Em geral, não gostamos de admitir para nós mesmos certos afetos, sentimentos, impulsos que consideramos ruins. O ressentimento é desses. O livro do Ádamo da Veiga, Daquilo de que somos feitos, mostra porém que independente da nossa vontade, essas paixões tristes nos compõem -- a todos.
O livro pode ser comprado aqui |
A obra conta a história de um professor de Filosofia, gay e obeso, que vive remoendo as muitas possibilidades de vida que ele poderia ter tido e nunca encarou. Um dia, o fatídico dia em que toda a ação se passa, ele vai viver uma situação extrema que torna as coisas ainda piores.
Antes de continuar, um disclaimer: Ádamo é um grande amigo e a obra foi carinhosamente dedicada a mim. Então essa resenha não é exatamente isenta. Eu encaro essa dedicatória, contudo, não exatamente ou apenas como uma homenagem: mas porque eu sou "especialista" em ressentimento.
Dito isso, podemos voltar ao livro, que é narrado em um fluxo de consciência paranoico, que emula o pensamento repetitivo desse professor que quer começar uma vida nova, se cuidando mais e valorizando suas relações, mas não consegue sair do lugar de reclamações constantes.
Apesar de começar com a mencionada cena extrema - um ex-aluno invade sua aula com uma arma, sequestra a classe e fala que vai matar todos -, "Daquilo..." fala mais sobre os ressentimentos do protagonista e das pessoas ao seu redor. Inclusive, claro, o tal ex-aluno.
O lançamento oficial ocorre dia 13 de abril |
Não sobra para (quase) ninguém. A ex-namorada feminista do aluno-problema? Ressentida. Um tio malandro do protagonista? Ressentido. Os colegas professores? Todos ressentidos. Só não são ressentidos aqueles personagens sobre quem o protagonista fantasia.
O grande mérito do livro, assim, é mostrar a arapuca em que nos metemos quando queremos mais parecer justos do que ser justos. O ápice aliás é uma reunião dos professores para saber se expulsam ou não o então aluno. O resultado já sabemos desde a primeira página do livro. Mas...
As boas intenções dos personagens realmente bons não os livram de cometer injustiças em busca de uma vingança em formato de reparação histórica que, em vez de transformar estruturalmente a origem do problema, acaba por apenas desaguar o ódio acumulado por gerações.
Em vez de in dubio pro reo, devemos julgar aquele arquétipo como representante da sua estirpe. Aliás, esse é outro trunfo do livro: os personagens, salvo exceções importantes no livro, não têm nome: são padrões que conhecemos, apenas exagerados. Em uma palavra: são caricaturas.
"Daquilo de que somos feitos" mostra o quanto estamos afundados na lama do ressentimento, esse afeto reativo que nos torna fracos, e que essa lama, se não elaborada e transformada em um adubo, pode fermentar para um movimento que destrói nossas bases sociais. Como nós bem sabemos.