Se há uma coisa boa em viver em uma cidade cujo transporte público é basicamente o ônibus é poder observar, às vezes calmamente, a cidade, suas ruas, esquinas, gentes, enquanto se trafega de norte a sul, e vice-versa. Funciona muito bem para os raros dias em que o engarrafamento não trancou e bloqueou e enlaçou descuidadosamente toda a urbe. É de espantar como a máfia que controla os ônibus ainda não tenha feito qualquer propaganda usando isso a seu favor.
Em cidades de países ricos e sérios, você passa boa parte do seu dia-a-dia debaixo da terra, em plataformas mal ou bem cuidadas de 50, 100 anos, passeando em labirintos no ritmo das pesadas pisadas à sua frente, entrando em linhas estranhas, baldeando em estações erradas, com medo de perder a descida precisa. No Rio, nos sábados de fim da manhã ou de início de noite, do caloroso inverno de céu azul e sol seco, você observa como o comércio popular resiste mesmo no infelizmente degradado Estácio; como a notívaga Lapa respira tranquilamente com o dia claro; como pipocam, na contramão da concentração das grandes cadeias de supermercados, pequenos hortifrútis como válvulas de oxigenação; como rareia o número de pessoas que ainda insistem em combater o bom combate do lado de fora dos seus muros; como as casas - quase todas - de bairros como Méier, Maria da Graça, Del Castilho se erguem sob a miríade de arames farpados.
Parece, em alguns endereços ali perto da Igreja do Sagrado Coração, cenário de filmes de guerra. O arame farpado não é aquele fininho de fazendas, usados para demarcar o espaço de latifúndios geralmente improdutivos. São robustos círculos concêntricos cujas lâminas são dentes de cachorros cheios de raiva. São mensagens para qualquer transeunte, mais ou menos bem intencionados, dizendo para nem tentar qualquer gracinha, para se afastar e deixar aquela família de bem em paz. Os dentes do arame grosso, que nem deveria ser chamado arame de tão espesso, são símbolos de uma casa, que vive sob o signo do medo, real ou imaginado. É um caminho, não de tijolos dourados, como o de Dorothy, mas de um nível alto de desespero - des-espero, sem espera, sem esperança.
[Curiosamente há casas que optam por não se defenderem tanto ou com essas armas. Imagino: estariam estas famílias mais vulneráveis? Seriam os alvos preferenciais para os gatunos na hora que estes escolhem as suas vítimas? Ou o inverso: o marginal [lembrando: aquele que vive à margem] pensaria que essas casas não devem ser tão importantes assim porque, exatamente, não se protegem tanto. E se o ladrão quer ser desafiado pela dificuldade do arame farpado? Ou quer dar um troco naqueles que tentaram, virtualmente, o ferir? Como podemos saber como pensa um meliante qualquer?]
Há também alguns bares de esquina, padarias híbridas, pizzarias de entrega, e - novamente eles - hortifrútis que sobrevivem - sobrevivem! - nesse caminho de trincheiras dentadas que levam para o templo máximo da mentalidade de condomínio, o lugar onde todo mundo se sente seguro, protegido, relaxado como se estivesse na própria casa: o shopping center. O Norte Shopping é um dos centros comerciais que mais fatura em todo o país. Corredores sempre lotados de pessoas de carne e osso, praça de alimentação com filas com gente de verdade, lojas cheias de consumidores ávidos para brincar o jogo que o mundo está brincando.
Tudo isso nos levanta a sobrancelha esquerda perguntando: e a crise? Será que este é o único lugar que as pessoas que vivem atrás do arame farpado se sentem ligeiramente protegidas? Neste templo bem iluminado e com seguranças embaixo das árvores de plástico? Nesse ponto de encontro que venera o ato de consumir como se fosse o objetivo maior de toda a existência humana? Estamos trocando espaços privados por espaços privados por espaços privados por espaços privados? Vivendo cotidianamente o que seria considerado por outras gerações um simulacro do viver? Tudo controlado, limpo e bonito como se fosse um laboratório de experiências sociais?
