O escritor Bráulio Tavares recentemente relembrou de uma frase de George Orwell sobre Charles Dickens, mas que dá um bom panorama não apenas sobre o autor inglês, mas sobre vários romancistas folhetinescos do século XIX [como o próprio Bráulio ressalta, aliás]: "He is all fragments, all details—rotten architecture, but wonderful gargoyles". O texto inteiro do Bráulio [de 2004] fala sobre como o romance, como obra artística de um período específico, tinha uma característica em comum: era deveras irregular. O que ele não acrescentou - e eu tomo a liberdade de dialogar com ele - é: como, aliás, é a vida.
Em seguida, me peguei pensando: quando foi a última vez que tinha me dedicado à leitura, como a minha principal atividade do dia[-a-dia]? Eu, que quero me ocupar pela vida à frente exatamente do outro lado do balcão [a escrita], eu que [pareço que] prezo tanto pelas leituras em geral, eu que aparento [segundo dizem] tanto um desses personagens prontos, instantâneos? Não lembrava. A literatura havia se tornado um apêndice da minha própria trajetória. O mergulho dentro de uma obra - com suas qualidades e seus defeitos, com suas genialidades e seus buracos, com sua arquitetura estragada, mas com suas maravilhosas gárgulas - havia se transformado em um efeito lateral, colateral. Quando dava tempo. Quando não estava fazendo mais nada. Quando não tinha mais nada interessante. Ou mais interessante. Ou simplesmente interessante.
Uma das razões para isso, suspeito, seja o "tempo" diferente da literatura. É necessário uma concentração, uma atenção, um mergulho e um desligamento do seu entorno que não condiz com o nosso momento histórico. Os arcos narrativos de um romance são longos, às vezes cheios de ruas sem-saída [a arquitetura estragada], para poucos instantes de genialidade [as gárgulas maravilhosas] - isso a depender da qualidade do livro, claro. A literatura não dá, necessariamente, respostas imediatas. Não alimenta nossas fábricas de químicas do prazer súbito, de pílulas de euforias. A literatura é mais "lenta", menos óbvia, é mais "trabalhosa". Exige um esforço, não quer interlocutores passivos, que só recebem e são maravilhados. É necessário uma vontade, uma força, um exercício até mesmo físico.
Mesmo que a divisão natureza x cultura seja fadada ao fracasso, e, por si só, uma artificialidade, poderíamos pensar essa questão como uma metáfora apenas: a literatura é a menos "natural" das produções com intuito artístico. É necessário aprender uma técnica - a leitura - mesmo para apenas apreciá-la, da maneira como ela foi concebida. Pode-se pensar que há, como sempre houve, contadores de histórias, grandes narradores orais - mas essa não é a forma como a literatura foi pensada, ao menos nos últimos 200, 250 anos. Literatura, para os escritores, suponho, é um movimento individual, único, de pouca possibilidade de compartilhamento. É para ser lida, só, sozinho[a].
Claro que se lê hoje muito mais - em quantidade - que em qualquer outro momento histórico da irregular história desse irregular [geograficamente falando] Ocidente. Somos abastecidos por textões em redes sociais sobre todos os assuntos da moda. Corremos atrás da opinião de x, y ou z para saber como devemos nos posicionar sobre a polêmica do momento, criamos frágeis verdades e defendemos nossos pontos com memes, gifs animadas e escrachos, e citações de autores famosos lidos como ferramentas, de maneira utilitárias. Lê-se, sim, até se lê, mesmo, e até em profundidade, mas lê-se sempre com um fim, com um objetivo em mente. Lê-se, na hipótese mais parecida, para ocupar o espaço vazio que insiste em aparecer quando não estamos surfando uma das ondas eufóricas.
O romance - e eu nem defendo aqui sua superioridade, ao contrário - mexe com outras químicas: trabalha-se pela tranquilidade, mesmo quando o seu tema é dos mais apreensivos; com a empatia, apesar dos personagens detestáveis; com o aprofundamento das relações, ainda que pareça improvável. O romance é de outro tempo. Não é ágil, não tem necessariamente uma sacada, não pode ser sempre resumido. O romance não tem uma arquitetura impecável, não é obviamente sagaz, não pisca o olho mostrando o quão inteligente, não sublinha todas as suas tiradas geniais. É mais calmo, menos agitado, mais a cara da vida real. Mas de uma outra época.
