sábado, 16 de outubro de 2004

Com vocês, Antônio Maria

Copacabana transcorria sem pressa envolta numa nuvem agradável de temperatura idem quando, neste ambiente tranqüilo, adentra uma coleção de mulheres de que, se não merecem respeito, anseiam admiração. Por coincidência lia uma coletânea de Antônio Maria e pensei: 'vou parar de cansar as minhas vistas e homenageá-lo de outra forma'. Foi assim, por um bom bocado de caminho. Eu, óculos escuros, mulheres de todos os calibres à minha volta, Copacabana deitada e quieta, sem ondas e cinza, contrastando com o Forte homônimo em seu extremo oriente.

Ontem ele fez o pior dos aniversários. Aquele que ninguém comemora, principalmente o aniversariante. Há 40 anos atrás, o pernambucano de 120 quilos portador de uma gargalhada estrondosa descontava um cheque num boteco e teve um segundo ataque cardíaco, na calçada perto do prédio de quarto e sala em que ele alugava uma unidade.

Costumava dizer que apenas ele e seu amigo Di (Cavalcanti) ainda não possuíam o sonho da casa própria. Autor de um dos clássicos brasileiros mais gravados no mundo inteiro ('Manhã de carnaval', em parceria com Luiz Bonfá. Descobri esse detalhe ontem, já que, de sua música, só leio as crônicas), e morre na sarjeta. A História, eu sei, é clichê. Mas como é curiosa.

Maria (para os menos íntimos), também soube na matéria dO Globo, é visto como um sujeito triste. Isso, como irretocavelmente afirma João Máximo, porque sabia fazer samba-canção de suas 'fossas monumentais como eram as daquele tempo'. O curioso, neste caso, é que eu tinha/tenho uma imagem completamente antagônica do sujeito.

Havemos de convir que ele nunca foi, quiçá será, tão famoso ou conhecido como o (Rubem) Braga, para desmitificar qualquer mal entendido. E, essa minha reação particular contrário ao senso comum deve ter como origem, o início de tudo. Só tive contato com o seu texto através de um escritor bem-conhecido pelo seu bom-humor: Verissimo. Numa crônica de três de junho de 1974 (depois reunido em seu 'Comédias da vida pública'), LFV comenta a reestréia de uma peça com texto de Maria: 'Brasileiro: Profissão Esperança'. E diz que 'faz muito bem em, de vez em quando, relembrar Antônio Maria'. O que logo é salientado no texto do gaúcho, porém, é a quantidade de frases memoráveis do plantel do filho caçula de Inocêncio Ferreira de Morais e Diva Araújo de Morais. Algumas:

'Eu, como sempre brilhante naquilo que irei dizer e em tudo o que poderia ser dito, na hora de falar não disse coisas nenhuma'.

'Quando alguém fala 'todavia' é porque a frase é decorada'

'Esta noite... esta chuva... estas reticências... sei lá'.

Demorei para me fazer o favor de adquirir algo de sua própria autoria. Depois descobri que esse meu entrave era motivado pelo fato de que sua obra só veio a ser reeditada ano passado, com pedidos de pelamordedeus do Joaquim Ferreira dos Santos. Antes disso, só com reza forte e em sebos. Aliás e inclusive, esse meu primeiro exemplar, se perdeu no buraco negro da casa do Zé. Comprei uma versão, agora há pouco, de 'Com vocês, Antônio Maria'. Leio como minutos de sabedoria: abro ao léu e traço a crônica que aparecer. Raramente me arrependo:
'Nesse trecho do Leme*, a vida é sempre igual. Os carros batem na mesma esquina, muitas vezes os mesmos carros. Junta gente. As mesmas pessoas pessoas que saem dizendo, escandalizadas:
- Nunca vi uma batida tão grande.
São iguais as comidas dos pequenos restaurantes de uma porta só. Iguais as mulheres de trottoir. A polícia é a mesma desde a fundação da cidade'.
* Nota minha: o autor se referia à esquina da Viveiros de Castro com a Prado Júnior.

Na resposta à carta de uma leitora:
'Meu filho, Eleutério veste-se mal, porque quem escolhe as roupas é o pai.'
E o nome, foi a senhora que escolheu?'
Sempre percebi um humor, um riso, mesmo que triste, até nos seus momentos mais amargos. Sorriso embutido este que combina com a sua gargalhada. Um riso não de otimismo retumbante e cego, mas de diversão. Daqueles que saíam todas as noites com Vinícius de Moraes numa Copacabana romântica, onde os pequenos inferninhos eram as filiais domiciliares.

