A crise estética que assola o país não é um problema só de quem gosta de Romero Brito ou para os que passam corrente de Whatsapp com orações sobre um dos avatares da mãe do nazareno. Não é também apenas para espectadores mais conservadores que ainda estão impressionados com a verossimilhança de determinados quadros ou esculturas antigas, e qualquer forma menos óbvia se torna um choque e uma impossibilidade de enxergar. Nem mesmo para quem se espanta com obras que mostrem ou sugiram qualquer nudez, ou insinuem sexo, convencional ou não, e relações outras que a heterossexual. É um problema que afeta todo mundo, dos que não se interessam por arte até quem se acha imune ao pensamento estético retrógrado.
O progressivismo, que colonizou a cabeça de toda a metafísica do Ocidente nos últimos 200, 300 anos, atingiu a arte de maneira brutal. De uma forma muito grosseira, pode-se dizer que um tipo de narrativa do século XX defende a ideia de que se pode traçar uma fictícia linha reta entre dois pontos imaginários na trajetória artística da Modernidade. A perfeita representação espelhada da "realidade", de um lado, e os experimentalismos ligados à abstração, do outro. A arte deveria percorrer, ao longo da História, esse caminho, de um extremo ao oposto.
Assim, até a invenção de objetos que capturam a "realidade" de forma "mecânica", a arte estava em busca de uma maior perfeição em "retratar" o que há. À arte, portanto, bastava então ser o mais fiel possível ao "real", repetindo-o em todos os detalhes possíveis. Com a fotografia e depois o cinema, a arte buscou outros projetos - principalmente a abstração - , que pudessem torná-la ainda relevante, já que como "cópia" da realidade ela jamais poderia competir com as máquinas. Obviamente ambos os modos de interpretar a arte são, no mínimo, pobres, a começar por pensar uma "realidade" nua, pura, sem qualquer adereço, ou imaginar algum tipo de produção que não tenha algum grau de subjetividade.
De toda forma, essa busca experimental pela abstração - junto a outros inúmeros fatores, como o crescimento da classe média de padrão pequeno burguês nos países ricos, o florescimento de outros modos de entretenimento, mais pueris e leves, a competitividade exacerbada no campo do trabalho, etc. - criou uma cisão imensa entre a produção artística de proa [para evitar usar a palavra vanguarda aqui] e a sua influência na sociedade.
Vale um pequeno parêntese para dizer que nunca houve uma grande influência da arte na sociedade - ao menos não nos moldes genéricos [em qualquer sociedade] e nas definições estanques [i.e. nas belas artes] como se espera ao contar essa história. O que vale são aproximações de pensamentos, tais como quando dizemos "a democracia grega", sem sublinhar que nem mulheres, nem crianças, nem escravos podiam votar. A arte - no Ocidente estendido - tinha um peso e um papel na sociedade até o século XX que foi abrandada em função do aparecimento de outros mecanismos a ocupar o espaço-tempo do mero mortal. É mais fácil ver uma novela na TV que encarar um romance cabeçudo, por exemplo.
Sem qualquer tipo de comunicação, sem observadores, espectadores, leitores, sem gente, enfim, que fique do outro lado, a arte [aquela mais estanque, deixemos claro outra vez] se tornou um mero penduricalho, uma tradição que contamos para nós mesmos na tentativa de se alcançar algo que se perdeu. Ou seja, um processo bastante conservador.
Para piorar, há ainda outro caminho extremamente retrógrado: a busca vazia pela experimentação, que se torna um processo ególatra viciado, sem qualquer embasamento, repetidor, de uma subjetividade exclusivamente individualista. São geralmente as produções mais caricatas, mais vergonhosas.
Bem, esse era o problema da arte há 20, 30 anos - que continuam a reverberar até hoje, infelizmente. Atualmente, a questão é ainda mais complexa.
Um dos caminhos mais adotado pelos artistas atuais na tentativa de começar a se comunicar é muitíssimo bem-vinda: sair dos centros e entrar nas periferias, nos subúrbios. Isso quer dizer que o homem, branco, hétero, cis, adulto, perdeu seu espaço para outros povos surgirem. Um desdobramento disso foi a tentativa de dar voz aos próprios personagens para eles mesmos contarem suas histórias, sem intermédio de ninguém. Procedimentos que merecem todos os aplausos. O problema acontece quando falta imaginação na criação do universo a ser retratado, pintado, desenhado, escrito.
