quarta-feira, 19 de março de 2003

Segundo o Arthur Dapieve, um dos maiores entusiastas do período, a diferença entre os dois mais conhecidos filósofos existencialistas de língua francesa era que Sartre escrevia suas teses filosóficas com inspiração em romances, enquanto Camus escrevia romances que tinha inclinações filosóficas. Ou algo do gênero.

Certo é, e isso me lembro bem, que ele dizia que Camus escrevia melhor do que Sartre. Nunca li nada do francês, mas é inegável a capacidade do argelino em contar histórias interessantes de maneira interessante. Li dois livros de Albert Camus, “O Estrangeiro” e “A Peste”, e, por mais que sejam díspares, eles defendem bem essa tese.

Em “O Estrangeiro”, o escritor consegue sintetizar na forma de seu protagonista, Mersault, o homem do século XX. É um romance urgente, rápido, visceral. Quase um manifesto punk, décadas antes dos ingleses quererem usar piercing e tocar músicas de três acordes.

O personagem não aspira a nada, deixa ser levado pela maré. Não almeja a nenhuma coisa, apenas está. Não quer mudar de vida, espera permanecer para ser mais um. Não quer desfigurar do meio comum, sonha apenas ser parte da massa. Não é superior nem inferior, faz parte da média.

As emoções não o tocam, vive planando ao longo disso. E o primeiro parágrafo é exemplar quanto a isso. Ele conta, em primeira pessoa, que sua mãe havia morrido, mas não tinha certeza se tinha sido no dia anterior, ou no dia antes desse.

Ele constrói sua persona ao longo da primeira parte do livro. Primeiro com a morte da mãe e sua indiferença, depois com o emprego público e a pouca vontade de mudar de posição, em seguida ao encontrar uma nova namorada por acaso, e aceita-la mesmo sem estar apaixonado, e por último quando começa a freqüentar a casa de conhecidos que se diziam amigos. Mersault é um homem que vive na maré sendo levado sem sua vontade.

A virada na vida do protagonista vem quando ele, sem mais nem menos, assassina um argelino – o estrangeiro do título – numa praia qualquer. O homem do século passado é assim, não tem motivos, age por agir, sem pensar. Nem é um instinto no sentido de ser irracional, mas voltado para o lado de dar pouca importância para tudo. Ele observa sua vida como sem objetivo, sem nenhum porquê, sem rumo.

A partir daí, Mersault enfrenta um julgamento onde ele nem tenta se salvar, pois tinha a certeza de que isso pouco importava para ele. Por mais que a condenação fosse iminente, o protagonista não luta pela liberdade. Para ele, qual é a diferença?

Já em “A Peste”, Camus fala de uma cidadezinha no norte da sua Argélia natal chamada Oran que é invadida, também sem muito motivo, pela peste. A doença que já dizimou milhares de pessoas em diferentes partes do globo em várias épocas.

Tudo, porém, é metáfora para narrar a invasão alemã na sua França de adoção na segunda guerra mundial. De maneira exemplar, ele compara os Nazistas à peste bubônica, e deixa isso disfarçado, mas decodificável, desde o prefácio.

“A Peste” é um romance mais tradicional. Funciona como crônica de uma cidade que é invadida e sitiada de maneira indesejável – se é que haja algum tipo de invasão desejável.

Conta histórias de um grupo de amigos que ficam divididos entre a necessidade de ajudar toda a cidade a se salvar da doença e ficar distantes de familiares e vulneráveis a contaminações.

É um romance mais cerebral onde a cada informação parece que existe uma referência para ser achada. Onde a cada problema relatado, pode ser encontrado um que correspondia à França de Vichy.

É também uma história política para os padrões camusianos. Cética, onde se admite que não há muita coisa a se fazer além de lutar contra um adversário sem rosto e que não se sabe se vai vencer ou não.

O mais interessante dessa obra, em comparação àquela, é sua atemporalidade. Com seu caráter mais urgente, “O estrangeiro” fica mais restrita a um determinado período, o século XX, como sua obra definitiva. Já “A peste” é não se prende tanto a determinados períodos. Ele mesmo diz isso no livro quando afirma que não há prognósticos acertados e definitivos sobre quando a peste atacará novamente. Ou quando ela irá invadir novamente uma cidade, estado ou nação sem autorização de ninguém. Qualquer semelhança com a atualidade não é mera coincidência.

O que mais falha nessa última obra, parece-me, é o seu caráter, às vezes, excessivamente cerebral. Por mais que o autor tente passar como era a reação de cada cidadão da cidade, de diferentes classes e estilos de vida, parece que a emoção vem requentada. Ao contrário, porém, do que acontece com “O Estrangeiro”, onde a cada página vemos traços genuínos de uma indiferença que aperta a boca do estômago. A cada bater de ombros do protagonistas, dá vontade de parar, olhar para um espelho e perguntar, será que somos assim mesmo? E fugir antes que possamos escutar a resposta, para não se assustar ainda mais.

As duas obras em conjunto, contudo, retratam de maneira exemplar, o que foi o século que acabou há menos de cinco anos. Talvez elas sejam complementares. Uma tenta falar sobre cada um de nós especificamente e a outra na maneira como nos comportamos em conjunto. Ambos indispensáveis para conhecer onde estamos e para onde estamos indo. Se é que isso é realmente importante.

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