sexta-feira, 16 de agosto de 2013

'Pássaros na boca', de Samanta Schweblin

[Publico aqui essa tradução feita por este que vos escreve e pelo Douglas Duarte há gerações passadas para finado O Livreiro, na tentativa de que ela não se perca, apenas.]
 
Desliguei a tevê e olhei pela janela. O carro de Silvia estava estacionado em frente à casa com o pisca-alerta ligado. Pensei se havia alguma possibilidade real de não atender, mas a campainha voltou a soar; ela sabia que eu estava em casa – fui até a porta e abri.

- Silvia – disse.

- Olá – disse ela, e entrou sem que eu chegasse a dizer nada. – Temos que conversar. Apontou o sofá e obedeci porque, às vezes, quando o passado bate à porta e me trata como há quatro anos, continuo sendo um imbecil.

- Você não vai gostar. É… É forte – olhou o seu relógio – é sobre Sara.

- Sempre é sobre Sara – disse.

- Você vai dizer que exagero, que sou uma louca, tudo isso. Mas hoje não há tempo. Você tem que vir à minha casa agora mesmo. Tem que ver com seus próprios olhos.
- O que houve?
- Já disse a Sara que você iria. Ela está esperando.

Ficamos em silêncio um momento. Pensei em qual seria o próximo passo, até que ela franziu o cenho, se levantou e foi até a porta. Peguei meu casaco e saí atrás dela.
Por fora a casa estava como sempre, com a grama recém cortada e as azaleias de Silvia penduradas das sacadas do primeiro piso. Cada um saiu de seu carro e entramos sem falar. Sara estava no sofá. Embora as aulas deste ano já tivessem terminado, usava o agasalho da escola que lhe dava um ar igual às colegiais pornôs das revistas. Estava sentada com as costas retas, os joelhos juntos e as mãos sobre os joelhos, concentrada em um ponto da janela ou do jardim, como se estivesse fazendo um desses exercícios de ioga da mãe. Me dei conta de que, mesmo que tenha sido sempre mais para pálida e magra, aparentava transbordar saúde. Suas pernas e seus braços pareciam mais fortes, como se viesse fazendo exercícios há alguns meses. Seu cabelo brilhava e as bochechas estavam rosadas, como de maquiagem, mas real. Quando me viu entrar, sorriu e disse:

- Oi, papai.

Minha filha era realmente uma doçura, mas duas palavras bastavam para entender que algo ia mal com essa menina, algo seguramente relacionado com a mãe. Às vezes penso que talvez devesse ter levado ela comigo, mas quase sempre penso que não. A uns metros da tevê, perto da janela, havia uma gaiola. Era uma gaiola para pássaros – de uns setenta, oitenta centímetros – que pendia do teto, vazia.

- O que é isso?

- Uma gaiola – disse Sara, e sorriu.

Silvia me fez um sinal para que a seguisse à cozinha. Fomos até o janelão e ela se virou para verificar que Sara não nos escutava. Seguia rija no sofá, olhando a rua, como se nunca tivéssemos chegado. Silvia me falou em voz baixa.

- Olha, você vai ter que ter calma.

- Não enche. O que é que tá acontecendo?

- Ela não come desde ontem.

- Você tá brincando?

- Você precisa ver com seus próprios olhos.

- Você tá louca?

Disse que voltássemos à sala e me apontou o sofá. Me sentei em frente a Sara. Silvia deixou a casa e a vimos cruzar o janelão e entrar na garagem.

- O que está acontecendo com a sua mãe?