Sinto uma certa saudade daquilo que nunca vivi. Nostalgia, já ecoa em meus tímpanos. Pode ser. Apenas sei ao certo que, ao ler os seus textos, (parece) que vivo todo esse clima onírico - novamente. Coisas inexplicáveis. Como a morte aos 43 anos, como tantas outras coisas. Se valeu para alguma coisa, o dia de ontem, foi para rememorar Antônio Maria. E é sempre bom, de vez em quando, lembrar dele.

quarta-feira, 6 de outubro de 2004

Agora, naquela noite, ontem

Apenas no meio da noite percebi realmente o buraco negro em que você me deixou caindo. Já estava fora de casa há horas, com o intuito de me nublar, para que nenhuma lembrança caseira me tentasse. Queria desconectar todos os cabos que ligam a minha reação ao meu pensamento ou à minha memória. Transformar-me num zumbi que vagueia até o próximo sol, ou que fica estático no meio de uma pista lotada de desconhecidos, segurando um copo de qualquer coisa forte, esbarrando nas pessoas, olhos fechados, tentando se mover ao som genérico que aporta nos ouvidos. Precisava de anestésicos, algo que me suspendesse do chão, que não fizesse suportar a crueza, pois agora, naquela noite, ontem, eu não agüentaria.

E todo o planejado cumpria-se à risca. Acompanhava-me um camarada que encontrara duas amigas e eles todos conversavam animadamente enquanto eu me mantinha a uma distância segura, longe de qualquer interação. A minha saliva se tornava pastosa e eu não conseguia concatenar sinapses. Sentia-me desmembrado de qualquer humanidade, era só a fumaça branca e eu. Existiam casais e beijos por todos os lados, mas, juro, de onde eu estava não os avistava. Eram sempre dois pedaços de carne que se esmagavam nas esquinas de uma casa escura. Algo que facilmente poderia ser arranjado. Não foi exatamente isso que me recordou da minha ausência interna.

Sim, havia mulheres, sim, algumas desejosas, outras interessantes. Mas se confundiam num único rosto que eu não queria olhar porque era infinitamente conhecido e duplamente doloroso. Assim evitava focar minha visão em algum ponto nítido. Queria a abstração, o obtuso, o embaçado. O meu amigo, de tempos em tempos, me puxava para junto deles, para o chão duro, para uma conversa despretensiosa. Naquela hora, nesta véspera, no exato momento, os assuntos não me apeteciam, nenhum deles, qualquer que fosse. Em outra oportunidade, este meu próximo me apontou uma menina pequena que não parava de olhar em minha direção. Ah, se ela soubesse! Se ela suspeitasse da minha incapacidade de completar qualquer outrem. Se ela tivesse a noção da minha inutilidade, de como sou ridículo, da impossibilidade de fazê-la feliz mesmo que instantaneamente; se ela percebesse que eu era àquele momento um saco de ossos ambulante, sem veias quiçá artérias percorrendo os meus braços e pernas, que a minha caixa torácica expelira todo o meu sangue por desistência, por necessidade, por um pedido meu; se ela suspeitasse, ela não me olharia assim, dessa maneira, como se eu fosse a resposta para todas as suas argüições notívagas.

E foi então, num detalhe espacial, num pequeno rasgo da manta de narcóticos em que tinha me coberto, num minúsculo vão temporal, numa fuga ocular, quando tentamos não avistar e, sem perceber, os olhos caem em cima daquilo que havíamos evitado tão bem durante certo tempo. Eu enxergo um casal de namorados, que conhecia há décadas. E naquele momento eles não estão mais no lugar deles, mas eu e você e não havia mais ninguém ao nosso redor. Estávamos apenas acariciando um o rosto do outro, mirando-se nos olhos, sorrindo de satisfação plena, de não saber o porquê, de estar junto, de querer um bem eterno sem pensamento, de desejar de dentro, do estar junto. Eu queria você ali, aqui, ao meu lado, onde eles, os dois, e eu os invejava eternamente. Eu cobiçava com todos os meus poros, eu pulsava até a minha têmpora, eu latejava por dentro da minha pele, eu explodia quieto, eu percebia que esta realidade em que vivemos não me permitia ficar com você no momento em que eu desejava. E, por favor, não tentemos definir de outra maneira tudo o que aconteceu, de como nossa convivência rolou por debaixo da minha ignorância e eu não fui perspicaz o suficiente para alcançá-la. Eu queria aquele toque delicado em meu rosto e não tinha mais. Era isso que eu entendia.

