No sábado passado havia dormido na casa de minha irmã. Por azar, deveria trabalhar bem cedo no dia, assim colocara o despertador para tocar antes das oito da manhã. Acordei antes do horário previsto, apesar de termos bebido no dia anterior e dormido essencialmente tarde. Saltei da cama quando ainda não era sete e trinta. Antes mesmo de ir ao banheiro, sentei cheio de remelas em frente ao computador para entrar na internet. O que aconteceu, entretanto, eu não previra: o pc não funcionou.
Ainda um pouco molhado do banho que tomei na casa de minha irmã, colocando os fones nos ouvidos e a mochila nas costas, saí em direção a primeira banca de jornal que estivesse aberta. Contudo ela não tinha mais o diário que procurava. Me apressei para a segunda, depois de quase três quadras de vazio e angústia, quase correndo na rua. No meio de uma espécie de auto-estrada, encontrei o último exemplar. Caminhava na calçada e tinha para a minha inquietação: os carros que passavam rasantes ao meu lado bem próximos a mim, o horário para não me atrasar no emprego, a música que preenchia os meus ouvidos, a meta de pegar o transporte no lugar e hora certas e a tentativa, quase heróica, de ler a matéria que me preocupava com as letras balançando. A situação melhorou um pouco assim que consegui me sentar no banco do ônibus. Pude abrir o caderno e ter a comprovação de que meu conto não tinha sido eleito nada.
Era o quinto concurso que participava e, pela quinta vez consecutiva a minha apreensão e expectativa se repetiam. Não que ache que deveria ter sido eleito, todas as vezes que leio os textos selecionados vejo que eram imensamente melhores que os meus. Me desagrada, porém, imaginar que talvez se eu colocasse tudo aquilo que passa pela minha cabeça dentro dos meus textos, se conseguisse realmente me expressar, narrar todos os meus pensamentos, poderiam, assim, concorrer de igual para igual com os outros. Como disse em outros tempos, o meu caso é ser um escritor apenas pelos cacoetes, começando pelo branco. É sentar-se aqui, de frente para o computador e nenhuma das mirabolantes idéias que tive vem a minha mente. Ou, quando vem, não acho que sejam nada demais, ou pior, ao serem colocadas no papel virtual perdem completamente aquela força que achei que tinha.
No entanto, para minha sorte, desisti de me desesperar, escrevo apenas como prazer. Me sinto mais tranqüilo a partir do momento que descobri poder acreditar simplesmente, sem nenhum objeto de crença. Como se o simples ato de crer me tornasse mais tranqüilo, mesmo com a ausência absoluta do que acreditar. Como numa caminhada cega, como uma religião irracional, como numa fé desmotivada. Assim escrevo para me divertir. Sem nenhuma pretensão a coisa alguma. Borges dizia que o maior erro do artista é querer ser gênio. Pois então, como ele, me conscientizarei a ser somente eu, nada além desse “eu” ordinário e comum que se confundiria com qualquer pessoa. Nada mais de pressão para escrever com estilo, ou algo realmente importante. Até seria justificável ter esse tipo de ambição (ou pretensão); vários escritores dizem que seus desejos são de escreverem um livro que seja tudo para todos. Não tenho mais essa angústia, tirei essa forca do meu pescoço. Vou continuar a rabiscar essas coisas aqui e, talvez, um dia possa escrever uma pequena historinha sobre um sujeito que se transformou numa barata, ou sobre uma invasão de ratos numa cidade provinciana ou, quem sabe, narrar a saga de uma família solitária com hábitos exóticos. Histórias comuns, como se pode perceber.
Tenho certeza que no espaço físico que separa o pensamento, a formulação, o lugar onde se escuta o clique, onde se vislumbra a lâmpada se acendendo, do sentar na cadeira, de frente para o monitor, batucando nas teclas, coçando a cabeça, esfregando os olhos, se perde grande parte da produção literária do mundo. Se um dia pudesse mergulhar nesse poço para resgatar apenas as minhas idéias – juro que não roubaria a de ninguém – e as utilizasse aqui, conseguiria um resultado mais, como direi?, glorificante.
