sexta-feira, 28 de junho de 2002

Este é um texto original. Não tem parentesco com nenhum outro. E só existe porque outros existem. Quem escreveu isto não acredita em criações. Mas em adaptações. Ele acredita em “eu”, mas, dessa vez, não dirá nada. Esse texto conta a história de alguém que tinha que escrever algo. Esse algo tinha que ser lido, em voz alta, numa festa. Quem escreveu isto não se sente bem assim. Não gosta de ler nada em voz alta. Muito menos algo seu. Não gosta de aparecer. Gosta das sombras, gosta dos esconderijos, gosta daquelas horas em que, de repente, sem explicação, piscamos e perdemos o lance fundamental. Ele aparece nessas horas. De relance, como se fosse a inclusão de um fotograma em um vinte e quatro avos de segundo. Talvez todos viram, mas ninguém percebeu a diferença. Ou ficaram tão incomodados que preferiram esquecer.

O texto fala sobre um garoto de vinte e poucos anos, um garoto comum, como qualquer um que a gente encontra nos cinemas nos dias de semana, um garoto no qual tropeçamos ao andar pelas ruas com as mãos nos bolsos e que deve escrever algo para ser lido em uma festa. Uma festa que ele não conhecia quase ninguém. Ele aproveitou e escreveu algo sobre um garoto que deveria escrever algo. E por coincidência, o personagem principal, escreveu algo sobre um garoto que deveria escrever algo para ser lido em uma festa. E não acabou. Como se tivessem tirado uma foto de uma televisão vazia e transmitissem diretamente para a televisão. Veríamos o nada absoluto.

Ele imaginava as pessoas na festa. Sentia-se longe de tudo e de todos, não porque quisesse, mas porque não se via capaz de comunicar-se à altura de todos. Essa festa tinha um particular: todos deveriam escrever algo para serem lidos. Como se todos se desnudassem na frente de todos. E se todos estivessem desnudos, ninguém estaria nu. Como se o nu fosse relativo. E como se qualquer coisa seja relativa, bastando querer.

Todos, então, escreveram sobre eles mesmos, sobre a festa e sobre o motivo da festa. O aniversário de alguém que todos prezam, estimam e, principalmente, gostam. Alguém que todos querem ficar juntos, todos querem, no mínimo, sugar alguma coisa, trocar, falar, ouvir. Essas coisas. Meio como a metáfora batida de fonte e beber água. Meio como numa troca por osmose. Ao ficar por perto, o mais concentrado recebe solvente do menos. Tiveram ainda aqueles que escolheram textos antigos sobre qualquer coisa, mas que eles acharam bons. Quem escreve este texto não teve criatividade suficiente. Escreveu uma história sem fim. E como todas as histórias sem fim, sem importância, sem motivo e sem razão. A razão é escrever, e basta. E basta? Para perguntas complicadas o melhor é refugiar-se.

Quem escreve este texto deve estar num canto, se eu o conheço bem. Provavelmente bebendo uma cerveja e observando a diversidade da fauna humana. Com a observação veio o medo, provavelmente. Que, com a procura pela diferença a todo custo se perde a noção do diferente. Que, com a prioridade dos valores de outras gerações, percebe-se uma falha no processo de inovação. Que, com a assimilação de uma cultura que provém das beiradas, de uma terra abaixo do solo, aceita-se estar no foco da luz e longe da originalidade. Quem escreve o texto se olha e fica completamente assustado.

Vocês já devem ter percebido que a história não tem fim. Que tudo depende da vontade de vocês. Que ao mero sinal é interrompida a sentença ou, quiçá, a palavra. Devem ter percebido que a história não há sequer longe de nós mesmos. Nós somos recortes encontrados em páginas. Nós somos retratos em letras. Nós somos descritos, nós somos destrinchados, nós somos desacreditados por qualquer um. Quando todos perceberem o poder que tem ao construírem letras, palavras e sentenças, estaremos perdidos, ou completamente salvos. Mas é mais fácil nos conhecermos do que todos saberem o poder das letras. Quem escreve fica triste com tanto talento desperdiçado. E só.