Refugiei-me. Naquele momento, no exato instante eu precisava cambiar o ar que respiraria. Necessitava, qual um drogado de uma outra dose, não enxergar mais aquilo, não com esses olhos sóbrios que possuía, que possuo, que conseguem ver o todo e ainda imaginar um pouco além. Precisava achar o interruptor interno e desligá-lo. Bastava-me saber da minha completa nulidade por aquela noite, por hoje e para todo o sempre. Antepus meus pés um a um em direção ao banheiro, e na minha frente estava a pequena aludida anteriormente, esbarrei nela, tentei me desvencilhar nesta direção e só com muito esforço, quase físico, consegui rodeá-la. Andei vagaroso não percebendo todos os obstáculos humanos em que tropeçava, até a luz fria e forte do corredor para os toaletes.

E somente no ambiente antagônico ao da sedução observei na pequena logo atrás de mim. A presença dela quase me fecha a glote de angústia, me espreme na parede, com uma cobrança de uma atitude que não sei tomar, de um caminho imenso que podemos percorrer, mas eu não estava em condições de julgar qualidades e defeitos, e adentrei o masculino. Não cria nesta possibilidade, na coragem da menina de ter-me acompanhado, duvidava do óbvio e optei por me enganar com um outro tipo de verdade: a coincidência. Porém, esta durou pouquíssimo. Foi necessário apenas que saísse do cubículo para perceber que ela não tinha outra intenção naquele ambiente extremamente claro. Ela continuava parada, lavando o rosto pela enésima vez, e disfarçou o semblante assim que a encarei. E então? O que deveria ser feito? Será que ao homem é permitido este tipo de refugo? Inúmeras possibilidades e vozes se confundiam em centésimos na minha cabeça. Desde memórias de infância com meu pai me obrigando a tomar atitudes de homem para com meninas de oito, nove anos, quando o que eu queria era brincar mais um pouco, até a certeza tátil de que, inebriante melhor que aquela, talvez não encontrasse nunca. Por uma questão de destino – não coloquemos sorte ou azar – um ex-colega de trabalho entrou no ambiente logo em seguida e, ao me reconhecer, veio apertar-me a mão. Ficamos os dois, trocando amenidades e senti uma espécie de alívio. Não era necessário tomar uma atitude naquele momento. Logo ele me apontou a saída, para que voltássemos à escuridão. Não sem antes me perguntar de uma forma carinhosa por você. O que deveria ser respondido? Estava novamente cercado de pontos de interrogação sem nenhuma idéia da resposta correta a ser dada. Todos no lavabo escutariam a minha resposta. Isto, claro está, que inclui a pequena que continuava a lavar o rosto. Sem levantar nem a voz, e mesmo assim fazendo-me audível, não menti e disse que você estava longe.

No meio daquela neblina de danceteria, ao lado de meu camarada, perto das amigas dele, não percebi todos os aditivos fazendo efeito e logo estava flutuando, com o meu corpo desconexo, minha cabeça pendente, meu cérebro morto fazendo companhia ao músculo cardíaco. Não havia mais o meu entorno. E o fim de noite quase passa despercebido. Talvez não me recordasse de nada de ontem, no hoje. E então, uma pequena mão tocou-me delicadamente, como num sussurro, o que me fez despertar. Era a menina que havia sumido de minha percepção por dias inteiros e agora dialogava com apenas uma frase: “Eu admiro os homens fiéis”.

segunda-feira, 4 de outubro de 2004

Festival do Rio - a primeira semana

Há uns dois anos atrás, li um artigo do Jorge Furtado no Correio Braziliense em que ele admitia da completa incapacidade em ranquear obras de arte, de maneira geral. Era um texto interessante porque ele começava contando que alguns anos antes tinha conversado com seu filho sobre os festivais de cinema. Seu argumento era que as competições cinematográficas eram uma tentativa de comparar elefantes com geladeiras. Melhor ainda se disser que tal crônica era para o especial do jornal sobre o Festival de Brasília de Cinema.

Bem isso tudo para dizer que depois de algum número obscuro de filmes acumulados neste Festival do Rio, desisti de dizer quais são os melhores ou os piores. Apenas direi que todos são válidos. Válido de se ver ou de se manter à distância. Nada de ‘o melhor’, quiçá ‘imperdível’; para tal só usarei argumentos frágeis e um instrumento não muito confiável. Isto, a minha memória.

Vale a pena ver de novo

A Pequena Lili: este francês do Claude Miller (camarada do Truffaut) me impressionou bastante, admito. A história, resumida, pode parecer boba, por isso não o farei. Mas a progressão de toda a trama, com diálogos afiados, personagens inesquecíveis (nunca, jamais olvidarei de Ludivine Sagnier na primeira seqüência deste longa) torna este exemplar bem interessante.