Sara deu de ombros, dando a entender que não sabia. Seu cabelo preto e escorrido estava preso num rabo de cavalo, com uma franjinha que chegava quase aos olhos. Silvia voltou com um caixa de sapatos. Trazia-a nivelada, com ambas as mãos, como se tratasse de algo delicado. Foi até a gaiola, a abriu, tirou da caixa um pardal bem pequeno, do tamanho de uma bola de golf, meteu ele dentro da gaiola e a fechou. Jogou a caixa no chão e a chutou para o lado, junto a outras nove ou dez caixas similares que iam se amontoando debaixo da escrivaninha. Então Sara se levantou, seu rabo de cavalo brilhou de um lado a outro de sua nuca, e foi até a gaiola saltitando como fazem as garotas que têm cinco anos a menos que ela. De costas para nós, na ponta dos pés, abriu a gaiola e tirou o pássaro. Não pude ver o que fez. O pássaro deu um pio e ela forcejou um momento, talvez porque ele tentasse escapar. Silvia tapou a boca com a mão. Quando Sara se virou para nós, o pássaro tinha sumido. Tinha a boca, o nariz, o queixo e as mãos manchadas de sangue. Sorriu envergonhada, sua boca gigante se arqueou e se abriu, seus dentes vermelhos me obrigaram a levantar de um salto. Corri até o banheiro, me fechei e vomitei na privada. Pensei que Silvia me seguiria e começaria com as culpas e as determinações do outro lado da porta, mas ela não fez nada. Lavei minha boca e meu rosto e fiquei escutando em frente ao espelho. Baixaram algo pesado no andar de cima. Abriram e fecharam algumas vezes a porta de entrada. Sara perguntou se poderia levar com ela a foto da prateleira. Quando Silvia respondeu que sim, sua voz já estava longe. Abri a porta tentando não fazer barulho, e entrei no corredor. A porta principal estava aberta de par em par e Silvia punha a gaiola no assento traseiro do meu carro. Dei uns passos com a intenção de sair da casa gritando umas verdades, mas Sara saiu da cozinha para a rua e me detive para que eu não visse. Se abraçaram. Silvia a beijou e a colocou no assento do acompanhante. Esperei que voltasse e fechasse a porta.
- Que merda…?

- Leve ela – foi até a escrivaninha e começou a amassar e dobrar as caixas vazias.

- Meu Deus Silvia, sua filha come pássaros!

- Não posso mais.

- Ela come pássaros! Você viu? Que merda ela faz com os ossos?
Silvia ficou me olhando, desconcertada.
- Acho que ela os engole também. Não sei se os pássaros… – disse e ficou me olhando.
- Não posso levar ela.
- Se ela ficar, me mato. Me mato e antes mato ela.
- Ela come pássaros!
Silvia foi até o banheiro e se trancou. Olhei para fora, pelo janelão. Sara me acenou alegremente do carro. Tratei de me acalmar. Pensei em coisas que me ajudaram a dar alguns passos torpes até a porta, rezando para que esse tempo fosse suficiente para voltar a ser um homem comum e corrente, um tipo elegante e organizado capaz de ficar dez minutos de pé no supermercado em frente à gôndola dos enlatados se certificando de que as ervilhas que está levando são as mais adequadas. Pensei que, se é fato que algumas pessoas comem pessoas, então comer pássaros vivos não é tão ruim. Também que, de um ponto de vista natural, é mais saudável que as drogas, e, do social, é mais fácil de ocultar que uma gravidez aos treze. Porém, até pegar na maçaneta do carro, segui repetindo come pássaros, come pássaros, come pássaros, e assim foi.

Levei Sara para casa. Não disse nada durante a viagem e quando chegamos, trouxe sozinhas as suas coisas. Sua gaiola, sua mala – que havia colocado no porta-malas -, e quatro caixas como as que Silvia havia trazido da garagem. Não pude ajudá-la com nada. Abri a porta e então esperei que ela fosse e voltasse com tudo. Quando entramos, disse que podia usar o quarto de cima. Depois que se instalou, a mandei que descesse e se sentasse diante de mim na mesa da copa. Preparei dois cafés, mas Sara Pôs de lado sua xícara e disse que não tomava infusões.

- Você come pássaros, Sara – disse.

- Sim, papai.

Mordeu os lábios, envergonhada, e disse:

- Você também.

- Você come pássaros vivos, Sara.
- Sim, papai.

Me lembrei de Sara aos cinco anos, sentada à mesa conosco, correndo para o seu prato, devorando fanaticamente uma abóbora, e pensei que, de alguma forma, solucionaríamos o problema. Mas quando a Sara que tinha diante de mim voltou a sorrir, me perguntei o que sentiria ao engolir algo quente e em movimento, algo cheio de plumas e patas na boca. Tapei a minha própria boca, como fazia Silvia, e deixei ela sozinha em frente aos dois cafés intactos.

