"Tenha fé em nosso povo que ele resiste / tenha fé em nosso povo que ele insiste".
Fernando Brant e Milton Nascimento
A morte de Fernando Brant poderia passar batido, mas não deveria. Representa o que o Brasil tem de melhor e pior. Compositor de algumas das mais belas canções que já tivemos contato, ele nos lembra o poder que a música chamada de popular tem no Brasil - capaz de criar, inclusive, uma sigla para ela própria (sigla essa que tanto torce o nariz de gente que quer encontrar o que seria a verdadeira arte do verdadeiro povo brasileiro: a mais original, a mais profunda, a mais representativa dos que nunca foram representados). Mas Brant também foi capaz de defender posições que podem ser interpretadas como a tentativa de perpetuar nosso abismo social.
As letras de Brant nas músicas de Milton Nascimento confirmam aquilo que o poeta Eucanaã Ferraz diz na introdução para o livro "O mundo não é chato", de textos escritos por Caetano Veloso para jornais, capas de discos e outras crônicas mais ligeiras - sem deixar de ser profundo: "no Brasil, a música popular é a instância da vida coletiva mais apta para viver essa experiência [extrema]", que é se pensar [tomar posicionamentos, agir, ser capaz de atacar e de defender] o país.
A música popular é o quando e o onde as pessoas se reúnem, no mais próximo da política arendtiana que temos. É aquela produção - no sentido que eu entendo da poiésis grega - em que se debate o hoje, se relembra o passado, se projeta o futuro. Não temos capilarização na literatura; tradição nos estudos estritamente acadêmicos, científicos ou universitários; musculatura na artes plásticas; relevância de debates dos meios de comunicação mais ou menos populares. Nos sobra - e "sobra" no sentido de abundar - a música, que nos afeta, nos nocauteia, nos eleva, enleva, nos mexe, mexe, nos destroça e nos constrói e reconstrói.
Não é um fenômeno único brasileiro, deve ter acontecido em outros lugares, mas isso não importa. O que importa é que a música é o que temos de mais profundo, que melhor nos mostra para nós mesmos, púlpito de debates, escola de quereres, sinal da beleza que se pode fazer com a nossa história.
Entretanto Brant, na sua atuação fora do campo da produção mais ligada ao campo das sensações, também nos lembra da outra metade da laranja brasileira, do erro cotidiano da dosagem do remédio que o transforma em veneno.
Suas posições extremamente raivosas na defesa dos direitos autorais de artistas carrega, além das motivações óbvias de defesa da classe, uma possibilidade de segundas e mais verticais interpretações. Era um ato conservador, no sentido mais próprio da palavra, da defesa da conservação do estado das coisas existentes. Era uma tentativa de manter as coisas como sempre foram e nunca aceitar qualquer tipo de mudança. Era uma escolha por manter privilégios de quem conseguiu esses privilégios - e não tentar construir pontes para diminuir a distância entre as extremas pontas da sociedade.
Como um homem pode ser tão inovador em um campo (estético) e tão reacionário em outro (político)? Ou por que alguém quando ultrapassa a bolha do andar de baixo já assume as posturas do andar de cima? Ou qual miopia impede os de cima de enxergar os de baixo como se fossem iguais?
Nelson Rodrigues talvez seja o principal exemplo nessa seara: um católico moralista orgulhoso de ser reacionário que dizia que expurgava suas neuroses e sonhos em uma produção teatral que era libertária, catártica, explosiva.
Essa divisão "Dr. Jekyll and Mr. Hyde" brasileira já foi muito melhor retratada por sujeitos como Roberto DaMatta, em seu "A casa e a rua". Somos conservadores em casa e liberais na rua. Somos violentos e conciliadores, ao mesmo tempo. Somos cordiais e cordiais, como diria Sérgio Buarque de Holanda. Somos extremados, precisamos de "experiências extremas".
Num momento de tamanho conservadorismo e atitudes retrógradas, excludentes e que beiram, quando não chafurdam, num fascismo descarado, quando a gangorra dessa nossa relação tensa histórica pende para um dos lados, é bom se agarrar a, ao menos, uma certeza: a música produzida no Brasil é linda. E Brant, o compositor, nos lembra disso. Que esse seja celebrado e o outro, combatido.
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