O arame superlativamente farpado é um símbolo de um modo de viver que vê o outro como um problema. Como uma questão que não merece ser respondida ou pensada, mas eliminada. Um característica que não se restringe à Zona Norte, ou ao subúrbio. Muitíssimo pelo contrário. Uma tentativa cada vez mais comum em toda a cidade de se proteger de um inimigo, real ou imaginado, que vem pela televisão, pelas ruas, do asfalto, do morro, dos bueiros, das sombras, do outro lado do túnel, da imaginação neurótica que acha que o diferente de si sempre é uma ameaça. O sintoma visível de uma fantasia de segurança que só seria encontrada no âmbito do mais privado possível - de preferência em um bunker. Ou no conforto da privada. Um desejo de isolamento compulsivo, da destruição da coletividade anárquica, onde o mundo acontece sem roteiro pré-aprovado, onde o protocolo nem foi nem vai ser escrito. Uma fobia do até-mesmo ligeiramente diverso e uma adoração de tudo o que é ególatra, narcisista e excludente. Uma proposta de homogeneização das experiências cotidianas, de uma vida de gosto extremamente familiar e exageradamente confortável, que, com o tempo, tende a ir se degradando, perdendo o sabor, se anodizando, se encaminhando para o niilismo da falta de parâmetros e, consequentemente, a depressão. E tome remédios antimonotonia.
Ou nada disso. Ou simplesmente estamos aprofundando nossas existências em direção a relações cada vez mais simples e binárias, do tipo: eu x outro; casa x rua; público x privado, em que nenhum desses elementos se mistura, e um deles sempre é bom, enquanto o outro deve ser óbvia e necessariamente o inverso disso. Aprofunda-se as divisões em opostos que nunca se complementam, que têm aversão ao seu imaginário outro, aquele que talvez nem exista da maneira como esperamos. Um mundo em que sempre se odeia qualquer centímetro que saia do limite preparado com a antecedência de gerações. Há, parece, uma única forma de proteger essa identidade, que se quer-porque-quer fixa, imutável e limitada: com arame farpado.
Em cidades de países ricos e sérios, você passa boa parte do seu dia-a-dia debaixo da terra, em plataformas mal ou bem cuidadas de 50, 100 anos, passeando em labirintos no ritmo das pesadas pisadas à sua frente, entrando em linhas estranhas, baldeando em estações erradas, com medo de perder a descida precisa. No Rio, nos sábados de fim da manhã ou de início de noite, do caloroso inverno de céu azul e sol seco, você observa como o comércio popular resiste mesmo no infelizmente degradado Estácio; como a notívaga Lapa respira tranquilamente com o dia claro; como pipocam, na contramão da concentração das grandes cadeias de supermercados, pequenos hortifrútis como válvulas de oxigenação; como rareia o número de pessoas que ainda insistem em combater o bom combate do lado de fora dos seus muros; como as casas - quase todas - de bairros como Méier, Maria da Graça, Del Castilho se erguem sob a miríade de arames farpados.
Parece, em alguns endereços ali perto da Igreja do Sagrado Coração, cenário de filmes de guerra. O arame farpado não é aquele fininho de fazendas, usados para demarcar o espaço de latifúndios geralmente improdutivos. São robustos círculos concêntricos cujas lâminas são dentes de cachorros cheios de raiva. São mensagens para qualquer transeunte, mais ou menos bem intencionados, dizendo para nem tentar qualquer gracinha, para se afastar e deixar aquela família de bem em paz. Os dentes do arame grosso, que nem deveria ser chamado arame de tão espesso, são símbolos de uma casa, que vive sob o signo do medo, real ou imaginado. É um caminho, não de tijolos dourados, como o de Dorothy, mas de um nível alto de desespero - des-espero, sem espera, sem esperança.
