[Como sobreviver dentro de um cotidiano em que o ódio é a principal moeda de troca entre as pessoas? Em que a violência é justificada, a segregação, incentivada? Em que estamos destruindo cotidianamente os grandes formatos sem colocar nada no lugar? Como encontrar algum alento nessa atmosfera venenosa? Onde respirar quando falta o ar?]
Viver no mesmo endereço há tempos e as suas vantagens. Você começa a ganhar vizinhos, mesmo numa cidade que ainda insiste em crescer. Cumprimenta o ator olhudo, ponta de programas de humor desde Chico Anysio. Reconhece o grande pesquisador de música que vive no prédio Pixinguinha e, já bem velhinho, arrasta os pés pesadamente pelas calçadas. Pega o mesmo ônibus do travesti coroa que é careca em cima da cabeça e tem cabelo longo e louro nas laterais. Faz questão de acenar para o passeador de cachorros, que acena empolgado de volta, o mesmo que vai embora de bicicleta cantando. Escuta sem responder o português dono da mercearia suja, que sempre tenta justificar os preços altos com os problemas da economia. Enxerga os moradores da rua.
Quando se mora há muito tempo na mesma barulhenta avenida, é possível reconhecer os detalhes. Há a jovem que anda sempre sozinha, quieta carregando sacos com plástico, papelão, restos. Anda sempre com um turbante improvisado e roupas largas, como um figura saída de uma tela do Debret. É nova, magra, os olhos muito vivos e, ao mesmo tempo, tristes. Parece que está sempre a ponto de se desculpar, de começar a chorar, de desistir, de escapar - caso precise. Seu rosto é pequeno e bonito. Simples. Raramente pede dinheiro - quando acontece, faz em frente à padaria - padaria em que a atendente um dia quase pediu desculpas quando a conta de poucos itens deu R$ 50.
A moça que vive na rua dorme em lugar ignorado, mas suas coisas, seus sacos sempre estão perto do ponto de ônibus, do lado da estação de bicicletas. Ela nunca encara os olhos dos transeuntes, como se pedisse desculpas pela sua presença, pela sua existência. Seus olhos vivos e tristíssimos procuram apressadamente e ao mesmo tempo uma saída, uma via de fuga em caso de ameaça, mais matéria-prima que vai se transformar em dinheiro que vai se transformar em comida que vai lhe dar mais sobrevida. Sobrevida...
Nunca a vi comendo.
A padaria é ponto de outros moradores, como o bêbado da voz caricaturalmente grossa. Ele, ao contrário da moça jovem, está sempre tentando causar algum tipo de rebuliço. É abastecido pelo pessoal da oficina, vizinho da padaria e da auto-escola. Dorme por ali mesmo. Esse encara quem o encara. Como se nós fôssemos os culpados, os responsáveis por ele estar ali, daquele jeito. Como se nós tivéssemos obrigação de lhe dar dinheiro. Às vezes, rola uma discussão em brados com outros moradores da mesma marquise. Problemas de vizinhos... quem nunca?
Já o vi em outras latitudes, com outros mendigos também conhecidos, como o careca baixinho que vive grunhindo e que bateu até matar a bananeira que crescia ao lado do viaduto Carlota Joaquina, aquele que passa por cima da pista do Aterro do Flamengo. Não satisfeito com apenas matar a bananeira, tacou fogo no toco que sobrou. Um sujeito que carrega muita confusão dentro de si, claramente errante, sempre com uma latinha de Brahma à mão. Parece com ódio da sociedade porque não a consegue entender - essa mesma sociedade que também não fez muito esforço para o entender. Já trabalhou com o guardador de carro perto da Policlínica, mas não mais. É dos mais inconstantes.
Recentemente, apareceram dois novos, um casal, exatamente nesse viaduto, que eu sempre vi como a mais perfeita rota de fuga para os assaltantes da região. Desde que o menino foi assassinado no ponto de ônibus em frente à loja de ferragem, que fica do lado da farmácia, do lado da oficina, do lado da auto-escola, do lado da padaria, a área parece que ficou mais segura. Uma patrulhinha fica 24 horas por ali. Uma pracinha foi construída. Brinquedos de criança. Luz forte. Jardim com flores. Academia da Terceira Idade. O sentimento, talvez apenas somente o sentimento, se espalhou até mesmo o viaduto Carlota Joaquina - um nome que diz algo sobre o local.
O casal no viaduto pescou minha atenção recentemente. Todas as vezes que eu passo bem cedinho por ali, indo ao supermercado ou à feira, mesmo quando encontro o menino psicótico que passa andando à deriva e todo encasacado mesmo no mais alto verão, conversando, discutindo, brigando com os seus demônios, eles, o casal da escada do viaduto está lá, ainda dormindo. E é uma cena que se destaca do cinza do chão, mesmo que eles estejam totalmente sujos, que se descola do barulho dos carros que passam logo ali abaixo, ainda que não façam qualquer ruído.
