sábado, 29 de novembro de 2003

O menino, o homem.

Podia-se criar uma introdução mirabolante descrevendo climas e condições, podia-se detalhar a biografia das protagonistas, suas pretensões, linhagens genéticas e hereditárias; o fato é que Márcia e Sara viajavam nas suas férias rumo ao nordeste. É de bom tom dizer que se conheceram no trabalho, moravam em São Paulo e pertenciam ao gênero descoladas impulsivas aventureiras. Em novembro passado decidiram encarar a estrada pelo litoral brasileiro até o Ceará, parando em praias que chamassem a atenção, sem nenhum critério além da vontade pessoal instantânea. Hospedariam-se onde conseguissem e se alimentariam do que fosse possível. Queriam que esse período fosse inesquecível, mas nem nos melhores (ou piores, depende de quem o lê) devaneios poderiam supor o que aconteceu.

Sem muitos mais rípios – estes, porém, de caráter indispensável para o entendimento de todo o contexto – é melhor transportar nossas protagonistas para a cena onde toda a ação passa. Poderia tentar descrever a estrada com dezenas de impressionantes pores-do-sol, ou praias memoráveis de areias com variadas cores indo do branco cristal até o marrom cinzento, ou figuras típicas da beira de estrada, como andarilhos, donos de bares, ou frentistas, mas creio que as palavras perderiam em quase todas as classes para uma simples imagem, caso a tivesse. As descrições se apequenam e se perdem em resumos explicativos dispensáveis. Peço para o leitor, caso o haja, que imagine tais cenas da mais pertinente beleza e talvez consiga alcançá-las pelo caminho delas. Tentarei me ater aos fatos principais da narrativa.

Márcia e Sara pararam numa cidade ao norte do Espírito Santo, ou ao sul da Bahia, ninguém ali pôde informá-las com precisão, e elas não estavam realmente preocupadas nisso. Queriam apenas situar-se numa longitude para calcular suas previsões e a volta, já que tinham que estar no concreto e na fumaça e em ambientes fechados num mês. Rapidamente Márcia, que era a mais simpática, conseguiu quarto dentro de uma casa de pescadores para elas passarem a noite e decidiram dar uma volta pela cidade, mesmo que aparentemente não houvesse nada empolgante para as duas. Pararam num bar sem muros e de pés no calcário onde se sentia o cheiro característico da maresia indo e voltando de acordo com a lógica dos ventos. Poucas pessoas compunham a cena – na maioria pescadores em grupos ou com suas mulheres. Era, por assim dizer, um ambiente pouco familiar. Elas sentaram-se num extenso banco de madeira que combinava com a mesa onde seus cotovelos descansaram. Uma senhora gorda se aproximou e Sara pediu cerveja, no que Márcia sugeriu tomar algo mais forte, já que elas estavam de férias não precisavam se controlar; sugestão essa que foi seguramente aceita por Sara que solicitou então duas caipirinhas. A senhora gorda se afastou e foi apenas nesse momento que Márcia e Sara enxergaram os seus arredores. Márcia viu a praia, a pouca vegetação rasteira em cima dos pequenos montes laterais, as ondas abafadas pela ausência de luz, escutou as espumas se esvaecendo e voltando, depois olhou para as outras mesas e encontrou Sara fixamente parada numa específica, onde um garoto, um homem, provavelmente da idade delas (algo próximo pode-se sugerir), moreno, com o rosto coberto de uma pelugem grossa, negra e esporádica, solitariamente sentava. Márcia cutucou Sara no momento que chegava as caipirinhas, mas Sara nem se moveu; tinha se impressionado com aquele menino, com aquele homem sozinho acompanhado de uma garrafa de caninha e um copo americano.

