quarta-feira, 20 de março de 2024

'Daquilo de que somos feitos', Ádamo da Veiga

Em geral, não gostamos de admitir para nós mesmos certos afetos, sentimentos, impulsos que consideramos ruins. O ressentimento é desses. O livro do Ádamo da Veiga, Daquilo de que somos feitos, mostra porém que independente da nossa vontade, essas paixões tristes nos compõem -- a todos.

O livro pode ser comprado aqui

A obra conta a história de um professor de Filosofia, gay e obeso, que vive remoendo as muitas possibilidades de vida que ele poderia ter tido e nunca encarou. Um dia, o fatídico dia em que toda a ação se passa, ele vai viver uma situação extrema que torna as coisas ainda piores.

Antes de continuar, um disclaimer: Ádamo é um grande amigo e a obra foi carinhosamente dedicada a mim. Então essa resenha não é exatamente isenta. Eu encaro essa dedicatória, contudo, não exatamente ou apenas como uma homenagem: mas porque eu sou "especialista" em ressentimento.

Dito isso, podemos voltar ao livro, que é narrado em um fluxo de consciência paranoico, que emula o pensamento repetitivo desse professor que quer começar uma vida nova, se cuidando mais e valorizando suas relações, mas não consegue sair do lugar de reclamações constantes.

Apesar de começar com a mencionada cena extrema - um ex-aluno invade sua aula com uma arma, sequestra a classe e fala que vai matar todos -, "Daquilo..." fala mais sobre os ressentimentos do protagonista e das pessoas ao seu redor. Inclusive, claro, o tal ex-aluno.

O lançamento oficial ocorre dia 13 de abril

Não sobra para (quase) ninguém. A ex-namorada feminista do aluno-problema? Ressentida. Um tio malandro do protagonista? Ressentido. Os colegas professores? Todos ressentidos. Só não são ressentidos aqueles personagens sobre quem o protagonista fantasia.

O grande mérito do livro, assim, é mostrar a arapuca em que nos metemos quando queremos mais parecer justos do que ser justos. O ápice aliás é uma reunião dos professores para saber se expulsam ou não o então aluno. O resultado já sabemos desde a primeira página do livro. Mas...

As boas intenções dos personagens realmente bons não os livram de cometer injustiças em busca de uma vingança em formato de reparação histórica que, em vez de transformar estruturalmente a origem do problema, acaba por apenas desaguar o ódio acumulado por gerações. 


Em vez de in dubio pro reo, devemos julgar aquele arquétipo como representante da sua estirpe. Aliás, esse é outro trunfo do livro: os personagens, salvo exceções importantes no livro, não têm nome: são padrões que conhecemos, apenas exagerados. Em uma palavra: são caricaturas.

"Daquilo de que somos feitos" mostra o quanto estamos afundados na lama do ressentimento, esse afeto reativo que nos torna fracos, e que essa lama, se não elaborada e transformada em um adubo, pode fermentar para um movimento que destrói nossas bases sociais. Como nós bem sabemos.

terça-feira, 19 de março de 2024

Nova Iguaçu, a Laranja mecânica

 Como comentei com um amigo e ele não sabia, vim aqui fazer meu dever de iguaçuano nascido-e-criado na cidade e explicar por que o uniforme do Nova Iguaçu Futebol Clube é laranja - talvez sirva para alguém.

[Killer Bill depois de marcar contra o Vasco]

A explicação é simples: Nova Iguaçu, essa megacidade de quase 800 mil pessoas, a 24o mais populosa do país, a maior em extensão da Baixada, não é conhecida só por conta da Fani e o seu urru, mas por ter sido uma grande produtora de laranjas até o meio do século passado.

Minha mãe, nascida no Jardim Botânico mas que foi morar na cidade na década de 1950 por conta de tretas familiares, dizia que a cidade tinha um cheiro encantador de laranja que dava para sentir até da estação de trem.

Confirma o site da prefeitura da cidade:

"No século XX, a principal atividade... passa a ser o plantio de laranjas. Os pomares de Nova Iguaçu se estendiam por toda a Est. de Madureira, Cabuçu, Marapicu, alcançando também Itaguaí. Na época, Nova Iguaçu ficou conhecida como 'Cidade Perfume' por causa do cheiro das frutas"

De Nova Iguaçu saíram [quase] todos os outros municípios do que hoje é considerada a Baixada Fluminense: "Nova Iguaçu perdeu Duque de Caxias (1943), Nilópolis e São João de Meriti (1947). Nos anos 90, foi a vez de Belford Roxo e Queimados (1990), Japeri (1991) e Mesquita (1999)".

Do passado de laranjas, ficou pouca coisa, como um mural sobre o supermercado onde eu ia comprar sempre leite, pão ou farinha para a minha mãe. O supermercado mudou de lugar e um banco agora o ocupa o espaço. O mural continua.

[peguei a imagem no google maps]

E, claro, a camisa do time de futebol que está na final do Campeonato Carioca deste ano. Por essas e outras que eu posso dizer que nessas partidas contra o Flamengo, sou Fluminense e Nova Iguaçu desde criancinha.

sexta-feira, 15 de março de 2024

Eudaimonia

Ninguém menos que Aristóteles, chamado na Idade Média apenas de “o filósofo”, diz que o objetivo da vida é a felicidade. Felicidade, para ele, como se sabe, era eudaimonia. Numa tradução literal, eudaimonia quer dizer algo como ter um bom “daimon”. Daimon é uma figura mística do panteão da antiguidade clássica, uma menos conhecida. Sua função, porém, aparece em outras civilizações e é até bastante popular, desde, ao menos, as Mil e uma noites – e os filmes da Disney. Seria parecido com o jinn da mitologia muçulmana, que são mais conhecidos em português brasileiro como gênios, aqueles que, em algumas versões mais conhecidas, ficam aprisionados em lamparinas. São figuras com poderes sobrenaturais, mas que não necessariamente atuam ao lado das pessoas com quem criam uma relação. No caso tradicional das lamparinas, ao ser libertado o gênio concede três desejos para o seu libertador e logo se sente livre para seguir adiante. Outra forma de entender esses daimons são os anjos da guarda. Porém, como é costume no pensamento cristão, o caráter de imprevisibilidade do personagem é totalmente apagado para que ele fique unidimensional. Cada pessoa tem o seu próprio daimon, como acontece com os anjos da guarda, mas os daimons são imprevisíveis como os jinns. Seria, então, um diabinho da guarda. Não o diabo da tradição a que estamos mais ligados, a encarnação do mal absoluto, mas alguém que poderia atuar de forma parecida com um trickster – para ficar ainda em figuras mitológicas. Um malandro, um embusteiro que nos acompanha e pode, sem que percebamos, nos pregar peças. Daí a fórmula de Aristóteles. O objetivo da vida é conseguir se dar bem com o próprio daimon, com esse ser imprevisível que está sempre ao nosso lado, nem sempre para nos ajudar. É estar preparado para qualquer número que cair dos dados jogados por ele, ter alternativas, saber saídas, inventar novos movimentos, tentar dançar conforme a sua – dele – música.