quinta-feira, 13 de novembro de 2003

Gargalhada

O homem se sentiu estranho quando não riu durante toda a encenação. Depois, na rua, quando sua mulher lhe perguntou se havia gostado da peça, ele não teve coragem de dizer que a única coisa que passava em sua cabeça durante a peça era estar o mais distante dali que pudesse, ou que aquele suplício acabasse o mais rápido possível. Se sentia numa tortura oriental onde cada segundo é revestido de todo o cuidado para ser inesquecivelmente doloroso. No dia seguinte, no trabalho, a situação foi ainda mais embaraçosa. Ao apanhar um café para tomar, encontrou um daqueles colegas piadistas que se sentem engraçados na saída do banheiro. Miguel tomava seu café e continuou virando o copo mesmo vazio para acompanhar o sujeito. Repentinamente, o piadista parou de falar e esperou que explodisse a gargalhada do outro. Miguel rasgara o pequeno copo na tentativa de prestar atenção, contudo não conseguiu achar a graça daquela história absurda e grotesca. Sorriu a contragosto, mas o sujeito percebera a falsidade estampada no seu rosto. O falastrão ainda repetiu o final com outra entonação, para ver se conseguia arrancar dessa vez, mesmo que a força, algum tipo sincero. Nada. O meio sorriso não se abalara, não se movera nem um centímetro. O sujeito deu as costas e saiu quieto e perturbado.

A confirmação, como em qualquer outra experiência ou situação, veio com o terceiro incidente. Em casa, na mesa do jantar, o filho contava como tinha sido o dia e todos ao redor da mesa, acompanhavam-no. Menos Miguel que olhava burocraticamente para o garoto de quatorze anos. Quando ele terminou de falar, a mãe e irmã riram com vontade. Miguel deu apenas mais uma garfada em seu purê. O menino, ansioso por algum tipo de aprovação por parte do pai, inquiriu diretamente se havia algum problema com ele, o filho. Miguel mastigava e enquanto os dentes esmagavam o pedaço de frango que estava na boca pôde ter um pensamento rápido sobre se havia alguma coisa errada com ele. Claro que tinha ficado mais que constrangido quando não conseguiu rir verdadeiramente na presença do gaiato no trabalho. E também tinha achado estranho não rir na peça com a mulher. Mas não tinha feito nenhuma ligação entre tais fatos até aquele momento. Parecia que estava cotidiano – como deve ser, argumentava consigo mesmo. Começou a vasculhar rapidamente por toda a memória se havia ocorrido algum tipo de incidente que o fizera mudar de humor nas últimas semanas. Porém, o frango já tinha se desmanchado completamente na boca e teve que responder para o filho que tinha adorado sua história e não, não tinha problema nenhum com ele.

No bar de todas as quintas, seus amigos gargalhavam de qualquer coisa na mesma intensidade que Miguel afundava sozinho nos seus pensamentos. Tentava lembrar da última vez que rira e a lembrança não vinha. Voltou muito tempo atrás e conseguiu enxergar que ria mesmo em conversas bobas com a mulher, na época de namorados. Recordou que sorriu até chorar no dia que seu filho nasceu; pode observar que gargalhava nessa mesma reunião que estava, há anos atrás, quando esta começou. Entretanto ultimamente, tinha um pedaço enorme de sua memória contaminada com uma tinta azul-cinzenta. O pensamento de que ele era um amargurado com a vida passou como um elefante pela sua cabeça. Tratou de se convencer de que gostava de sua vida da maneira como ela era, e obteve resultados positivos. Sabia que sua vida não era brilhante, mas nunca teve a pretensão de ter uma vida mirabolante e de dar inveja nos amigos. E o seu caso, repetia para si, não era de falta de aventuras, mas de ausência de risos, em todos os seus formatos. Nessa etapa do pensamento foi interrompido por um amigo que estava no seu lado perguntando quem era a dona de seus pensamentos para ele poder ignorar dessa maneira seus camaradas.

Recusou a carona de volta naquele dia e pegou um ônibus com o argumento de que precisava passar na locadora. Sentou-se num banco sozinho, mas logo uma senhora gorda ocupou todo o lugar que sobrara e mais um pouco. Fez um esforço enorme e logo conseguiu voltar para as suas recordações. Estava empenhado em organizar uma lista com alguns títulos de filmes que o fizeram rir com muita vontade quando vistos pela primeira vez. Os primeiros que vieram foram as paródias pastelões. Apertem os cintos o piloto sumiu, Top Secret. Depois não houve nenhum mais. Foi para o outro lado do Atlântico e lembrou que riu de algumas cenas de Monthy Pyton e o cálice sagrado. Porém, achou A vida de Brian chato. O mesmo aconteceu com Monicelli, achara Os companheiros, engraçado, mas Brancaleone apenas passava de ser entediante. Pensou em Woody Allen. Sempre provocava, pelo menos, pequenas mudanças nas configurações de sua boca. Nunca dera uma gargalhada, mas nessas circunstâncias, já era uma vantagem.

