quinta-feira, 1 de abril de 2004

leitos de morte

Pode parecer reprise; embora alguns insistem em dizer que as histórias são as mesmas ao longo dos séculos, só mudando nossos comportamento frente ao esperado. O que não se pode duvidar é que, no mínimo – se esse for um caso de repetição, o que eu não afirmo o contrário – as coincidências não se cansam de ocorrer na vida dita normal.

Certo era que estava em minha casa observando pela janela os meninos jogando bola na praia, com o último parágrafo de minha coluna semanal pronta para sair de minha cabeça, degustando toda aquela cena com o pão-de-açúcar indiferente ao fundo, só para emoldurar, quando o telefone me avisa de algo que me surpreendeu, mesmo sabendo que seria por esses dias que a tal notícia iria me atingir.

Luiz Cardoso, o homem a quem devo grande parte da minha modesta obra, estava partindo. O escritor que produzira dois dos célebres volumes sobre a vida das grandes cidades, ainda na década de 70, quando o de costume na era era retratar os pobres retirantes da seca nordestina. O professor a quem me recebeu sempre com uma sombrancelha levantada e o sorriso de canto de boca, que ironizava minha fala apressada (tinha, tenho medo de inutilizar irreversivelmente o tempo de meu interlocutor) dizendo: “calma, o pai já saiu da forca há muito”.

Ia para a casa dele aos domingos (e agora só agora reparo: como parece com a minha!), chuvosos ou ensolarados, apenas para escutá-lo, tentar absorver um quinto daquelas palavras tão cheias de si, lotadas de passagens quase biblícas, de épicos diários, de poesia minimalista sem pretensão de ser. Ele era... Não, ele é um homem seguro, que acredita naquilo que produz. Diz que faz parte de uma classe excludente: a dos sarcásticos. Tenho a certeza que se não fosse por ele, não teria publicado nem uma linha da minha (como adjetivá-la?) obra (?).

Até um pouco atrás, quando eu o visitava, ele se divertia ao dizer que ainda continuava inteiro, mesmo que ao menor toque dos meus olhos na sua pele enrugada, denunciasse o extremo oposto. Andava com dificuldade já há anos, ouvia por aparelhos e seus olhos não funcionavam desde a última operação. Agora parecia que um pouco dos papéis se invertiam, como um pai com seu filho, fazendo com que eu pudesse proporcionar alguma alegria a ele através das leituras; que constantemente eram interrompidas por um comentário que focalizava melhor um detalhe escondido do texto.

Não chegávamos a concordar no todo, mas as opiniões dele eram sempre embasados num raciocínio elaboradíssimo e sempre surpreendente. Às vezes me divertia apenas de escutá-lo defendendo uma idéia, e eu apresentava provas contrárias, mesmo que não acreditasse nelas, com o intuito de não deixar a prosa finalizar-se.

Agora estou eu, na casa dele, com um corpo impessoal deitado na cama, ainda com um fiapo de luz, que se apagará em questão de segundos e um de seus filhos (Carlos) me chama para um quarto separado. Diz que, como eu sabia, o pai havia deixado uma ficção, razoavelmente grande, e inacabada. Não suspeito para onde ele mira, mas o que ele pede não chega a me surpreender – nesse dia cheio de surpresas esperadas. Na verdade me encheu o corpo, como um copo, com revolta. Ele sugere, sem emoção na voz, apenas num tom de obviedade – e depois suspeito que talvez Carlos estivesse automaticamente falando comigo, através de uma resolução da família; nunca ao certo saberei – que eu simplesmente terminasse o texto final de seu pai. Ninguém duvidaria, porque ninguém tem como saber dessas coisas se quiséssesmos, e eu sou o único que tenho todos os artifícios para produzir uma obra de acordo com o nome de seu pai. Respondo-lhe que, em primeiro lugar, o que ele defende como uma certeza era um absurdo absurdo. Ninguém, nem mesmo os maiores, poderia escrever exatamente como o seu pai, porque seu estilo é tão único que seria desvendado ao primeiro verbo mal colocado. Principalmente por mim, que não reunia nem parte das qualidade de Cardoso.

Depois, Carlos argumenta que o problema era uma questão financeira. A sua explicação é complicada e, naquela hora já não consigo concatenar minhas sinapses nessa direção, com o meu corpo queimando num fogo invisível, meus ouvidos num volume distante e meus olhos embaçados. Entretanto, segundo soube apenas nesse momento, Luis Cardoso havia deixado todos os direitos autorais para sua última mulher e os filhos de outras mães estavam perdidos numa espécie de deserto. Disse que essa senhora nem mesmo queria arcar com as custas do enterro e que eles nitidamente tinham um buraco a costurar. O último livro estava fora do acordo com a dona, por alguma razão que só a jurisdição reconhece.

Sem conseguir dialogar, refugiei-me em casa e tive a confirmação da má-nova pelo jornal matinal no dia seguinte, uma noite inteira acesa depois. Ele, Luis, havia me enviado todo o material escrito do seu último e acenado mais ou menos para onde gostaria de rumar e fiquei enfurnado nessa caverna. Eu tinha a consciência - num misto com muito de desejo - lá dentro do poço sem fundo que todos nós somos, que com sorte era possível atingir o estilo do Cardoso. “Literatura tem um só dono, aquele que compra o livro”, ele gostava de repetir. Imaginei, num ímpeto de megalomania que acomete pessoas à beira de uma decisão drástica, que poderia estar fazendo um serviço para a humanidade. Por outro lado, não creio numa aprovação do que eu poderia fazer, por parte do próprio autor. Ele era bastante, como direi, como expressar a segurança, a auto-confiança, a independência do Homem em apenas algumas fracas e magricelas palavras?

Nessa noite, depois do cemitério, liguei para o Carlos e disse-lhe que daria a resposta no dia seguinte. Ao desligar o telefone, repeti para mim mesmo: “qualquer que seja”.

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