Então vem a hora de ir embora. Como ir embora sem que ninguém perceba. Como desaparecer, sumir, não existir, entrar debaixo da areia que compõem o solo e ir se esgueirando até um porto seguro. Podem citar a maneira francesa de fazer esse tipo de saída, mas ainda é pouco e arriscado. A melhor maneira de não ser encontrado é nem aparecer. Então, quem escreve este texto não foi na festa. Não quer falar em público e tem medo do que pode acontecer quando isso ocorrer.

Ou ainda quem escreveu esta história deve fazer algo ainda nessa noite, mas mesmo assim tenta enviar o texto que foi pedido e encomendado. Tudo bem que não é nenhuma obra prima. Apenas uma história sem fim. Um exemplo visual: a cobra mordendo o próprio rabo. Nada demais. Ele escreve a história que já foi contada.

Quem escreveu esta história até que não gosta de público, quiçá falar em público. Mas ele não se importaria de ir à festa e dar qualquer tipo de desculpa para que ele não falasse em público. Isso é realmente fácil. O problema é que sempre há problemas que impedem que tudo transcorra na mais absoluta ordem. Os já famosos entraves. Aqueles que ignoram todas as horas marcadas na agenda. E por isso tudo, quem escreveu este texto, provavelmente o atual dono do “eu”, não foi, não está, nem vai à festa na sexta.
1. Interior/ quarto de Gregório/ manhã / luz vindo da janela

A câmera abre o quadro a partir do teto mostrando o garoto deitado de barriga pra cima na cama, de olhos fechados.
A câmera desce devagar na direção dele e centra no rosto com o plano fechado.
Ele continua com os olhos fechados

Off (voz do Gregório): Numa manhã ordinária, Gregório Samuel acordou e percebeu que seu coração havia parado de bater.

Nesse momento, Gregório abre seus olhos.
Ele se levanta e fica sentado. A câmera sai do quarto e entra no quarto da mãe, que está saindo no exato momento. Na porta do quarto de Gregório, ela fala para ele se apressar;

Lucinda: Ta na hora. Desce.

A câmera desliza paralela ao corredor até a porta do segundo quarto através da qual pode-se ver o garoto entrando no banheiro. A câmera avança em direção do banheiro e focaliza Gregório e depois o espelho. Ele se olha no espelho. O corpo de Gregório está pálido e azulado. Gregório coloca sua mão no peito procurando a pulsação. Por último, a câmera faz um close de sua mão fechando a torneira que estava pingando.

1.1 – (12ª a ser filmada) Corredor / manhã

Gregório sai do banheiro cambaleando e se direciona para o quarto a fim de trocar de roupa

2. Interior/ escada-sala-cozinha

Gregório, já vestido para ir ao colégio, desce as escadas, (a câmera vai atrás dele) passa pela sala e vai para a sala de jantar. Vê seu pai que lê jornal numa cadeira à mesa. Sua mãe circula pela sala de jantar lendo correspondências e trazendo coisas. Ele senta entre o pai, que está na cabeceira da mesa, e a irmã. A câmera faz um travelling por detrás dele, passa por trás do pai lendo o jornal e fica em frente ao Gregório focalizando os dois irmãos. Ela começa a implicar com ele. A mãe se senta em frente ao Gregório, embaixo da câmera. Ela vê a situação, ignora a situação e o apressa:

Lucinda: Gregório, anda! Olha a hora do colégio.

Ele se levanta em direção à sala e se aproxima um pouco da cadeira da irmã. Ela pega o braço e se assusta com a temperatura dele.

Ana Luisa: está frio!

Ele se desvencilha da irmã e sai em direção à sala. A câmera o acompanha sem zoom. Antes de sair da sala de jantar ele cai no chão.

3. Interior/ sala de estar

Gregório acorda com a empregada umedecendo seu rosto com uma tolha. A câmera entra em foco com o rosto da Alzira. A empregada se afasta com um sorriso maternal no rosto.