A fita rebobinava e Miguel concluiu que Crimes e Pecados não tem o mesmo impacto ao ser revisto. Então entendeu que o filme ao ser assistido mais de uma vez não traz a mesma surpresa. E quanto mais repete as mesmas cenas, com os mesmos enredos, as mesmas falas, tudo se torna previsível e chato. Sua mulher entra no quarto exatamente nessa parte do seu raciocínio e pergunta o que ele faz ali. Ele levanta a capa do vhs e sai do quarto antes que ela possa lhe perguntar alguma coisa.

Não agüentava acordar todos os dias no mesmo horário e dar os mesmos bons-dias que dera ontem e anteontem. Ou estar há anos criando os mesmos relatórios no seu trabalho sem que ninguém reparasse. Ter que repetir as mesmas frases que ouvira do pai para o filho como uma canal direto, sem nenhuma modificação no timbre da voz e sem ter a menor idéia de que isso é o correto. O pior, disse para si mesmo, é que se tivesse a coragem de remexer o marasmo que imperava no seu cotidiano, atingiria pessoas que não pediram nem queriam estar em tal situação. Viu-se assim nitidamente amarrado em cima de uma cadeira, com as mãos às costas, a boca amordaçada e os olhos vendados e pela primeira vez sentiu um gosto amargo subir de dentro de suas entranhas à garganta até a boca e teve uma ânsia de vômito. Cuspiu na pia do banheiro um líquido viscoso esbranquiçado e doente.

A partir daquele dia, desistiu de procurar qualquer tipo de motivação para se sentir feliz. Resolveu se enclausurar dentro de si até o dia que tal tormento acabasse, de qualquer forma imprevista. Havia antevisto o infinito com torturas diárias. A cada pergunta típica da idade do filho, cada vez que ligasse o computador no trabalho ou apagasse a luz no quarto para dormir, descobriria que mais um pedaço dele estaria podre e inutilizável. Já não conseguia usar a razão para desvendar uma trilha para fora desse labirinto. A única resposta que a cabeça lhe dava era fugir, sumir, desaparecer, se transformar em lembranças cada vez mais distantes para aqueles que tiveram algum tipo de contato com ele. Mas se sentia covarde demais para tomar tamanho impulso. Observava suas asas e não as considerava grandes o suficiente para poder voar o percurso que se propunha, muito menos carregar outros pesos. Em nenhum momento considerou que as pessoas envolvidas pudessem, também, estar insatisfeitas com o barro que os cercavam. Assim, Miguel manteve suas tarefas sem aparentar nenhuma presença ou iluminação.

Aquele dia pareceria comum. E o era, e não mudará pelo que vai ser contado. Ninguém sentiu a diferença, nem mesmo a outra parte dos envolvidos no caso. Apenas achou algo estranho, comentou com a mulher em casa, e em poucas semanas já havia esquecido e a substituído por outra lembrança ainda mais fugaz. Naquele dia, Miguel chegou às oito horas e treze minutos no trabalho, adiantado como ocorrera em todas as oportunidades do mês corrente. Seu chefe se aproximou e tocou carinhosamente em seu ombro chamando-o para sua sala, pois tinham que conversar. Miguel, exatamente como um robô faria, se levantou e seguiu passo a passo o chefe até o aquário. Lá dentro o chefe apontou a cadeira que Miguel estava autorizado a sentar e ele se sentiu dormente, escutava um zumbido no ouvido que deixava a voz do chefe num volume baixíssimo, e enxergava tudo em volta do interlocutor embaçado, como se, dessa forma, pudesse enxergar algum tipo de aura. O chefe falava monocordicamente e Miguel só conseguiu captar algumas frases salpicadas aqui e ali. Escutava “empresa vendida”, “grupo japonês”, “downsizing”, “funções desnecessárias”, “capacitações técnicas” e só conseguiu conter uma gargalhada depois dela ter escapado. A conversa cresceu em peso e densidade, o chefe falava agora mais claro e mais pausado e continuava “falta de motivação”, “qualidade técnica”, “gostamos de você, mas” e Miguel riu novamente em voz alta e tapou a boca com a mão logo em seguida. O chefe parou de discursar e perguntou se ele estava bem, Miguel respondeu que sim, que estava, e então continuou. Miguel sentiu um soluço aportar dentro do seu peito e não pôde conter vários solavancos do corpo. A cada golfada sentia expelir algo inominável e impossível de ser codificado que desintoxicava seu corpo e em certo momento, já ignorando completamente o que o chefe falava, apenas por se sentir bem, bem demais, gargalhou com todos os dentes aparecendo, mostrando o palato mole e o duro, a garganta vermelha e quase todo a laringe. Segurava a barriga, pois tinha a impressão que iria explodir, as bochechas estavam com câimbras e os olhos lacrimejavam. Quando voltou a si, o chefe estava ao lado gritando seu nome e alguns transeuntes parados do lado de fora da sala observando a cômica cena. O chefe, então, reperguntou se ele estava bem, no que Miguel não respondeu. Apenas sorriu sinceramente do fundo do seu coração.

Nenhum comentário: