vez só tudo o que nós tivemos tanto trabalho para construir. E acho que estamos conseguindo.
No início era só eu. Pode parecer estranho que eu tenha tomado à frente da execução da parte braçal desse projeto. Porém, não queria contar com mais ninguém naquele momento. Acreditava que quanto menos pessoas soubessem do que acontecia, menor era a possibilidade de termos problemas. Por isso, nem para a minha mulher contei. Devo admitir, também, que o contato com o perigo era algo que me fascinava e foi ponto decisivo nessa atitude de atuar sozinho. Hoje, somos uma rede, pequena tenho certeza, de doze pessoas, sendo dez homens e duas mulheres que funciona eficientemente, de maneira constante e sem periodicidade. Todos pertencem às melhores famílias, com tradições, todos como eu e você, habitantes do topo.
Porém, mesmo respeitando o nosso código de sigilo, era inevitável que, com o tempo, soubessem das nossas atividades. O que mais me impressionou, entretanto, nesses anos de ações, foi exatamente a conivência da polícia para com nosso grupo. Nunca houve nenhuma investigação na nossa vizinhança, apesar de alguns pobres coitados que sempre berram pelos direitos dos inimigos. Esperneiam como se nós não tivéssemos defendendo os direitos deles também. Os casos são arquivados, ou simplesmente esquecidos. Nenhum dos nossos foi importunado nas suas missões e – o melhor – mantemos um relacionamento altamente produtivo com eles. O que, aliás, mostra que existe ainda o bom senso dentro daquela corporação.
Até o governador tem se aproveitado de nossos trabalhos. Vocês devem ter percebido que é constante a presença dele nos meios de comunicação para afirmar que nos nossos bairros, o índice de criminalidade é tão baixo quanto em países desenvolvidos. Obviamente nunca contou o real motivo disso e o relaciona a uma suspeita eficiência da polícia. Ótimo para nós.
Outro fator de interesse é o insignificante número de reclamações por desaparecimento, ou coisa parecida, nos órgãos competentes. Eles simplesmente somem e ninguém dá falta. O que nos leva a crer que o nosso trabalho é aceito e era necessário para a grande maioria dos nossos vizinhos e conta com o baixíssimo número de insatisfeitos. Porém, qual serviço que agrada a todos?
Hoje já criamos uma certa respeitabilidade. Os nossos bairros não sofrem tanto quanto antigamente, é perceptível. Há ainda casos isolados e imprevisíveis que fogem de nossa alçada, como os loucos de dentro da nossa própria vizinhança que praticam atos delinqüentes. Mas estamos estudando formas de resolver esses problemas também.
Mantemos, assim, operações de rotina e é cada vez mais raro termos que agir prontamente. Tentamos conservar o que é nosso para que nossos filhos e netos consigam desfrutar de toda a maravilha dos nossos bairros tranqüilamente, exatamente como era antigamente.
Eles estão aprendendo que devem viver bem longe daqui, nas suas casas, que se vierem para cá, não terão a moleza que existia antes. Hoje em dia, eles já sabem que há uma instituição muito mais organizada que eles e que existe apenas para proteger os nossos iguais. O recado está dado.
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