4. (11ª a ser filmada) Interior/ sala de estar

Gregório tenta se levantar, mas percebe que pode cair.
Alzira está na entrada da sala. Câmera está atrás de Alzira e pega Gregório no segundo plano. Ele fecha e abre os olhos.

Alzira: você está bem?

Gregório balança a cabeça confusamente. Depois olha para Alzira como que perguntando algo.

Alzira: Teu pai foi trabalhar, tua irmã ta no colégio e sua mãe foi para o orfanato. Hoje é o dia dela visitar as crianças. (alguns segundos de silêncio) Bem, se precisar de mim, estou na cozinha.

Alzira sai da sala. Gregório consegue se sentar com muito esforço. Depois de um tempo, ele se levanta e sobe as escadas em direção ao seu quarto.

5. (8ª a ser filmada) Interior/ quarto / tarde / sugestão: câmera em tripé ao lado da cama

Gregório entra no quarto e fecha a porta. Sente frio, muito frio. Senta na cama. Liga o rádio. Começa mudar de estação, nenhuma presta. Sente-se entediado. Desliga o rádio. Sente-se fraco. Deita na cama. Piora cada vez mais. A câmera se aproxima de Gregório. Movimenta os lábios numa tentativa de chamar alguém. Não consegue. Tenta puxar o ar, vê que não respira, arregala os olhos, desesperado. O susto inicial dá lugar ao cansaço. Sente os olhos pesados e se vira de frente para a janela. Ele fecha os olhos. Fade out.

6. (1ª a ser filmada) Seqüência - Interior / dia

Imagens retratando a casa e os relacionamentos da família; sons confusos sobrepostos. Sugestão: filmar com o diafragma com menos luz que o necessário – diafragma mais fechado que o pedido;

Idéias:

6.1 - Gregório vomita no banheiro com a família olhando da porta impassível; sugestão: câmera dentro da banheira na mão, enquadrando Gregório, depois enquadra a família na porta do banheiro;

6.2 - Gregório perambula pela casa e os familiares o observam como num túnel; sugestão: podemos utilizar o corredor do segundo andar que liga o quarto ao banheiro. A câmera poderia ficar parada no final do corredor e Gregório poderia caminha na sua direção. E a câmera poderia ser Gregório (câmera subjetiva).

6.3 - Gregório deitado na cama sendo sacudido pela mãe; Sugestão: Câmera atrás da mãe;

7. Interior / quarto / dia (repensar na possibilidade de refazermos essa cena)

Aos poucos a câmera volta a captar imagens como se fossem os olhos de Gregório se abrindo de novo em plano aberto. Sua mãe está nervosa porque ele ainda está no quarto àquele horário. Ele tenta se levantar, mas não consegue. Permanece deitado. Imóvel. Só movimenta seus olhos. Antes de fechar seus olhos novamente, escuta a voz de sua mãe.

Lucinda: Gregório, está na hora do almoço. Não vou te chamar duas vezes.

Lucinda sai do quarto. Gregório tenta se apoiar nos cotovelos, mas escorrega e cai deitado mais uma vez na cama. Fecha os olhos. Sente-se cansado. A mãe de Gregório reaparece. Fita-o por muito tempo. Dá meia volta. A porta fica entreaberta. No corredor Lucinda fala com Alzira.

Voz de D. Lucinda: Alzira, que cheiro ruim é aquele no quarto de Gregório?

8. (6ª a ser filmada) quarto / tarde / sugestão: câmera pegando Gregório de perfil na cama

Ele sente a boca seca. Os olhos sem lágrimas. O nariz ressecado. Olha para a janela e cochila mais uma vez. Alzira entra no quarto e coloca o prato de comida na mesa de cabeceira. Ao escutar o barulho do prato na mesa, Gregório abre os olhos. Ela não demora muito tempo no quarto. Vira-se, coloca a mão na frente do nariz e da boca e sai. Deixa a porta aberta. Gregório abre e fecha os olhos.

9. (9ª a ser filmada) Quarto de Gregório /tarde

Gregório é acordado com o som vindo do quarto da sua irmã.