Passaram três dias. Sara estava quase todo o tempo na sala, rija no sofá, com os joelhos juntos e as mãos sobre eles. Eu saía cedo para o trabalho e me aguentava as horas consultando na internet infinitas combinações das palavras “pássaro”, “cru”, “cura”, “adoção”, sabendo que ela seguia sentada ali, olhando para o jardim durante horas. Quando entrava em casa, por volta das sete, e a via tal qual a havia imaginado durante todo o dia, os pelos da nuca se eriçavam e me dava vontade de sair e deixá-la trancada à chave, hermeticamente trancada, como esses insetos que se caça quando se é criança para guardar em frascos de vidro até que o ar acabe. Poderia fazer isso? Quando eu era pequeno, vi no circo uma mulher barbada que carregava ratos na boca. Mantinha-os um tempo, com o rabo se mexendo entre os lábios fechados, enquanto caminhava em frente ao público sorrindo e mexendo os olhos para cima, como se isso lhe desse um grande prazer. Agora pensava nessa mulher quase todas as noites, dando voltas na cama sem poder dormir, considerando a possibilidade de internar Sara em um centro psiquiátrico. Talvez pudesse visitá-la uma ou duas vezes por semana. Poderia revezar com Silvia. Pensei nesses casos em que os médicos sugerem certo isolamento do paciente, afastando-o da família por uns meses. Talvez fosse uma boa opção para todos, mas não estava seguro de que Sara poderia sobreviver num lugar assim. Ou sim. Em qualquer caso, sua mãe não permitiria. Ou sim. Não conseguia me decidir.
No quarto dia, Silvia veio nos ver. Trouxe cinco caixas de sapatos que deixou junto à porta de entrada, do lado de dentro. Nenhum de nós dois disse nada a respeito. Perguntou por Sara e lhe apontei o quarto de cima. Quando desceu, lhe ofereci café. Bebemos na sala, em silêncio. Estava pálida e suas mãos tremiam tanto que fazia tilintar a louça cada vez que voltava a apoiar a xícara sobre o pires. Um sabia o que o outro pensava. Eu podia dizer “isso é culpa sua, isto é o que você conseguiu”, e ela podia dizer algo absurdo como “isto está acontecendo porque você nunca prestou atenção nela”. Porém a verdade é que já estávamos muito cansados.
- Eu cuido disso – disse Silvia antes de sair, apontando para as caixas de sapatos. Não disse nada, mas a agradeci profundamente.

No supermercado, as pessoas carregavam seus carrinhos de cereais, doces, verduras, carnes e laticínios. Eu me limitava a meus enlatados e enfrentava a fila em silêncio. Ia duas ou três vezes por semana. Às vezes, mesmo que não tivesse nada para comprar, passava antes de voltar para casa. Tomava um carrinho e percorria as gôndolas pensando no que podia estar esquecendo. À noite, assistíamos juntos à televisão. Sara, ereta, sentada em seu canto do sofá, eu na outra ponta, espiando ela de tempos em tempos para ver se acompanhava a programação ou se já estava outra vez com os olhos cravados no jardim. Eu preparava comida para dois e levava à sala em duas bandejas. Deixava a de Sara em frente a ela, e ali ficava. Ela esperava que eu começasse a comer e então dizia:

- Com licença, pai.

Se levantava, subia ao seu quarto e fechava a porta com delicadeza. A primeira vez, baixei o volume do televisor e esperei em silêncio. Se escutou um pio agudo e curto. Uns segundos depois, a torneira do banheiro e a água correndo. Às vezes, descia uns minutos depois, perfeitamente penteada e serena. Outras vezes tomava uma ducha e descia diretamente em pijama.

Sara não queria sair. Estudando o seu comportamento pensei que talvez sofresse algum princípio de agorafobia. Às vezes colocava uma cadeira no jardim e tentava convencê-la de sair um pouco. Porém era inútil. Ainda conservava uma pele radiante de energia e estava cada vez mais bonita, como se passasse o dia fazendo exercícios debaixo do sol. De tempos em tempos, fazendo as minhas coisas, encontrava uma pluma. No piso junto à porta da copa, detrás da lata de café, entre os talheres, ou ainda úmida no box. As recolhia, cuidando que ela não me visse fazendo isso, e as metia no vaso sanitário. Às vezes ficava olhando como iam embora com a água. Às vezes o vaso voltava a se encher, a água se aquietava, como um espelho outra vez, e mesmo assim seguia ali olhando, pensando se seria necessário voltar ao supermercado, se realmente se justificava encher os carrinhos com tanto lixo, pensando em Sara, no que é que havia no jardim.