Dito isso: que livro enorme [em todos os sentidos] é Os irmãos Karamázov!
Em seguida, me peguei pensando: quando foi a última vez que tinha me dedicado à leitura, como a minha principal atividade do dia[-a-dia]? Eu, que quero me ocupar pela vida à frente exatamente do outro lado do balcão [a escrita], eu que [pareço que] prezo tanto pelas leituras em geral, eu que aparento [segundo dizem] tanto um desses personagens prontos, instantâneos? Não lembrava. A literatura havia se tornado um apêndice da minha própria trajetória. O mergulho dentro de uma obra - com suas qualidades e seus defeitos, com suas genialidades e seus buracos, com sua arquitetura estragada, mas com suas maravilhosas gárgulas - havia se transformado em um efeito lateral, colateral. Quando dava tempo. Quando não estava fazendo mais nada. Quando não tinha mais nada interessante. Ou mais interessante. Ou simplesmente interessante.
Uma das razões para isso, suspeito, seja o "tempo" diferente da literatura. É necessário uma concentração, uma atenção, um mergulho e um desligamento do seu entorno que não condiz com o nosso momento histórico. Os arcos narrativos de um romance são longos, às vezes cheios de ruas sem-saída [a arquitetura estragada], para poucos instantes de genialidade [as gárgulas maravilhosas] - isso a depender da qualidade do livro, claro. A literatura não dá, necessariamente, respostas imediatas. Não alimenta nossas fábricas de químicas do prazer súbito, de pílulas de euforias. A literatura é mais "lenta", menos óbvia, é mais "trabalhosa". Exige um esforço, não quer interlocutores passivos, que só recebem e são maravilhados. É necessário uma vontade, uma força, um exercício até mesmo físico.
Mesmo que a divisão natureza x cultura seja fadada ao fracasso, e, por si só, uma artificialidade, poderíamos pensar essa questão como uma metáfora apenas: a literatura é a menos "natural" das produções com intuito artístico. É necessário aprender uma técnica - a leitura - mesmo para apenas apreciá-la, da maneira como ela foi concebida. Pode-se pensar que há, como sempre houve, contadores de histórias, grandes narradores orais - mas essa não é a forma como a literatura foi pensada, ao menos nos últimos 200, 250 anos. Literatura, para os escritores, suponho, é um movimento individual, único, de pouca possibilidade de compartilhamento. É para ser lida, só, sozinho[a].
Claro que se lê hoje muito mais - em quantidade - que em qualquer outro momento histórico da irregular história desse irregular [geograficamente falando] Ocidente. Somos abastecidos por textões em redes sociais sobre todos os assuntos da moda. Corremos atrás da opinião de x, y ou z para saber como devemos nos posicionar sobre a polêmica do momento, criamos frágeis verdades e defendemos nossos pontos com memes, gifs animadas e escrachos, e citações de autores famosos lidos como ferramentas, de maneira utilitárias. Lê-se, sim, até se lê, mesmo, e até em profundidade, mas lê-se sempre com um fim, com um objetivo em mente. Lê-se, na hipótese mais parecida, para ocupar o espaço vazio que insiste em aparecer quando não estamos surfando uma das ondas eufóricas.
O romance - e eu nem defendo aqui sua superioridade, ao contrário - mexe com outras químicas: trabalha-se pela tranquilidade, mesmo quando o seu tema é dos mais apreensivos; com a empatia, apesar dos personagens detestáveis; com o aprofundamento das relações, ainda que pareça improvável. O romance é de outro tempo. Não é ágil, não tem necessariamente uma sacada, não pode ser sempre resumido. O romance não tem uma arquitetura impecável, não é obviamente sagaz, não pisca o olho mostrando o quão inteligente, não sublinha todas as suas tiradas geniais. É mais calmo, menos agitado, mais a cara da vida real. Mas de uma outra época.
Dito isso: que livro enorme [em todos os sentidos] é Os irmãos Karamázov!
Nenhum comentário:
Postar um comentário