10. (5ª a ser filmada) Quarto da irmã/tarde/câmera da escada

Ana Luisa está deitada balançando as pernas. O som incomoda Gregório. Ana Luisa sabe que ele não gosta da música e não se importa. Ela pára de balançar as pernas ao chamado de D. Lucinda

D. Lucinda: Ana Luisa, ande rápido. Você está atrasada para o balé.

Ana Luisa levanta a cabeça, entrando no quadro e responde para a mãe sem transparecer a insatisfação que sente.

Ana Luisa: Já estou descendo, mãe.

Ana Luisa levanta-se, desliga o rádio e se encaminha para a escada repetindo em voz baixa para que a mãe não escute, em tom irônico a fala da mãe enquanto sai do quarto em direção à escada. A sua voz vai diminuindo até sumir.

Ana Luisa: Ana Luisa, ande rápido, Ana Luisa, você está atrasada, Ana Luisa, você vai chegar...


11. (10ª a ser filmada) Quarto de Gregório /tarde

Gregório então se vira na direção da janela e consegue dormir de novo.

12. (7ª a ser filmada) Quarto/ tarde (4 horas) / sugestão: Câmera começa acompanhando Alzira e passa para Gregório que está deitado imóvel durante toda a cena

Alzira entra no quarto de Gregório. Ela encontra o prato de comida intacto. Sai rapidamente com a mão na boca e no nariz. Gregório dorme.

13. (2ª a ser filmada) Sala de estar/ início da noite

D. Lucinda chega em casa com aspecto de cansada. Encontra Seu Rodolfo quase imóvel em frente à televisão fumando cigarros (ou só vendo TV). Alzira aproxima-se de D.Lucinda cabisbaixa.

D. Lucinda – (voz com um tom inquisidor, meio nervoso, meio angustiado) Cadê o menino?

Alzira – (tom ainda meio maternal, meio com medo) Está lá em cima, D. Lucinda, o menino não desceu para nada hoje.

A mãe fecha o semblante e encaminha-se em direção da escada.

14. (3ª a ser filmada) Corredor/ início da noite / sugestão: Câmera estaria parada no corredor próximo ao banheiro e observaria todo a movimentação de D. Lucinda.

D. Lucinda sobe correndo as escadas e abre a porta do quarto de Gregório. A cama está desarrumada, mas sem ninguém deitado. D. Lucinda sai ainda mais nervosa do quarto dele e abre a porta do quarto da irmã e não encontra ninguém. Abre ainda a porta em frente ao banheiro e não encontra nada. Vira-se e abre a porta do banheiro vagarosamente.

15. (4ª a ser filmada) Banheiro/ início da noite / sugestão: Câmera em cima do vaso sanitário na mão;

D. Lucinda entra no banheiro e observa as roupas do Gregório jogadas no chão. Fica de costas para a banheira. Começa a falar com o garoto andando de costas na direção da banheira. A câmera acompanha o andar dela com o quadro fechado no seu rosto.

D. Lucinda: Gregório, você não pode passar o dia inteiro em casa...

A câmera passa por ela que senta na borda da banheira e procura a cabeça de Gregório que está inerte. A câmera pára no rosto de Gregório fechando nos seus olhos enquanto ela fala.

D. Lucinda: você não pode faltar os seus compromissos. Todos nós temos as nossas responsabilidades.Temos que cumprir com aquilo que esperam da gente.

OBS: Não esquecer de fazer algumas cenas dos detalhes da casa; sugestão: os lustres, enfeites, a sala vazia, a mesa da copa vazia. Fazer também algumas cenas de close do rosto com Gregório;