Márcia já rememorava em voz perfeitamente audível algumas das passagens que ambas tinham presenciado, pois vocês sabem, a alegria existe em grande parte porque é compartilhada. Assim sente-se orgulho do feito que provavelmente você não se supunha capaz. Ou, na presença de estranhos, ou daqueles que não estiveram presentes no seu feito, é necessário provocar um pouco de inveja para que você se sinta confiante e uma pitada superior aos outros. O curioso é que Sara não prestava nenhuma atenção em Márcia. Seus olhos, ouvidos, nariz, pele, língua tinha dono naquele momento e é simplíssimo descobrir quem é. Com os olhos tracejados de linhas vermelhas e silenciosa como quase sempre, Sara se levantou surpreendendo Márcia e quem mais estivesse ali com as duas – se houvesse – e caminhou suavemente na direção do menino, do homem. Márcia parou a frase no meio de uma palavra cortada pela garganta e esperou o fim daquele ato impulsivo da amiga. Sara parou em frente ao garoto, ao homem, e o cumprimentou; ele levantou a cabeça quieto, Sara sorriu e perguntou se podia sentar, ele autorizou, já com a cabeça baixa. Ela montou no banco como se o fizesse numa égua corpulenta e apoiou ambos os braços sobre a mesa segurando o queixo, nitidamente silenciosa, com óbvia comunicação. O rapaz, o homem, era extremamente bonito, ela não conseguia parar de pensar nisso e começou a fazer notas mentais para poder lembrar em outro dia: tem os olhos negros, a pele curtida do sol, o cabelo desgrenhados que combinava em cor com os olhos, as roupas já esfarrapadas e um corpo musculoso. O rapaz, o homem, parecia que não se importava muito com a aparência, e talvez tenha sido isso que alimentou a vontade de Sara de estar ali. “Talvez” porque nunca o saberemos, provavelmente nem a própria saiba o motivo exato dela ter tomado aquela atitude; é sabido a total ineficiência da decodificação de atitudes impensáveis.

Sara reparou em suas mãos e tentou criar em imagens qual seria o trabalho dele para poder possuir tamanhos calos e nessa hora fez essa pergunta de maneira direta, antes mesmo de sugerir seu nome. Com sua resposta curta (“Pescador”), ela se recompôs e esticou a mão direita para apertar a dele e só agora se apresentou. O toque com a mão dele foi tão rápido quanto as outras respostas de Jonas – este era o seu nome – porém, para Sara, bem, para Sara, acredito que nem é necessário descrever o que Sara sentiu ao segurar sua mão. Se for desejável, podemos sugerir que ela sentiu um vento ligeiro e gelado passar por suas entranhas mais profundas que a fez arrepiar. Jonas virava a cachaça como um menino ao beber água, como um homem de anos acostumado com a rotina de águas ardentes. Sem nenhuma explicação – e não serei eu ou você que conseguirá encontrar alguma, mesmo porque há a probabilidade concreta desta não existir de maneira como estamos acostumados – Jonas simplesmente falou. Estavam os dois há milênios parados, Sara sem perceber o tempo, Jonas nitidamente incomodado com aquela mulher ali em sua frente, e Jonas começa a falar. Primeiro diz que não gosta do lugar onde estavam. Não conhecia ninguém ali, mas preferia este bar ao outro porque assim poderia ficar sozinho. Exatamente o que ele queria, não ver nenhuma cara – palavras dele – conhecida. Sara pôde agora olhar fixamente dentro dos glóbulos oculares quase mergulhando neles e foi perceptível quando ela deu uma suspirada profunda e ficou praticamente em transe com o menino, com o homem a sua frente.

“Ta vendo isso aqui”, disse Jonas ao apontar para uma cicatriz profunda e recente na bochecha direita, “foi da última vez que encontrei com o Manel e os outros”. Sara não conteve sua imaginação e foi parar na cena que Jonas descrevia. Avistou o menino, o homem com os punhos erguidos e distribuindo socos por entre homens quando é atingido por uma facada traiçoeira no rosto. O que é válido ressaltar é que Jonas ainda não começara sua descrição. O menino, o homem não chegou a parar de falar, entretanto, como bem sabemos, a velocidade do que queremos enxergar para aquilo que realmente é, difere e muito. Assim Jonas falava: “Manel começou a me chamar de florzinha, de fresco e eu disse ‘Manel pára com isso ou eu’, e ele perguntou: ‘Ou você o que?’, e foi então que eu peguei a faca na mão...” – Sara não se agüentava, metade explodia, metade morria a medida que a narração se incrementava – “e apontei para ele assim”. Jonas empunhava o americano com um dedo de branquinha dentro e olhou para o horizonte e em seguida aquietou-se. Não falava com Sara, falava com o espaço vazio, falava com o que estivesse na sua frente. Ele voltou-se diretamente para Sara que já duvidava de sua própria existência terrena e sussurrou num tom próximo do inaudível: “Eles dizem que eu sou flozô porque eu não gosto das coisas que eles gostam, porque eu sou diferente” e nessa hora Sara rodopiou o rosto procurando comparações e anotou os outros pescadores, gordos, barulhentos, nojentos. Sentiu proporcionalmente uma ojeriza por todos e uma quentura sem tamanho por Jonas que subiu debaixo e atrás do estômago até o peito e a garganta e não conteve o sorriso para o menino, para o homem. Era nítido – na falta de palavra melhor – que ele não era daquele tempo físico, bastava sentir sua aura por frações e compará-la. Sara teve a mais absoluta das certezas que já tivera em todos os seus vinte e cinco anos de existência que Jonas era a criatura mais bela que encontrara, nada poderia se aproximar dele. Criteriosa como ela era, e para não fazer nenhuma injustiça consigo mesma, procurou, em vão, alguma outra forma que lhe proporcionasse tamanho prazer. Jonas era tudo o que ela sentia com todos os seus sentidos. Jonas, apesar de não parecer, continuava a falar: “E foi então que eu me rasguei”, e quebrou o americano em cima da mesa. O sangue borbulhava e Sara levantou-se para socorrê-lo. Jonas imóvel estava, imóvel continuou por alguns instantes, enquanto ela pegou um pano, de não sei onde, e tentou estancar o líquido vermelho. Ao seu lado, Jonas sentiu o seio esquerdo de Sara tocar-lhe as costas e não conseguiu – apesar das insistentes tentativas – ficar impassível. Agarrou todo o corpo de Sara e fê-la sentar em seu colo, calando-a com sua boca (no caso dela ter a intenção de reclamar, algo que sabemos, nem passava perto dela).