[Curiosamente há casas que optam por não se defenderem tanto ou com essas armas. Imagino: estariam estas famílias mais vulneráveis? Seriam os alvos preferenciais para os gatunos na hora que estes escolhem as suas vítimas? Ou o inverso: o marginal [lembrando: aquele que vive à margem] pensaria que essas casas não devem ser tão importantes assim porque, exatamente, não se protegem tanto. E se o ladrão quer ser desafiado pela dificuldade do arame farpado? Ou quer dar um troco naqueles que tentaram, virtualmente, o ferir? Como podemos saber como pensa um meliante qualquer?]
Há também alguns bares de esquina, padarias híbridas, pizzarias de entrega, e - novamente eles - hortifrútis que sobrevivem - sobrevivem! - nesse caminho de trincheiras dentadas que levam para o templo máximo da mentalidade de condomínio, o lugar onde todo mundo se sente seguro, protegido, relaxado como se estivesse na própria casa: o shopping center. O Norte Shopping é um dos centros comerciais que mais fatura em todo o país. Corredores sempre lotados de pessoas de carne e osso, praça de alimentação com filas com gente de verdade, lojas cheias de consumidores ávidos para brincar o jogo que o mundo está brincando.
Tudo isso nos levanta a sobrancelha esquerda perguntando: e a crise? Será que este é o único lugar que as pessoas que vivem atrás do arame farpado se sentem ligeiramente protegidas? Neste templo bem iluminado e com seguranças embaixo das árvores de plástico? Nesse ponto de encontro que venera o ato de consumir como se fosse o objetivo maior de toda a existência humana? Estamos trocando espaços privados por espaços privados por espaços privados por espaços privados? Vivendo cotidianamente o que seria considerado por outras gerações um simulacro do viver? Tudo controlado, limpo e bonito como se fosse um laboratório de experiências sociais?
O arame superlativamente farpado é um símbolo de um modo de viver que vê o outro como um problema. Como uma questão que não merece ser respondida ou pensada, mas eliminada. Um característica que não se restringe à Zona Norte, ou ao subúrbio. Muitíssimo pelo contrário. Uma tentativa cada vez mais comum em toda a cidade de se proteger de um inimigo, real ou imaginado, que vem pela televisão, pelas ruas, do asfalto, do morro, dos bueiros, das sombras, do outro lado do túnel, da imaginação neurótica que acha que o diferente de si sempre é uma ameaça. O sintoma visível de uma fantasia de segurança que só seria encontrada no âmbito do mais privado possível - de preferência em um bunker. Ou no conforto da privada. Um desejo de isolamento compulsivo, da destruição da coletividade anárquica, onde o mundo acontece sem roteiro pré-aprovado, onde o protocolo nem foi nem vai ser escrito. Uma fobia do até-mesmo ligeiramente diverso e uma adoração de tudo o que é ególatra, narcisista e excludente. Uma proposta de homogeneização das experiências cotidianas, de uma vida de gosto extremamente familiar e exageradamente confortável, que, com o tempo, tende a ir se degradando, perdendo o sabor, se anodizando, se encaminhando para o niilismo da falta de parâmetros e, consequentemente, a depressão. E tome remédios antimonotonia.
Ou nada disso. Ou simplesmente estamos aprofundando nossas existências em direção a relações cada vez mais simples e binárias, do tipo: eu x outro; casa x rua; público x privado, em que nenhum desses elementos se mistura, e um deles sempre é bom, enquanto o outro deve ser óbvia e necessariamente o inverso disso. Aprofunda-se as divisões em opostos que nunca se complementam, que têm aversão ao seu imaginário outro, aquele que talvez nem exista da maneira como esperamos. Um mundo em que sempre se odeia qualquer centímetro que saia do limite preparado com a antecedência de gerações. Há, parece, uma única forma de proteger essa identidade, que se quer-porque-quer fixa, imutável e limitada: com arame farpado.