quarta-feira, 19 de junho de 2002

Ordem e desordem. Novamente. Ordem e desordem. Era uma pequena roleta com apenas esses dois resultados. Ora um, ora outro. É sempre assim, disse um homem que acabara de abaixar o jornal. Todos nós apreensivos em volta da mesa. E ele ali, no canto, lendo jornal. Deu-me uma raiva logo no início que minha razão soube controlar. Meu ímpeto era ir atrás dele e estrangula-lo. Como ele poderia estar parado no canto? Você está fora da moda, meu rapaz, ele disse olhando para mim. Não devemos travar nossos instintos, ele continuou a falar. Levantou-se e colocou o jornal na sua cadeira como se estivesse guardando lugar para alguém. Ergueu os pulsos em sinal de combate. Percebi que suas pernas fraquejavam. Mal se agüentava em pé. Os outros tinham parado de reparar na roleta e miravam-nos. Senti-me um tolo por ter vontade de espancá-lo. Ele abaixou a guarda, mas manteve os olhos grudados nos meus. Sente-se melhor agora, ele me perguntou. Lutar contra os ímpetos é um ato de extrema inexperiência, ele continuou falando, Sumir com as vontades é impossível. Você tem que aceita-las naturais como são. Use a cachola nesse momento, falou e apontou a cabeça com um dedo. Ele era um velho de pele negra enrugada, cabelos quase totalmente brancos e crespos e um bigode falhado em cima da boca torta. Saiu capengando da sala. E eu fui atrás.

Ele se encaminhou para uma sala onde nunca eu tinha estado antes. Uma sala com móveis em madeira antiga escura e quadros, vários quadros na parede. O velho caminhava na minha frente capengando. Ia olhando e apontando para os quadros. Vê esses quadros, disse por fim. Apenas balancei a cabeça afirmativamente. Tinha certeza que ele sabia que eu reparava em cada detalhe dele. Todos diferentes entre si, completou. Mas fazem parte da mesma estrutura. Estrutura que eu costumo dividir em duas partes: avanço e cristalização. Você, ele virou-se e apontou um dedo indicador grosso para mim, acha que estamos vivendo uma época das trevas, não acha? Não respondi. Uma era que não se pode mais pensar. Que todas os formatos do raciocínio são tolhidos, onde a irracionalidade reina. Não tenho as respostas para as suas dúvidas. E se tivesse, diria que não as tenho. Ele continuava andando por um corredor com portas que eu não podia imaginar, nem conseguiria naquele momento, aonde levariam. Ele continuava andando capenga. Reparei, pela primeira vez, na bengala que ele se apoiava e nas calças pretas puídas. Venha comigo, ele disse e eu avistei, por cima do ombro dele, uma porta na frente.

Entramos pela porta com rodapés de madeira escura. Era a maior seqüência de estantes de livros que já pode ter existido no mundo. Eram incontáveis. Inconcebíveis. Perdia-se no horizonte. Você acha que tudo que já podia ser inventado deve estar aqui, não? Ele me perguntou mais uma vez, e eu não o respondi, como de costume. As estantes eram altíssimas. Andávamos pelo corredor, que me parecia principal, e logo depois descobri ser apenas um terciário, e pude enxergar algumas pessoas em cima de escadas para poderem alcançar os últimos volumes das estantes. Há muita coisa aqui, disse, muita coisa. O que você lembrar que existe está aqui. Provavelmente todas as obras catalogadas do mundo estão aqui. Está é a coleção de todas as bibliotecas do mundo. Parou de repente em uma esquina e apanhou um livro a esmo. Folheou-o e o fechou. Pegou outro e repetiu a seqüência. Virou-se e me entregou. Tome, disse apenas. Um livro se chamava simplesmente A e continha letras jogadas sem ordem. Não é no seu idioma, disse ele ao reparar minha estranheza perante o conteúdo do livro, nem em nenhum outro que existe e que pessoas falam. Não é um idioma. Não é nada. São apenas algumas letras jogadas sem ordem dentro de papel. O outro era uma versão da Ilíada. Todas esses livros já foram criados, disse ele. E nós os misturamos e os tiramos de ordem, e colocamos letras sem nexo em seqüência. E repetíamos frases até terminar. Livros inteiros só com uma frase. Depois só com palavras, depois só com letras e rabiscos. Até há um livro totalmente em branco. Ele fez um pequeno silêncio e continuou andando.