Dois filmes recentes que receberam prêmios e ganham continuamente elogios de nomes respeitados caem nesse problema de encurtamento de horizontes. O primeiro é Arábia, de João Dumans e Affonso Uchoa; o segundo, Temporada, de André Novais Oliveira. Ambos - curiosamente produções mineiras, essa quase periferia - mostram o mundo do trabalhador de baixo estrato social, precário, enfrentando todas as questões dos pobres quase marginalizados em centros urbanos médios. Os protagonistas dos filmes, interpretados por atores amadores ou semi-profissionais, são retratados com proximidade, com intimidade, com carinho, até. Quase nos tornamos amigos deles. Ambos os filmes, contudo, sofrem de um problema de naturalismo excessivo.
Os realizadores das duas obras parecem querer captar uma "realidade" última que tinha ficado escondida após anos de enfoque exclusivo nos grandes centros. Mostrar a banalidade da vida cotidiana de personagens tão profundos quanto quaisquer outros. Interferir o mínimo possível na "verdade", quase como uma espécie de velho-neo-realismo. A impressão que fica é que a função dos diretores foi basicamente falar "ação" e depois "corta", sem se preocupar em nada com o mise-en-scène [o que é obviamente um exagero de minha parte]. Os personagens, com as suas vacilações, suas linguagens pobres, seus universos relativamente restritos, são um "retrato" do momento atual, definitivamente, como o são, também, programas como o BBB, por exemplo [mas qual expressão não seria o retrato do seu próprio tempo?]. Os filmes, entretanto, não mostram qualquer outra potência: são pouco imaginativos, pouco criativos. Ambas as produções abrem quase nenhum ou nenhum espaço para se vislumbrar, se almejar, se pensar algo diferente do que já foi dado.
Suspeito que o fato desses filmes serem bem quistos por uma gama grande de pessoas mostra a nossa atual incapacidade de se pensar um mundo diferente do nosso, a nossa tal crise estética. Porque, se há uma "função" para a arte, em qualquer das suas habilitações, é ampliar o horizonte do possível; é criar possibilidades que antes eram vistas como absurdas; tornar real, portanto material, palpável mesmo, uma utopia. Arte deve criar mundo, não representá-lo.
ps. Me ocorrem dois filmes [poderia citar mais], por acaso pernambucanos, que mostram a abertura de mundos absolutamente novos: Boi neon, de Gabriel Mascaro, e Tatuagem, de Hilton Lacerda. Talvez não estejamos totalmente perdidos.
O progressivismo, que colonizou a cabeça de toda a metafísica do Ocidente nos últimos 200, 300 anos, atingiu a arte de maneira brutal. De uma forma muito grosseira, pode-se dizer que um tipo de narrativa do século XX defende a ideia de que se pode traçar uma fictícia linha reta entre dois pontos imaginários na trajetória artística da Modernidade. A perfeita representação espelhada da "realidade", de um lado, e os experimentalismos ligados à abstração, do outro. A arte deveria percorrer, ao longo da História, esse caminho, de um extremo ao oposto.
Assim, até a invenção de objetos que capturam a "realidade" de forma "mecânica", a arte estava em busca de uma maior perfeição em "retratar" o que há. À arte, portanto, bastava então ser o mais fiel possível ao "real", repetindo-o em todos os detalhes possíveis. Com a fotografia e depois o cinema, a arte buscou outros projetos - principalmente a abstração - , que pudessem torná-la ainda relevante, já que como "cópia" da realidade ela jamais poderia competir com as máquinas. Obviamente ambos os modos de interpretar a arte são, no mínimo, pobres, a começar por pensar uma "realidade" nua, pura, sem qualquer adereço, ou imaginar algum tipo de produção que não tenha algum grau de subjetividade.
De toda forma, essa busca experimental pela abstração - junto a outros inúmeros fatores, como o crescimento da classe média de padrão pequeno burguês nos países ricos, o florescimento de outros modos de entretenimento, mais pueris e leves, a competitividade exacerbada no campo do trabalho, etc. - criou uma cisão imensa entre a produção artística de proa [para evitar usar a palavra vanguarda aqui] e a sua influência na sociedade.