Márcia dormiu sozinha na cabana. Nem é necessário contar que Sara acompanharia o menino, o homem até onde quer que ele a levasse. Jonas era extremamente nervoso, apesar da vasta quantidade de fêmeas que já tivera, e resvalava na grosseria dentre quatro paredes. Sara, em determinado momento, enquanto estava por cima, parou todo o movimento do companheiro, abaixou-se e cochichou, entremeados por carícias, uma única palavra que fez toda a diferença para Jonas: “Calma”. Não que ela preferisse uma ou outra tática; por isso mesmo, certamente – por não ter nenhuma preferência – ela queria que Jonas fosse o pescador e também fosse um lorde, ela queria que ele se adaptasse a qualquer variação do jogo.

Não se sabe ao certo se esse detalhe tenha acontecido exatamente na primeira noite em que passaram juntos. Eu apostaria que não, já que as indicações não apresentam um menino, um homem que desse algum tipo de confiança maior para sua mulher logo ao conhecê-la. O certo é que Sara ficou um tempo acima do esperado neste vilarejo e nós bem sabemos disso.

Um dia, uma noite, uma manhã, quiçá a mesma, Jonas estava ainda nu e sentado na beira da cama que dividiam e, novamente sem nenhuma explicação, se virou para Sara e abriu-lhe mais um segrego. Confidenciou, de costas para Sara, que ela era diferente de todas as outras. Já tinha conhecido muitas, todas as do lugar – sem nenhum traço de exagero aqui – elas sempre preferiam Jonas aos maridos e namorados, e eles não suspeitavam de nada. Porém, “elas aparecem, deitam na cama, depois que acabam, se levantam e vão embora”, como ele mesmo disse. Jonas tapou o próprio rosto e por um segundo ou dois, Sara poderia jurar que ele chorava. Depois não teve tanta certeza, Jonas voltou com raiva, levantou uma mão para Sara e a estancou no ar. Sara não se mexera. Jonas paralisou-se, congelado pela coragem que transbordava de sua mulher. Ele se levantou da cama e saiu batendo a porta.

Então, numa conversa que tiveram Sara e Márcia, aquela se lembrou quem era e o que fazia ali. Ficou um pouco constrangida, por estar tanto tempo presa num vilarejo, desperdiçando (foi a expressão que ela utilizou) suas únicas férias no ano. Nessa mesma tarde, deixaram todo o dinheiro equivalente ao quarto em cima de uma prosaica mesa de cabeceira e mais um pouco e não foi mais possível encontrar as forasteiras no vilarejo. Até uma nuvem de poeira apareceu por ocasião da saída apressada delas.

Agora acredito que deveria narrar o resto da viagem, sua subida, a passagem por todos os estados do Nordeste; no entanto se tivesse que contar o que passava por Sara, deveria parar de teclar e deixar o papel em branco. Foi perceptível até para o mais desconhecido sua falta de luz após a saída do vilarejo. Uma das cenas que mais se repetiram era dela apoiada com o braço para o lado de fora do carro, de óculos escuros e tomando lufadas e lufadas de ar no rosto.