Uma tarde, Silvia me ligou para avisar que estava de cama, com uma gripe feroz. Disse que não poderia nos visitar. Me perguntou se eu me viraria sem ela e então entendia que não poder nos visitar significava que não poderia trazer mais caixas. Lhe perguntei se tinha febre, se estava comendo bem, se tinha ido a um médico, e quando a deixei suficientemente ocupada com suas respostas, disse que tinha que desligar e desliguei. O telefone voltou a tocar, mas não o atendi. Víamos televisão. Quando trouxe minha comida, Sara não se levantou para ir a seu quarto. Olhou o jardim até que eu terminasse de comer, e só então voltou ao programa que estávamos vendo.

No dia seguinte, antes de voltar para casa, passei pelo supermercado. Pus algumas coisas no meu carrinho, o de sempre. Passeei entre as gôndolas como se fizesse um reconhecimento do mercado pela primeira vez. Me detive na seção de animais de estimação, onde havia comida para cachorros, gatos, coelhos, pássaros, peixes. Levantei alguns alimentos para saber o que se eram. Li do que eram feitos, suas calorias, e as quantidades que recomendadas para cada raça, peso e idade. Depois, fui à seção de jardinaria, onde só havia plantas com ou sem flor, vasos e terra, então voltei outra vez à seção dos animais de estimação e fique ali pensando no que fazer depois. As pessoas chegavam com seus carrinhos e se moviam se esquivando de mim. Anunciaram nos alto-falantes a promoção de laticínios para o Dia das Mães e passaram uma música melódica sobre um sujeito que tinha várias mulheres mas sentia falta de seu primeiro amor, até que final empurrei o carrinho e voltei à seção de enlatados.

Essa noite, Sara demorou a dormir. Meu quarto estava embaixo do dela, e escutei-a caminhar nervosa no teto, se deixar, voltar a levantar. Me perguntei em que condições estaria o quarto, não havia subido desde que ela tinha chegado, talvez o lugar estivesse um verdadeiro desastre, um curral cheio de sujeira e penas.

A terceira noite depois do telefonema de Silvia, antes de voltar à casa, me detive para ver as gaiolas de pássaros que estavam penduradas do toldo de uma veterinária. Nenhum se parecia com o pardal que havia visto na casa de Silvia. Eram coloridos, e em geral um pouco maiores. Fiquei ali um pouco, até que um vendedor se aproximou perguntando se eu estava interessado em algum pássaro. Disse que não, que de jeito nenhum, que só estava olhando. Ficou por perto, mexendo em caixas, olhando para a rua, depois entendeu que eu realmente não compraria nada, e voltou para o balcão.

Em casa, Sara esperava no sofá, erguida em seu exercício de ioga. Nos cumprimentamos.
- Oi, Sara.

- Oi, papai.

Estava perdendo suas bochechas rosadas e já não estava tão bem quanto nos dias anteriores. Preparei minha comida, me sentei no sofá e liguei o televisor. Depois de um tempo, Sara disse:
- Paizinho…
Engoli o que estava mastigando e baixei o volume, duvidando de que realmente tivesse falado, mas ali estava, com os joelhos juntos e as mãos sobre os joelhos, me olhando.

- Que? – eu disse.

- Você me ama?

Fiz um gesto com a mão, acompanhado de um assentimento. Tudo em conjunto significava que sim, que claro. Era minha filha, não? E ainda assim, por via das dúvidas, pensando sobretudo o que minha ex-mulher teria considerado “o correto” disse:
- Sim, meu amor. Claro.

E então Sara sorriu, uma vez mais, e olhou o jardim durante o resto do programa.

Voltamos a dormir mal, ela passeando de um lado ao outro do quarto, eu dando voltas em minha cama até que adormeci. Na manhã seguinte, chamei Silvia. Era sábado, mas não atendia ao telefone. Chamei mais tarde, e por volta do meio-dia também. Deixei uma mensagem, mas não respondeu. Sara esteve toda a manhã sentada no sofá, olhando o jardim. Seus cabelos estavam desarrumados e já não se sentava tão ereta, parecia muito cansada. Perguntei se estava tudo bem e ela disse:

- Sim, papai.

- Por que você não sai um pouco ao jardim?

- Não, papai.

Pensando na conversa na noite anterior, me ocorreu que poderia perguntar a ela se me amava, mas em seguida me pareceu uma estupidez. Voltei a telefonar a Silvia. Deixei outra mensagem. Em voz baixa, tomando o cuidado para que Sara não escutasse, disse para a secretária eletrônica:

- É urgente, por favor.
Esperamos sentados cada um em seu sofá, com o televisor ligado. Umas horas mais tarde, Sara disse:
- Com licença, papai.