Já catalogamos tudo. Disse ele. Está na hora de criarmos o novo. Para podermos catalogar o que for feito. Essa é a época da irracionalidade, não acha? Nada mais irracional que fazer algo impensado. Nada que o raciocínio pudesse ter captado. Algo inexplicável. Vamos escrever nas entrelinhas. Vamos esmiuçar cada frase, esticando-a até o limite, sem sair do seu limite. Ou vamos ultrapassar o limite, vamos desistir de termos vasilhames. Vamos criar.

Tínhamos chegado na porta. Ele apenas girou a maçaneta e bateu no meu ombro antes que eu pudesse falar qualquer coisa. Comecei a descer as escadas na frente da porta principal e pude escutar ele falando, Desconstrua a ordem e crie a desordem. Organize a desordem e ache a ordem. Desconstrua a ordem e crie a desordem. Organize a desordem...
Falar que a ideologia acabou já virou rotina. Demonstrações do fim dos ideais são fáceis. Descobrir em qual campo a política está atuando é que é o complicado. Principalmente no Brasil.

Normalmente todos os políticos aparecem na TV ou tem seus rostos estampados nos outdoors ligados à tríade de palavras que, parecem, abrir todas as portas: saúde, educação e segurança. Como recurso de visualização, podemos citar um presidente que dizia fazer “tudo pelo social”. Lembram?

E é bem comum, também, que, ao serem empossados, esses mesmos governantes, que lutam por uma vida mais igualitária, que querem acabar com as disparidades sociais brasileiras, quando assumem os cargos públicos os quais foram eleitos, se tornem econômicos (com os famosos cortes para zerar a conta) nessas pastas. Hoje em dia o grande “vilão” se chama lei de responsabilidade fiscal. Mas, com certeza, já houve outros culpados.

Então, chegamos numa nova eleição, em ano de copa do mundo de futebol, e temos que eleger presidente, governador, senador e deputados federais e estaduais. Todos terão as mesmas posturas ditas de “esquerda” e atitudes de “direita”. E teremos encontros no mínimo curiosos. Maluf desprezando o PT para atacar o Alckmin, os ex-inimigos declarados ACM e Ciro apertando as mãos para os fotógrafos e (esse eu espero ansioso) o Quércia abraçando o Lula.

Para o governo do Rio não teremos nenhuma surpresa. A dita esquerda, com seus quinze candidatos de sempre, e a direita representada por uma mulher só. Aliás, essa será a eleição das mulheres. Serão três: Benedita da Silva (atual governadora em exercício), do PT, Rosinha (ex-Matheus) Garotinho do partido do marido, PSB e a Solange Amaral, apoiada pelo prefeito da capital, do PFL. Além do prefeito de Niterói, filho do ex-governador do estado, Jorge Roberto Silveira, do PDT.

Bené terá ao seu favor todo o poder da máquina admistrativa. Mesmo ela tendo ficado por pouco tempo no governo, e não tendo feito nada de importante para mostrar em seus programas, ela pode argumentar que em oito meses (o período que ela permanecerá no poder) não dá tempo para consertar toda a lambança que o seu antecessor fez. Bené terá também os votos cativos na legenda do seu partido, mas amargará os descontentes com o seu nome, considerado muito leve para um petista.

Rosinha Garotinho, como seu próprio nome diz, vai deixar que a candidatura e a exposição de seu marido a empurre para frente. Como ela nunca teve experiências em cargos públicos, ela deve se comportar como um coco na maré. Vai estar sempre ao lado do presidenciável e responderá as eventuais perguntas de repórteres iniciando com: “eu, enquanto (sic) mulher do criador do piscinão de ramos...”.

Talvez a candidata do PFL seja o político menos conhecido de todos. Por mais que tenha experiência pública, ela não é casada com nenhuma figura do ramo, não é filha de ninguém do ramo, nem é favelada, pobre, preta e casada com artista global. Ela é a queridinha do atual prefeito do Rio (e criador profissional de factóides) César Maia. Secretária de Governo dele, ex-vereadora seu nome ainda não tinha sido explorado para fora dos limites da capital. Provavelmente ela vai incorporar o discurso de um governo responsável e maduro, com linguajar técnico e econômico. Bem ao estilo do seu padrinho.