Até o porto final, Márcia não perguntou nada para Sara; numa praia lotada, com o sol perpendicular à terra, com o silêncio pesando entre as duas, sugeriu fugazmente voltarem para o vilarejo, assim, como quem pergunta se aceita mais um pouco de cerveja. Sara tentou falar e gaguejou e desistiu e abraçou Márcia. Esta, para falar a verdade, também preferia aquela pequena praia. Por razões diversas – e nem tanto – ela não achava que seria uma grande concessão voltar para o pequeno povoado de pescadores, completamente isolado do mundo e desconhecido de sua existência.

Na volta, Sara já não era a mesma Sara que viera para Fortaleza. Empolgava-se com o menor vestígio de explosão, tentava diminuir o percurso e o tempo. Avistaram (para encurtar toda a parte inútil da história}as casas paralelas umas às outras feitas de pau-a-pique, o terreno arenoso barrento e a cabana onde Sara passou a maioria de seu tempo livre. Não, não pense o leitor que Sara estava – na ausência de palavra mais conclusiva – perdida por Jonas, que até eu acredito que estava; mas não seria do feitio dela, tão liberal, tão independente, voltar por causa de uma paixão. Pelo contrário. Quereria distanciar-se no máximo possível do sujeito para não construir nenhum tipo de laço e manter a vivência exatamente como não-programado. O que a devolveu foi – e posso assegurar – um sentimento de culpa. Acredito que a culpa ainda está entranhada na frente nos pulmões, atrás do esterno, da maioria das mulheres e de alguns homens. Mesmo que se vendam como agnósticos, ou até ateus, são dois mil anos de diversas razões para povoar as menos neuróticas mentes e fazê-las penitentes.

Ela tentou empurrar a porta depois de ter batido duas ou três vezes em sua madeira carcomida pela maresia, porém algo impedia de abri-la. Depois de quinze, vinte minutos e olhar pela janela embaçada, optou por outra tática. Dirigiram por toda a pequenina cidade até o bar onde todo o problema (ou solução) começara, e ele também não estava. Márcia alegou cansaço e pediu para que adiassem essa busca para um pouco mais de noite, Sara assentiu, porém não segurou nem sua cabeça que escapuliu e a levou para andar por entre as pequenas ruelas.

E nada. Parecia que todo o esforço escoava pelos bueiros abertos e entupidos da viela. O céu cinzento pré-anunciava o inevitável e ela sentiu uma sombra de mesma cor tomar parte de sua alma. Resolveu isolar-se na praia; sentou na areia amarrou as pernas com os próprios braços e enfiou o rosto entre os joelhos. Assim permaneceu por dois séculos.

Já bem escuro, desistiu de dormir na praia e iria para a cabana. O que a impediu não deve ser surpresa para ninguém, nem era a minha intenção provocar qualquer tipo de reação desse calibre. Pelo contrário, quem acreditar em algo tão absurdo e concreto como o destino, já estava esperando que tal situação acontecesse e até me rogaria algo próximo de uma praga caso tal sentimento fosse frustrado, mesmo que o rumo dos acontecimentos esteja para muito longe da minha vontade. Espectadores não acreditam no caráter imprevisível de narrativas, sempre precisam da segurança do final esperado para não se decepcionarem.

O que talvez seja novidade (mas não tanta, asseguro) foi que Sara quase tropeçou no menino, no homem. Pode parecer exagero, e de fato o é; Jonas estava desmaiado com a cabeça enfiada no barro, perto de uma poça, sujo e roto de maneira que ela quase não o reconheceu. Empurrou seu corpo até emborcá-lo de barriga para cima e mapeou mentalmente o que lhe chamou a atenção. O cabelo fora cortado de maneira desordenada, até o coro cabeludo, com manchas de sangue pisado e seco; o rosto possuía hematomas de diferentes tamanhos, cores e formatos; o incisivo e o canino superior esquerdo, e todos os molares e pré-molares desapareceram; havia uma enorme cicatriz que transpassava o olho direito. Sara o abraçou e não se conteve; balançou chorosa seu corpo e o dele num compasso de música que só ela escutava, assim como mães desesperadas fazem com seus filhos indefesos.

“Fui eu que fiz, fui eu que fiz”, ele se mirava num vidro manchado que deve ter sido um espelho há algumas décadas atrás, no dia seguinte. Sara com olheiras que quase cobriam todo o rosto, bocejou aproximando-se dele de joelhos um “por que? Por que você fez isso?”, no que ele ficou alguns instantes quieto, depois explicou que assim, as mulheres o abandonariam porque ele seria mais um homem igual aos outros e novamente Sara colocou a cabeça de Jonas em seu peito e o ninava, com carinhos esporádicos pela cabeça. “Agora eu pareço com eles, agora eu sou que nem eles, agora elas não vão voltar”.