Os dois dormem calma, profunda, justamente. Dormem sem pressa. Dormem numa realidade paralela ao que acontece sobre o viaduto. Ignorando a neurose de quem está chegando para o trabalho na IBM ou na Odebrecht. Dormem como se mostrassem que não há necessidade de muita coisa no mundo. Um com o braço sobre a outra. Encaixados em conchinha. Ela com a cabeça no ombro dele. Ele fazendo carinho nela. Desconjuntados, atrapalhados, um sobre a outra, e vice-versa, como em disputa pelo sagrado território da alcova. Um alcova pública, mas ainda uma alcova.
São dois jovens, mais novos que eu, completamente fora de qualquer padrão da exigência hegemônica de beleza. Dormem sobre o papelão nas madrugadas em que os termômetros descem a menos de 15 graus. Eles têm um à outra para se esquentar, se encostar, saber que não estão sozinhos, completamente sozinhos no mundo. Não que seja indispensável ter um alguém especial exatamente ao seu lado, mas eles não teriam nenhuma outra pessoa - nenhuma outra, em todo o mundo. O outro, a outra que está do lado dela, dele, é um contato que restou. Eles e o resto do mundo, eles e a humanidade, eles e o que os circunda.
Ainda não estão totalmente alijados da sociedade - não digo desta sociedade que os quer fora do mundo, quer apagá-los, quer que eles miraculosamente não existam mais, ou melhor: nunca tenham existido jamais. Eles mostram que há algo em comum entre as pessoas, usem ternos, tailleurs, um top vermelho encardido, uma camisa branca dois números maiores. Todos fazem parte de algo que é maior: ao fim, somos os mesmos e únicos.
Eles ainda não desistiram, não se largaram, não têm medo, raiva, não querem destruir nada, não foram para uma dimensão à parte, ainda se conectam uma com o outro, ainda enxergam em si, em ambos, no que eles construíram, no que constroem a cada instante, a cada noite, ainda encontram um fiapo de vida, algo que ainda esquenta, que aquece dentro, que derrete o gelo que insiste em matar o que vive, ainda percebem que há algo mais que a mera sobrevivência, a mera busca pela próxima refeição. Eles ainda têm algo, algo por que continuar.
ps. Dispensável dizer: de dia ou de noite, todos os mendigos são pretos.
Viver no mesmo endereço há tempos e as suas vantagens. Você começa a ganhar vizinhos, mesmo numa cidade que ainda insiste em crescer. Cumprimenta o ator olhudo, ponta de programas de humor desde Chico Anysio. Reconhece o grande pesquisador de música que vive no prédio Pixinguinha e, já bem velhinho, arrasta os pés pesadamente pelas calçadas. Pega o mesmo ônibus do travesti coroa que é careca em cima da cabeça e tem cabelo longo e louro nas laterais. Faz questão de acenar para o passeador de cachorros, que acena empolgado de volta, o mesmo que vai embora de bicicleta cantando. Escuta sem responder o português dono da mercearia suja, que sempre tenta justificar os preços altos com os problemas da economia. Enxerga os moradores da rua.
Quando se mora há muito tempo na mesma barulhenta avenida, é possível reconhecer os detalhes. Há a jovem que anda sempre sozinha, quieta carregando sacos com plástico, papelão, restos. Anda sempre com um turbante improvisado e roupas largas, como um figura saída de uma tela do Debret. É nova, magra, os olhos muito vivos e, ao mesmo tempo, tristes. Parece que está sempre a ponto de se desculpar, de começar a chorar, de desistir, de escapar - caso precise. Seu rosto é pequeno e bonito. Simples. Raramente pede dinheiro - quando acontece, faz em frente à padaria - padaria em que a atendente um dia quase pediu desculpas quando a conta de poucos itens deu R$ 50.
A moça que vive na rua dorme em lugar ignorado, mas suas coisas, seus sacos sempre estão perto do ponto de ônibus, do lado da estação de bicicletas. Ela nunca encara os olhos dos transeuntes, como se pedisse desculpas pela sua presença, pela sua existência. Seus olhos vivos e tristíssimos procuram apressadamente e ao mesmo tempo uma saída, uma via de fuga em caso de ameaça, mais matéria-prima que vai se transformar em dinheiro que vai se transformar em comida que vai lhe dar mais sobrevida. Sobrevida...
Nunca a vi comendo.