Já o Jorge Roberto Silveira vem de um governo com alto índice de aprovação popular, lá do outro lado da poça. No seu terceiro mandato de prefeito de Niterói, ele conseguiu colocar a cidade com uma das melhores qualidades de vida do estado. Junte a isso um pai governador lembrado por oito em dez pais como um dos melhores governadores do estado da Guanabara e temos um ótimo candidato. O seu calcanhar de Aquiles é o seu secretariado que nem sempre se opõe ao “jeitinho” e conhece bem as frases “levar o por fora”, ou “o da cerveja”. O PFL adora usar esse tipo de informação e, com certeza, usará.

Porém na TV (é óbvio que) todos aparecerão carregando criancinhas no colo, conversando com velhos e se mostrando simpático com todos que os cumprimentarem. Os que estão no poder exaltaram seus feitos, e os que não estão meterão dedos em feridas. Todos falarão mal da segurança, uns culpando aos outros, e não chegarão a nenhum consenso. Os programas de governo (se existirem) não fugirão do clichê social. Enfim, todos terão os mesmos rótulos estampados na testa. O problema dessa vez será a ausência de diferenças gritantes no conteúdo.

sexta-feira, 14 de junho de 2002

meus triângulos, indo de encontro com alguns conhecimentos adquiridos por próximos, têm apenas três lados.

às vezes me incluo, às vezes apenas observo. como se impedisse que os bombeiros chegassem ao circo que pega fogo.

uma coisa é certa: nos últimos quatro anos um dos lados tem sempre o mesmo tamanho, a mesma cor, os mesmos ângulos, os mesmos olhos e o mesmo sabor. sou tentado e afastado. posso segurar, mas nunca provar. o lado diz que já me deu uma única oportunidade quando ainda era um bobo maior que o atual, se isso é possível. ela me olhou e poderia ter mudado toda a sua vida. que mudou muito nesses quatro anos. ela quer mais, mas não quer. ou não pode, ou não deve, o certo é que não faz. tenta-me, tenta-me, todos os dias só com a sua imagem. já seria o suficiente. só o seu passarelar na minha frente.

e ela ri. ri para mim, ri comigo, só para que eu me sinta bem.

realmente impressionante.

outro dia falo de um outro lado. mas esse é uma constante.

sexta-feira, 7 de junho de 2002

quando há humor, deve-se aproveitar.

pode-se até chegar a conclusões que serão utilizadas livremente.

por exemplo. é bem provável que não haja caminho ou trilha pré-determinada.

e o motivo é simplório. caso houvesse, alguém, provavelmente, já teria desvendado. e esse alguém saberia o que caminhar e seria um extremo chato. seria o dono da verdade. poderia dizer o que é certo e o que é errado.

o que me intriga é que li ontem o JL Borges dizendo que a falta de rotina já é um rotina. basta desvendá-la. e isso é interessante.
e se chegássemos numa rua comum, onde outra rua comum bifurcasse, onde houvesse dois sinais de trânsito, duas faixas de pedestre. Onde eu pudesse ver pessoas vindo de outros lugares incomuns, impensados.
e se chegássemos nessa rua através das não-escolhas. de não ter escolhido nada.

ou se eu tivesse escolhido tudo, todos os mínimos detalhes, desde a minha profissão (que até hoje não sei) até a cor das minhas meias, se escolhesse entrar na rua anterior, e dado uma volta, será que ainda sim estaria aqui?

será que o caminho independe da vontade?

será que temos uma direção?

será que a repetência de rotinas incomuns pré-destina uma rotina?

há diferença entre a minha vontade pura e simples e o meu raciocínio?
e se houvesse uma dosagem entre os dois? a cada dosagem diferente, haveria outro caminho, e assim, outra rua, outra esquina?

as esquinas, e isso eu tenho certeza, dizem muito mais que o que entendemos.