(In) felizmente Sara não podia ficar muito tempo dessa vez. Logo o mês de novembro findaria e o trabalho urge. Nesse período, porém, Jonas estabilizou-se em casa, enclausurando-se como se fosse um condenado à perpétua. Sara passou grande parte de sua estadia ali, junto com ele, mas comunicou-lhe que teria que ir embora. Contataria-o assim que pudesse, antes mesmo de voltar a ser apenas mais uma paulistana. Jonas não demonstrou nenhum traço de animosidade nem de relevância sobre as palavras que vieram flanando até atingi-lo como uma bigorna. Respondeu apenas que ela era diferente, o que fê-la chorar copiosamente por horas abraçada a ele.

A despedida foi rápida, quase indolor, principalmente por parte do menino, do homem. Ele ficou imóvel quando ela a beijou. Jonas olhava para ela friamente e calculou todas as suas ações naquela tarde vermelha. Sara apenas desmanchou-se no carro. Não queria demonstrar nada para Jonas. Tinha a intenção de parecer superior a tudo o que ela presenciou na carne a na alma. Foi inútil, porém.

De volta a capital, Sara ligou de maneira empolgada para o único estabelecimento perto da casa de Jonas. Atendeu a velha gorda que aparecera no início de todo esse relato. Sara, obviamente, perguntou por Jonas e a gorda respondeu, assim, rispidamente, prática, direta e sem nenhum tipo de preleção que ele tinha morrido. Sara deu um grito (que parecia só existir em filmes com péssimas atrizes) e desligou em seguida. Do lado da gorda, o telefone tocou quatro minutos depois com Sara novamente, já com a voz embargada a inquirir por detalhes. A gorda explicou que o menino, o homem voltara a freqüentar o bar e brigava diariamente. Num dia sumiu e o encontraram com a garganta rasgada. Ela não tem certeza se ele morreu ou foi morto. Sara já não escutava nada, o fone caíra de sua mão e só não bateu no chão porque ficou preso em seu ombro.

Sem mais informação, porque tudo o que devia ser contado já o foi, basta-me narrar que Sara não voltou mais ao vilarejo, como era de se esperar de qualquer pessoa. Não modificou sua vida de maneira a surpreender as pessoas; só achava que aquele menino, aquele homem era o mais bonito que tinha visto na vida. E provavelmente nunca mais ia se deparar com algo tão vivo e verdadeiro pelo resto de sua existência.

sábado, 22 de novembro de 2003

olho em minha volta e só vislumbro uma mar calmo e plácido e azul onde os companheiros de meus pés são peixes coloridos e pacíficos e a única coisa que penso é que gostaria de estar numa festa de rock, escutando os impropérios de mister franck black, como os personagens de winterbottom que presenciaram o show de sid vicious e cia. e mudaram suas vidas com pulos ritmados. Acho que quero estar numa festa de rock agora e talvez não queira daqui a dois minutos como não queria, certamente, há algumas décadas atrás. talvez só queira mudar um pouco os ares, sair desse calmo e correto de dentro das expectativas, da projeção do homem de bermudas brancas passeando com o seu cão labrador pelos bosques do flamengo num domingo ensolarado. só quero estar numa festa de rock para poder respirar um pouco o ar de novidade - mesmo que as novidades estejam revestidas numa capa de vinte e poucos anos até - só quero para sentir a energia gritar pelos poros até não poder mais. Só quero para me sentir vivo, como carne e sangue, como algo que não se demonstra previsível, só para depois ter saudade da normalidade e do meu cotidiano comum e extremamente chato e enfadonho. só quero para enxergar a podridão e sentir o cheiro do sujo e chafurdar como num home sweet 'lone.

queria saber se um dia iria parar de me preocupar e me citar nessas linhas. queria saber se um dia vou me encontrar aqui e não outrem. queria saber se eu existo ou se é apenas a projeção de um mundo que sempre me chama de volta para sua vivência.

outro dia acabo com isso. o mundo comum toca a campainha.

sexta-feira, 14 de novembro de 2003

triálogos

- E não é que o Rafael voltou com a Elisa?

Dois amigos que dividem apartamento sentados na areia da praia, um segurando os joelhos, outro observando o passeio de meninas cada vez mais novas, conversam. O da direita, Téo, anda ríspido ultimamente. Não agüenta mais a vida que o da esquerda, Gera, leva. Este acorda todos os dias e abandona o corpo na frente da tevê. Só se permite levantar quando é hora da faculdade, ou para fazer algo pouco produtivo. Téo trabalha desde moleque, nunca conseguiu parar, “eu me tornaria um inútil”, ele pensa. Gera diz que se ralar, assim, desse jeito, só quando acabar a faculdade.

