sexta-feira, 21 de março de 2003

Óbvio ululante

Óbvio ululante. Seria assim que Nelson Rodrigues iria tratar da Guerra do Bush. É óbvio ululante que Saddam Hussein é um ditador cruel, sanguinário, genocida e todos os outros adjetivos que os americanos e ingleses dão para ele. Porém, uma invasão norte-americana, com o suposto apoio de trinta países, da Inglaterra até alguns nanicos, e sem o da onu, mostra até onde vai a empáfia dos eua. Esse tipo de atitude unilateral mostra que nenhum país está protegido de uma intervenção americana para proteger os interesses deles. O que é assustador.

O que não é considerado óbvio ululante, e por isso mesmo tão ou mais assustador, é a falta de atitude prática de todo mundo em relação à violência que vive à nossa espreita.

Não é o caso só de culpar o governo, que até tem a maior parcela da culpa, mas também de olhar para cada umbigo. E não é um problema para ser resolvido com passeatas emocionantes e inúteis. Mas uma questão de tomar uma atitude que traga resultados mais imediatos.

Enquanto ficarmos somente em frente à televisão assistindo anestesiados ao noticiário das oito, viveremos recebendo notícias de pais de amigas assassinados na porta de casa durante um passeio com o cachorro. Ou que o irmão de doze anos de um amigo foi agredido na saída de um jogo de futebol, sem que as autoridades nada fizessem. Ou presenciar um tiroteio num restaurante que estamos acostumados a freqüentar no meio de um dos bairros ditos pacíficos da cidade.

Não sei se posso chamar, mas arrisco. Vivemos numa guerra civil. Acredito que o termo não é nem próximo de original, entretanto é o mais adequado para todas os problemas que enfrentamos.

Durante décadas, a classe média fez que não viu o crescimento expressivo das populações marginais. As favelas cresciam e o “estabilishment” varria a imagem para debaixo do tapete. Agora, o morro desce para pedir seu quinhão.

É razoavelmente comum encontrar argumentos de que basta eliminar o povão excluído que vive na periferia. Como se de um dia para o outro isto acabasse com todos esses problemas. A idéia é tão fraca que se projetarmos um período de vinte anos, todos os problemas estarão de volta.

Contudo, o caos urbano provocado pelo estado de violência cotidiano não se resolverá com atitudes somente estruturais. Aquela combinação famosa em campanha política de “saúde e educação”. Elas são indispensáveis, mas já viraram óbvios ululantes.

Uma tentativa seria levar a presença do Estado para essas comunidades de uma maneira diferente do que há agora. Para pobre, o único braço do Estado que chega até ele – o policial – é sinônimo de tiroteio e problemas. Temos que levar possibilidades de inclusão. Temos que mostrar que não há diferença entre o cara que desce o morro todo dia e aquele que vive freqüentando cinemas, boates de grife e points badalados.

Temos que lidar com inteligência com a situação. Monitorar todas as regiões mais violentas. Criar estatísticas não-camufladas de crimes. Mapear a cidade e promover atitudes direcionadas. Li certa vez, num artigo do Xico Sá para o Nomínimo, que o governo do PT no Rio, durante os oito meses que ficou ativo, implementou alguma coisa parecida. Tudo, claro, jogado fora agora.

Tomar atitudes mais severas em relação aos chefes das grandes quadrilhas. O sistema penitenciário é feito para re-socializar o preso, porém citem-me um caso em que isso aconteceu? Não é o caso de desistir da base de atitude, a prisão deve continuar tendo como meta a re-inclusão do delinqüente na sociedade. Mas, o que dizer dos grandes comandantes dos comandos, para ser bastante redundante, que estão presos? Não é uma defesa da pena de morte ou coisa parecida, apenas um pedido humilde para impedir que eles tenham o mesmo tipo de poder dentro ou fora da cadeia. Como diria Nelson, o óbvio ululante.

Não tenho a mínima idéia se essas atitudes são as corretas ou se irão dar algum resultado diferente. Porém, se continuar assim, o futuro é mais do que certo. Já ultrapassamos os números de mortos de alguns países em conflito ou até em guerra. Já há pessoas que não saem em determinadas horas de casa por medo. Já há casos de cidadãos que acumulam dezenas de assaltos. Não quero imaginar aonde chegaremos.

Já colecionamos uma nomenclatura toda própria sobre o assunto. Cidade sitiada, cidade partida, em guerra. Mas parece que o futuro resvala na frase definitiva de Nelson. Se não fizermos algo em caráter de urgência pela nossa cidade, e conseqüentemente pelo nosso estado, pelo nosso país, nem o óbvio ululante a salvará.

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