A padaria é ponto de outros moradores, como o bêbado da voz caricaturalmente grossa. Ele, ao contrário da moça jovem, está sempre tentando causar algum tipo de rebuliço. É abastecido pelo pessoal da oficina, vizinho da padaria e da auto-escola. Dorme por ali mesmo. Esse encara quem o encara. Como se nós fôssemos os culpados, os responsáveis por ele estar ali, daquele jeito. Como se nós tivéssemos obrigação de lhe dar dinheiro. Às vezes, rola uma discussão em brados com outros moradores da mesma marquise. Problemas de vizinhos... quem nunca?
Já o vi em outras latitudes, com outros mendigos também conhecidos, como o careca baixinho que vive grunhindo e que bateu até matar a bananeira que crescia ao lado do viaduto Carlota Joaquina, aquele que passa por cima da pista do Aterro do Flamengo. Não satisfeito com apenas matar a bananeira, tacou fogo no toco que sobrou. Um sujeito que carrega muita confusão dentro de si, claramente errante, sempre com uma latinha de Brahma à mão. Parece com ódio da sociedade porque não a consegue entender - essa mesma sociedade que também não fez muito esforço para o entender. Já trabalhou com o guardador de carro perto da Policlínica, mas não mais. É dos mais inconstantes.
Recentemente, apareceram dois novos, um casal, exatamente nesse viaduto, que eu sempre vi como a mais perfeita rota de fuga para os assaltantes da região. Desde que o menino foi assassinado no ponto de ônibus em frente à loja de ferragem, que fica do lado da farmácia, do lado da oficina, do lado da auto-escola, do lado da padaria, a área parece que ficou mais segura. Uma patrulhinha fica 24 horas por ali. Uma pracinha foi construída. Brinquedos de criança. Luz forte. Jardim com flores. Academia da Terceira Idade. O sentimento, talvez apenas somente o sentimento, se espalhou até mesmo o viaduto Carlota Joaquina - um nome que diz algo sobre o local.
O casal no viaduto pescou minha atenção recentemente. Todas as vezes que eu passo bem cedinho por ali, indo ao supermercado ou à feira, mesmo quando encontro o menino psicótico que passa andando à deriva e todo encasacado mesmo no mais alto verão, conversando, discutindo, brigando com os seus demônios, eles, o casal da escada do viaduto está lá, ainda dormindo. E é uma cena que se destaca do cinza do chão, mesmo que eles estejam totalmente sujos, que se descola do barulho dos carros que passam logo ali abaixo, ainda que não façam qualquer ruído.
Os dois dormem calma, profunda, justamente. Dormem sem pressa. Dormem numa realidade paralela ao que acontece sobre o viaduto. Ignorando a neurose de quem está chegando para o trabalho na IBM ou na Odebrecht. Dormem como se mostrassem que não há necessidade de muita coisa no mundo. Um com o braço sobre a outra. Encaixados em conchinha. Ela com a cabeça no ombro dele. Ele fazendo carinho nela. Desconjuntados, atrapalhados, um sobre a outra, e vice-versa, como em disputa pelo sagrado território da alcova. Um alcova pública, mas ainda uma alcova.
São dois jovens, mais novos que eu, completamente fora de qualquer padrão da exigência hegemônica de beleza. Dormem sobre o papelão nas madrugadas em que os termômetros descem a menos de 15 graus. Eles têm um à outra para se esquentar, se encostar, saber que não estão sozinhos, completamente sozinhos no mundo. Não que seja indispensável ter um alguém especial exatamente ao seu lado, mas eles não teriam nenhuma outra pessoa - nenhuma outra, em todo o mundo. O outro, a outra que está do lado dela, dele, é um contato que restou. Eles e o resto do mundo, eles e a humanidade, eles e o que os circunda.
Ainda não estão totalmente alijados da sociedade - não digo desta sociedade que os quer fora do mundo, quer apagá-los, quer que eles miraculosamente não existam mais, ou melhor: nunca tenham existido jamais. Eles mostram que há algo em comum entre as pessoas, usem ternos, tailleurs, um top vermelho encardido, uma camisa branca dois números maiores. Todos fazem parte de algo que é maior: ao fim, somos os mesmos e únicos.
Eles ainda não desistiram, não se largaram, não têm medo, raiva, não querem destruir nada, não foram para uma dimensão à parte, ainda se conectam uma com o outro, ainda enxergam em si, em ambos, no que eles construíram, no que constroem a cada instante, a cada noite, ainda encontram um fiapo de vida, algo que ainda esquenta, que aquece dentro, que derrete o gelo que insiste em matar o que vive, ainda percebem que há algo mais que a mera sobrevivência, a mera busca pela próxima refeição. Eles ainda têm algo, algo por que continuar.
ps. Dispensável dizer: de dia ou de noite, todos os mendigos são pretos.
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