Ontem de noite por exemplo. Subi num coletivo e o motorista anunciou que havia mudado o itinerário por causa de um tiroteio que estava acontecendo na área que deveria ir. Desci e esperei o próximo que provavelmente não tivesse conhecimento da história e me levasse até o meu destino. Não demorou nada e veio um logo atrás. A coincidência – e aqui nasce a idéia – foi que ao me sentar, calmo, observando, através da janela molhada e embaçada ao mesmo tempo, um Rio de Janeiro escuro, vazio, chovido, o meu telefone tocou com a minha irmã na linha. Depois de todas as amenidades comuns de irmãos que não se encontram há algumas semanas, ela pediu para que eu tomasse cuidado, pois “a cidade está muito perigosa”. Poderia ser apenas uma preocupação familiar, tão tradicional na frase da mãe que diz para o filho não voltar tarde, ou quando pede para a irmã ligar quando chegar, onde quer que for, pois assim vivemos na cidade partida e sitiada. Porém ambas as informações se ligaram na minha cabeça na hora. E se um destino superior – não acredito nesse tipo de coisa, mas que ele existe, ele existe – tivesse tentando me passar uma espécie de mensagem para que eu desistisse de trafegar naquele dia, naquela via, daquele jeito? Claro que as teorias mirabolantes são prima-irmãs das paranóias, e resolvi continuar no meu trajeto até o final. Por sorte, ou porque assim tinha que ser, nada aconteceu comigo (fora ter molhado completamente o meu pé numa poça de água suja no meio da rua assim que desci). Com a minha chegada inocente e isento a casa que queria, resolvi usar a história apenas como pretexto para inventar um final mais empolgante, por assim dizer. Então lembrei que todas as histórias já foram contadas e que não deveria perder o meu tempo, nem fazer um eventual “você” ler essas baboseiras que na internerd tem aos montes, muito melhores que as minhas.
Agora aconteceu de novo. Quando escrevia o parágrafo anterior, esse que você acabou de ler, tive uma idéia. Não era brilhante, mas tinha achado bastante interessante, e agora ela não existe mais. Perdeu-se, foi para o beleléu.
Digressiono. Como podem ter percebido, escrevi a pequena historinha aqui. Sei que não mudará a vida de ninguém, mas com certeza transformará a minha em algo mais tranqüilo.
Iria continuar a escrever o parágrafo anterior e dizer que já vivo completamente independente da opinião de outras pessoas. Bastaria a mim somente escrever. Mas a afirmação não seria de toda verdadeira. O que passa pela minha cabeça, por exemplo, é que se desisto completamente de ser escritor – ou algo do gênero – as possibilidades que se figuram na minha frente diminuem drasticamente indo próximas a zero. Ou, sendo mais claro, não tenho idéia do que ser quando “crescer”. Mas como disse lá em cima, isso não é mais meu problema. Não sei de quem é, mas vou deixar para o futuro (se é que ele existe) decidir por mim.
epílogo
Tudo o que foi escrito até agora demonstra claramente a confusão que passa na cabeça de um garoto de vinte e poucos anos que ao terminar uma faculdade percebe-se completamente perdido, sem nenhuma pretensão de trabalhar naquilo que ele (pseudo) aprendeu. E nesse ínterim de desespero, não escreve nada. Fica numa espécie de greve dele mesmo. Não se forçará a colocar nada no papel. Depois de dezenas de dias, de semanas, um mês, volta a colocar qualquer coisa, apenas para não enferrujar, tentar se convencer. As esperanças diminuem proporcionalmente ao tempo que se esvai. Ele continua a acreditar em “nada”, nesse nada que não tem nome, que não tem forma, que não tem gosto. Exatamente o que faz a falta de perspectiva diminuir no hall de preocupações – sendo substituídas por outras mais táteis, mais prováveis, mais iminentes. Ele segue, porque é inevitável. Decidiu que se cair, cairá lutando. Acha, nessas últimas semanas, que não há como mudar o próprio futuro, mesmo que tente muito, tudo está praticamente feito. Porém, sabe do valor da escolha. Porém, entretanto, mas “Se deus não existe, tudo é permitido”. Deve-se abastecer o destino com possibilidades, e se essas não forem escolhidas, optar pela próxima. Cair lutando. Repete como um mantra. Para poder se convencer.
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