- O Rafael não tem jeito.

Téo acorda cedo e sempre dá de cara com as cuecas de Gera pela sala. Um dia, achou uma meia no lustre. Gera se alimenta de fast-food diariamente, o outro é vegetariano. Téo se levanta uma hora antes do necessário para chegar no trabalho, toma um banho rápido, mas frio porque “faz bem”, se arruma com aprumo, roupas de marca, camisas de botão, calças de prega e vai para a empresa. Gera demora horas no banho fervente, afirma que é a melhor hora para ficar sozinho consigo mesmo, pega roupas aleatórias, amassadas, as coloca sobre o corpo e sai para qualquer que seja o programa.

- E não adianta contar para ele que a Elisa não gosta dele.

Gera tem uma namorada que praticamente mora com os dois. Mônica é o nome dela. Téo é sozinho. Anda com várias meninas, mas nunca ficou com uma por muito tempo. Téo implica com Mônica porque ela encobre as “qualidades” de Gera. Quando ele deixou de pagar a conta de luz por dois meses, e a cortaram, Mônica disse que não tinha problema, que luz de velas era mais romântico. Téo ficou semanas sem falar com ela. Gera demorou ainda uma quinzena para pedir para religar.

- Lembra da última vez. A Elisa brigou com o Rafael e voltou com o ex-namorado. O Rafael ficou na merda completa. Depois de um mês, eu acho, ela brigou com esse ex-namorado e voltou com o Rafael.

Os dois foram morar juntos porque, na época, eram os melhores amigos. Vinham de uma cidade no interior, começavam na faculdade e as famílias se propuseram a bancar um apartamento para ambos. Assim que aportaram na capital, Téo foi em shoppings com sua pequena história debaixo do braço e conseguiu, depois de bastante andança, trabalho de balconista. Gera nunca se importou com isso. Diz que o pai se sente satisfeito em bancar seus estudos e acha isso o suficiente.

- Eu lembro que o Rafael ficou mal para cacete. Essa mulher também é foda. Só gosta de sacanear com o Careca. Ela usa ele.

Gera faz administração, Téo publicidade. Téo gosta de praia, Gera da vida noturna. Téo fez natação, judô, basquete. Gera entrou para o jiu-jitsu porque todo mundo fazia, mas nunca treinou direito. Os dois saíam juntos todas às vezes. Era Téo que segurava a onda de Gera nas brigas que este arranjava. A irmã de Gera foi a primeira namorada de Téo, fumaram o primeiro baseado juntos, ambos freqüentam o cinema, gostam de quadrinhos e rock. Foi de Téo a idéia de irem à praia.

- Pois é. A Elisa não presta.

Téo pensa seriamente em procurar outra casa. Só que sente um certo vínculo com Gera, acha que se ele sair de lá, o amigo não conseguirá sobreviver muito tempo no apartamento. Téo já meteu o dedo na cara de Gera inúmeras vezes, mas Gera sempre pergunta que é o Téo para lhe dar lição de moral. Téo acha que Gera está desperdiçando um talento, ele acha que o amigo é criativo - os dois brincam de fazer roteiros para clipes imaginários - poderia estar se arranjando dentro de alguma empresa, ganhando dinheiro. Gera nunca parou para pensar sobre Téo. Para falar a verdade, Gera raramente reflete sobre assuntos sérios, somente quando alguém o pergunta diretamente.

- E nem adianta falar com o Rafael.
- Nem adianta.

quinta-feira, 13 de novembro de 2003

Gargalhada

O homem se sentiu estranho quando não riu durante toda a encenação. Depois, na rua, quando sua mulher lhe perguntou se havia gostado da peça, ele não teve coragem de dizer que a única coisa que passava em sua cabeça durante a peça era estar o mais distante dali que pudesse, ou que aquele suplício acabasse o mais rápido possível. Se sentia numa tortura oriental onde cada segundo é revestido de todo o cuidado para ser inesquecivelmente doloroso. No dia seguinte, no trabalho, a situação foi ainda mais embaraçosa. Ao apanhar um café para tomar, encontrou um daqueles colegas piadistas que se sentem engraçados na saída do banheiro. Miguel tomava seu café e continuou virando o copo mesmo vazio para acompanhar o sujeito. Repentinamente, o piadista parou de falar e esperou que explodisse a gargalhada do outro. Miguel rasgara o pequeno copo na tentativa de prestar atenção, contudo não conseguiu achar a graça daquela história absurda e grotesca. Sorriu a contragosto, mas o sujeito percebera a falsidade estampada no seu rosto. O falastrão ainda repetiu o final com outra entonação, para ver se conseguia arrancar dessa vez, mesmo que a força, algum tipo sincero. Nada. O meio sorriso não se abalara, não se movera nem um centímetro. O sujeito deu as costas e saiu quieto e perturbado.