The edukators: é muito mais que o filme da Amélie Poulain da vez. No caso, o ator de ‘Adeus, Lênin’, Daniel Brühl. Até vinte minutos, parece uma história da década de 70. Depois você percebe que não tem a menor idéia do que vai rolar. Mas não é suspense clássico. Tem lição de moral. Desconsidere. É envolvente até o final, sua maior bola dentro.

Whisky: Um dos pouquíssimos filmes uruguaios que foram produzidos nos últimos anos. É pequeno e quase mudo. Retrata perfeitamente a monotonia de um judeu pequeno-empresário cujo irmão mora no Brasil. Rimos da comédia que é a vida privada, com piadas sobre o cotidiano metódico do protagonista. Engraçadinho.

Contra a parede: Comprei o ingresso como segunda-opção, mas este é o filme mais impactante até o momento. Não sei se gostei, nem se desgostei. Tem várias qualidades e uma confusão louca no roteiro. O início parece uma espécie de comédia sobre a relação sexual numa cultura exótica, algo como foi feito com ‘Casamento grego’. No caso, a turca. Entretanto, tinha muito sangue, desde sempre. Era óbvio que o diretor não deixaria passar esta oportunidade e logo em seguida, sem perceber, estamos vendo um dramalhão, quase mexicano. No caso, turco.

Como matei um santo: Um filme da Macedônia. Fiquei com um pé e meio atrás. Mas, aos poucos, este foi se confirmando como um filmão. Como nós somos parecidos com estes macedônios? Rola um tiroteio, os personagens estão dentro do ônibus, qual é a atitude deles? Mudam de assentos como se nada acontecesse. Vivem ao lado de uma guerra e tentam conviver com isso. Bem, alguns deles. Os outros dão título para o longa.

Abraço Partido: É péssimo admitir, mas os argentinos sabem fazer grandes filmes pequenos. Aqui, estamos, sem nos aperceber, numa história de redescoberta das origens. Numa galeria de Buenos Aires com italianos, judeus-polacos, coreanos, peruanos; nosso protagonista é um sujeito comum, um transeunte qualquer. E tem um desejo: ir morar na Europa, terra de seus antepassados. 'Abraço...' é tão legal que até o Batata vai gostar.

A face oculta da Lua: Um protagonista neurótico, extremamente estranho e feio, um diretor umbilical, um roteirista com tiradas inteligentes, e todos são o mesmo cara. Não é do novaiorquino que estamos falando, mas deste cineasta canadense da área francesa, Robert Lepage. O longa? Bem divertido para uma sessão da tarde.

Nem de mais, nem de menos

Céu azul: Animação coreana com a maior quantidade de clichês que já vi. Pior: ao comentar com o Zé sobre o dito-cujo, ele me descreveu outro filme da Coréia com o mesmíssimo mote. Originalidade não deve ser o forte destes moços dos olhos puxados. Fica no meio porque há visuais espetaculares.

Olga Benário: O longa da Alemanha é bem interessantinho. A história é boa, mas, mas... falta alguma coisa. As dramatizações são, digamos, desnecessárias. O diretor disse que só as utilizou em três oportunidades, para dar mais (oh!) drama. Podia dormir sem isso.

Soldados de pedra: Só fica aqui, e não ali embaixo, porque é da mostra sul-africana. O filme me lembrou 'top gun', mesmo não tendo nenhum parentesco com a produção americana. Existe um mineiro bom, outro mal, este luta contra aquele, todos sabemos por quem torcer; o malvado enlouquece, como que justificativa para morrer no final. Enfim, essas coisas.

Garota estratosfera: fui convencido a assistir esta produção alemã (outra), que se passa basicamente num submundo japonês. A trama era sobre uma menina belga que viaja para o outro lado do mundo para, além de ficar com o seu pseudo-namorado, trabalhar de acompanhante (!) num clube só de louras (!!). Um belo argumento, correto? O problema é a quantidade de oportunidades perdidas. O final é risível. Perdeu-se por um excesso de realismo.

Mantenha distância

Há dois filmes que são as coisas mais medonhas do mundo. Não valem nem esmiuçá-los em demasia. Contento-me em citar os nomes: Mods, um francês metido a inteligente que descobri só ontem não ser a produção de estréia de um péssimo cineasta; e Um vazio no coração, uma quase unanimidade. A exceção fica para os masoquistas. São, ambos e as suas maneiras, de uma ruindade extrema. Estes, sim, não tenho receio de dizer, são uma grande e malcheirosa merda.