Vale um pequeno parêntese para dizer que nunca houve uma grande influência da arte na sociedade - ao menos não nos moldes genéricos [em qualquer sociedade] e nas definições estanques [i.e. nas belas artes] como se espera ao contar essa história. O que vale são aproximações de pensamentos, tais como quando dizemos "a democracia grega", sem sublinhar que nem mulheres, nem crianças, nem escravos podiam votar. A arte - no Ocidente estendido - tinha um peso e um papel na sociedade até o século XX que foi abrandada em função do aparecimento de outros mecanismos a ocupar o espaço-tempo do mero mortal. É mais fácil ver uma novela na TV que encarar um romance cabeçudo, por exemplo.
Sem qualquer tipo de comunicação, sem observadores, espectadores, leitores, sem gente, enfim, que fique do outro lado, a arte [aquela mais estanque, deixemos claro outra vez] se tornou um mero penduricalho, uma tradição que contamos para nós mesmos na tentativa de se alcançar algo que se perdeu. Ou seja, um processo bastante conservador.
Para piorar, há ainda outro caminho extremamente retrógrado: a busca vazia pela experimentação, que se torna um processo ególatra viciado, sem qualquer embasamento, repetidor, de uma subjetividade exclusivamente individualista. São geralmente as produções mais caricatas, mais vergonhosas.
Bem, esse era o problema da arte há 20, 30 anos - que continuam a reverberar até hoje, infelizmente. Atualmente, a questão é ainda mais complexa.
Um dos caminhos mais adotado pelos artistas atuais na tentativa de começar a se comunicar é muitíssimo bem-vinda: sair dos centros e entrar nas periferias, nos subúrbios. Isso quer dizer que o homem, branco, hétero, cis, adulto, perdeu seu espaço para outros povos surgirem. Um desdobramento disso foi a tentativa de dar voz aos próprios personagens para eles mesmos contarem suas histórias, sem intermédio de ninguém. Procedimentos que merecem todos os aplausos. O problema acontece quando falta imaginação na criação do universo a ser retratado, pintado, desenhado, escrito.
Dois filmes recentes que receberam prêmios e ganham continuamente elogios de nomes respeitados caem nesse problema de encurtamento de horizontes. O primeiro é Arábia, de João Dumans e Affonso Uchoa; o segundo, Temporada, de André Novais Oliveira. Ambos - curiosamente produções mineiras, essa quase periferia - mostram o mundo do trabalhador de baixo estrato social, precário, enfrentando todas as questões dos pobres quase marginalizados em centros urbanos médios. Os protagonistas dos filmes, interpretados por atores amadores ou semi-profissionais, são retratados com proximidade, com intimidade, com carinho, até. Quase nos tornamos amigos deles. Ambos os filmes, contudo, sofrem de um problema de naturalismo excessivo.
Os realizadores das duas obras parecem querer captar uma "realidade" última que tinha ficado escondida após anos de enfoque exclusivo nos grandes centros. Mostrar a banalidade da vida cotidiana de personagens tão profundos quanto quaisquer outros. Interferir o mínimo possível na "verdade", quase como uma espécie de velho-neo-realismo. A impressão que fica é que a função dos diretores foi basicamente falar "ação" e depois "corta", sem se preocupar em nada com o mise-en-scène [o que é obviamente um exagero de minha parte]. Os personagens, com as suas vacilações, suas linguagens pobres, seus universos relativamente restritos, são um "retrato" do momento atual, definitivamente, como o são, também, programas como o BBB, por exemplo [mas qual expressão não seria o retrato do seu próprio tempo?]. Os filmes, entretanto, não mostram qualquer outra potência: são pouco imaginativos, pouco criativos. Ambas as produções abrem quase nenhum ou nenhum espaço para se vislumbrar, se almejar, se pensar algo diferente do que já foi dado.
Suspeito que o fato desses filmes serem bem quistos por uma gama grande de pessoas mostra a nossa atual incapacidade de se pensar um mundo diferente do nosso, a nossa tal crise estética. Porque, se há uma "função" para a arte, em qualquer das suas habilitações, é ampliar o horizonte do possível; é criar possibilidades que antes eram vistas como absurdas; tornar real, portanto material, palpável mesmo, uma utopia. Arte deve criar mundo, não representá-lo.
ps. Me ocorrem dois filmes [poderia citar mais], por acaso pernambucanos, que mostram a abertura de mundos absolutamente novos: Boi neon, de Gabriel Mascaro, e Tatuagem, de Hilton Lacerda. Talvez não estejamos totalmente perdidos.