A confirmação, como em qualquer outra experiência ou situação, veio com o terceiro incidente. Em casa, na mesa do jantar, o filho contava como tinha sido o dia e todos ao redor da mesa, acompanhavam-no. Menos Miguel que olhava burocraticamente para o garoto de quatorze anos. Quando ele terminou de falar, a mãe e irmã riram com vontade. Miguel deu apenas mais uma garfada em seu purê. O menino, ansioso por algum tipo de aprovação por parte do pai, inquiriu diretamente se havia algum problema com ele, o filho. Miguel mastigava e enquanto os dentes esmagavam o pedaço de frango que estava na boca pôde ter um pensamento rápido sobre se havia alguma coisa errada com ele. Claro que tinha ficado mais que constrangido quando não conseguiu rir verdadeiramente na presença do gaiato no trabalho. E também tinha achado estranho não rir na peça com a mulher. Mas não tinha feito nenhuma ligação entre tais fatos até aquele momento. Parecia que estava cotidiano – como deve ser, argumentava consigo mesmo. Começou a vasculhar rapidamente por toda a memória se havia ocorrido algum tipo de incidente que o fizera mudar de humor nas últimas semanas. Porém, o frango já tinha se desmanchado completamente na boca e teve que responder para o filho que tinha adorado sua história e não, não tinha problema nenhum com ele.

No bar de todas as quintas, seus amigos gargalhavam de qualquer coisa na mesma intensidade que Miguel afundava sozinho nos seus pensamentos. Tentava lembrar da última vez que rira e a lembrança não vinha. Voltou muito tempo atrás e conseguiu enxergar que ria mesmo em conversas bobas com a mulher, na época de namorados. Recordou que sorriu até chorar no dia que seu filho nasceu; pode observar que gargalhava nessa mesma reunião que estava, há anos atrás, quando esta começou. Entretanto ultimamente, tinha um pedaço enorme de sua memória contaminada com uma tinta azul-cinzenta. O pensamento de que ele era um amargurado com a vida passou como um elefante pela sua cabeça. Tratou de se convencer de que gostava de sua vida da maneira como ela era, e obteve resultados positivos. Sabia que sua vida não era brilhante, mas nunca teve a pretensão de ter uma vida mirabolante e de dar inveja nos amigos. E o seu caso, repetia para si, não era de falta de aventuras, mas de ausência de risos, em todos os seus formatos. Nessa etapa do pensamento foi interrompido por um amigo que estava no seu lado perguntando quem era a dona de seus pensamentos para ele poder ignorar dessa maneira seus camaradas.

Recusou a carona de volta naquele dia e pegou um ônibus com o argumento de que precisava passar na locadora. Sentou-se num banco sozinho, mas logo uma senhora gorda ocupou todo o lugar que sobrara e mais um pouco. Fez um esforço enorme e logo conseguiu voltar para as suas recordações. Estava empenhado em organizar uma lista com alguns títulos de filmes que o fizeram rir com muita vontade quando vistos pela primeira vez. Os primeiros que vieram foram as paródias pastelões. Apertem os cintos o piloto sumiu, Top Secret. Depois não houve nenhum mais. Foi para o outro lado do Atlântico e lembrou que riu de algumas cenas de Monthy Pyton e o cálice sagrado. Porém, achou A vida de Brian chato. O mesmo aconteceu com Monicelli, achara Os companheiros, engraçado, mas Brancaleone apenas passava de ser entediante. Pensou em Woody Allen. Sempre provocava, pelo menos, pequenas mudanças nas configurações de sua boca. Nunca dera uma gargalhada, mas nessas circunstâncias, já era uma vantagem.

A fita rebobinava e Miguel concluiu que Crimes e Pecados não tem o mesmo impacto ao ser revisto. Então entendeu que o filme ao ser assistido mais de uma vez não traz a mesma surpresa. E quanto mais repete as mesmas cenas, com os mesmos enredos, as mesmas falas, tudo se torna previsível e chato. Sua mulher entra no quarto exatamente nessa parte do seu raciocínio e pergunta o que ele faz ali. Ele levanta a capa do vhs e sai do quarto antes que ela possa lhe perguntar alguma coisa.

Não agüentava acordar todos os dias no mesmo horário e dar os mesmos bons-dias que dera ontem e anteontem. Ou estar há anos criando os mesmos relatórios no seu trabalho sem que ninguém reparasse. Ter que repetir as mesmas frases que ouvira do pai para o filho como uma canal direto, sem nenhuma modificação no timbre da voz e sem ter a menor idéia de que isso é o correto. O pior, disse para si mesmo, é que se tivesse a coragem de remexer o marasmo que imperava no seu cotidiano, atingiria pessoas que não pediram nem queriam estar em tal situação. Viu-se assim nitidamente amarrado em cima de uma cadeira, com as mãos às costas, a boca amordaçada e os olhos vendados e pela primeira vez sentiu um gosto amargo subir de dentro de suas entranhas à garganta até a boca e teve uma ânsia de vômito. Cuspiu na pia do banheiro um líquido viscoso esbranquiçado e doente.

A partir daquele dia, desistiu de procurar qualquer tipo de motivação para se sentir feliz. Resolveu se enclausurar dentro de si até o dia que tal tormento acabasse, de qualquer forma imprevista. Havia antevisto o infinito com torturas diárias. A cada pergunta típica da idade do filho, cada vez que ligasse o computador no trabalho ou apagasse a luz no quarto para dormir, descobriria que mais um pedaço dele estaria podre e inutilizável. Já não conseguia usar a razão para desvendar uma trilha para fora desse labirinto. A única resposta que a cabeça lhe dava era fugir, sumir, desaparecer, se transformar em lembranças cada vez mais distantes para aqueles que tiveram algum tipo de contato com ele. Mas se sentia covarde demais para tomar tamanho impulso. Observava suas asas e não as considerava grandes o suficiente para poder voar o percurso que se propunha, muito menos carregar outros pesos. Em nenhum momento considerou que as pessoas envolvidas pudessem, também, estar insatisfeitas com o barro que os cercavam. Assim, Miguel manteve suas tarefas sem aparentar nenhuma presença ou iluminação.

Aquele dia pareceria comum. E o era, e não mudará pelo que vai ser contado. Ninguém sentiu a diferença, nem mesmo a outra parte dos envolvidos no caso. Apenas achou algo estranho, comentou com a mulher em casa, e em poucas semanas já havia esquecido e a substituído por outra lembrança ainda mais fugaz. Naquele dia, Miguel chegou às oito horas e treze minutos no trabalho, adiantado como ocorrera em todas as oportunidades do mês corrente. Seu chefe se aproximou e tocou carinhosamente em seu ombro chamando-o para sua sala, pois tinham que conversar. Miguel, exatamente como um robô faria, se levantou e seguiu passo a passo o chefe até o aquário. Lá dentro o chefe apontou a cadeira que Miguel estava autorizado a sentar e ele se sentiu dormente, escutava um zumbido no ouvido que deixava a voz do chefe num volume baixíssimo, e enxergava tudo em volta do interlocutor embaçado, como se, dessa forma, pudesse enxergar algum tipo de aura. O chefe falava monocordicamente e Miguel só conseguiu captar algumas frases salpicadas aqui e ali. Escutava “empresa vendida”, “grupo japonês”, “downsizing”, “funções desnecessárias”, “capacitações técnicas” e só conseguiu conter uma gargalhada depois dela ter escapado. A conversa cresceu em peso e densidade, o chefe falava agora mais claro e mais pausado e continuava “falta de motivação”, “qualidade técnica”, “gostamos de você, mas” e Miguel riu novamente em voz alta e tapou a boca com a mão logo em seguida. O chefe parou de discursar e perguntou se ele estava bem, Miguel respondeu que sim, que estava, e então continuou. Miguel sentiu um soluço aportar dentro do seu peito e não pôde conter vários solavancos do corpo. A cada golfada sentia expelir algo inominável e impossível de ser codificado que desintoxicava seu corpo e em certo momento, já ignorando completamente o que o chefe falava, apenas por se sentir bem, bem demais, gargalhou com todos os dentes aparecendo, mostrando o palato mole e o duro, a garganta vermelha e quase todo a laringe. Segurava a barriga, pois tinha a impressão que iria explodir, as bochechas estavam com câimbras e os olhos lacrimejavam. Quando voltou a si, o chefe estava ao lado gritando seu nome e alguns transeuntes parados do lado de fora da sala observando a cômica cena. O chefe, então, reperguntou se ele estava bem, no que Miguel não respondeu. Apenas sorriu sinceramente do fundo do seu coração.