Se trancou em seu quarto. Desliguei o televisor para escutar melhor: Sara não fez nenhum barulho. Decidi que telefonaria a Silvia uma vez mais. Porém, levantei o gancho, escutei o sinal de linha e desliguei. Fui de carro até a loja de bichos, procurei o vendedor e lhe disse que necessitava de um pássaro pequeno, o menor que tivesse. O vendedor abriu um catálogo com fotografias e disse que os preços e a alimentação variavam de uma espécie para outra.

- Você gosta dos exóticos ou prefere algo mais familiar?

Golpeei o tampo com a palma da mão. Algumas coisas saltaram no balcão e o vendedor ficou em silêncio, me olhando. Apontei para um pássaro pequeno, escuro, que se movia nervoso de um lado a outro de sua gaiola. Me cobraram cento e vinte pesos e me entregaram em uma caixa quadrada de cartolina verde com pequenos buracos, um saco grátis de alpiste que não aceitei e um folheto do criador com a foto do pássaro na frente.
Quando voltei, Sara continuava trancada. Pela primeira vez desde que ela estava em casa, subi e entrei no quarto. Estava sentada na cama em frente à janela aberta. Me olhou, mas nenhum de nós dois disse nada. Estava tão pálida que parecia doente. O quarto estava limpo e ordenado, a porta do banheiro encostada. Havia umas vinte caixas de sapatos sobre a escrivaninha, mas desmontadas – de modo que não ocupavam tanto espaço – e empilhadas cuidadosamente umas sobre as outras. A gaiola pendia vazia perto da janela. Na mesinha de cabeceira, perto do abajur, o porta-retrato que tinha levado da casa de sua mãe. O pássaro se moveu e escutamos suas patas na cartolina, mas Sara permaneceu imóvel. Deixei a caixa sobre a escrivaninha e, sem dizer nada, saí do quarto e fechei a porta. Então me dei conta de que não me sentia bem. Me apoiei na parede para descansar um momento. Olhei o folheto do criador, que ainda levava na mão. No verso, havia informações sobre o cuidado do pássaro e seus ciclos de procriação. Ressaltavam a necessidade da espécie se acasalar nos períodos quentes e as coisas que se podia fazer para que os anos de cativeiro fossem os mais amenos possíveis. Escutei um pio breve, e depois a torneira do chuveiro. Quando a água começou a correr me senti um pouco melhor e soube que, de alguma forma, conseguiria descer as escadas.

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Meio-dia

"'O grande meio-dia'”, escreve Heidegger, “é o tempo do mais brilhoso brilho, a saber, da consciência de que a incondicionalidade, e em cada respeito, se transformou consciente de si mesmo, como aquele saber que consiste em deliberadamente desejar a vontade de potência como o Ser-do-que-quer-que-for."[1]

A citação, extremamente complexa, ao "grande meio-dia" se refere provavelmente a um trecho do “Crepúsculo dos ídolos” em que Nietzsche narra a trajetória da metafísica desde Platão até ele mesmo, passando por Kant, utilizando a metáfora da passagem da escuridão noturna à claridade do dia. Como passando, segundo os seus critérios, dos períodos na História, desde a criação da metafísica platônica, culminando, ao "grande meio-dia", no seu (de Nietzsche) momento histórico, em que essa metafísica não faria mais sentido. São seis passos identificados, que demonstrariam, nas palavras de Nietzsche, “como o mundo 'verdadeiro' terminou por se tornar uma fábula”. No último passo, Nietzsche escreve que com a supressão do mundo verdadeiro, ou seja, com o fim de uma tentativa metafísica de se querer um mundo ideal, fora da nossa realidade, imaginado por Platão e seguido pelos cristãos (ao menos), também se quebraria o mundo aparente. Ou seja, não haveria mais uma divisão entre verdade e aparência. Para existir a metafísica, ou esse tipo de metafísica que dominou nossa forma de pensar durante milênios, é necessário ter esses dois termos, o real e o imaginado, o aqui e o lá, o aparente e o ideal. Sem um deles, o outro não consegue existir, porque seria apenas um espelhamento do primeiro.

Voltando à passagem de Heidegger. "'O grande meio-dia' é o tempo do mais brilhoso brilho” seria o meio-dia, em que a luz do sol incinde quase verticalmente, no “instante da sombra mais curta”, como escreve Nietzsche. É o momento da razão mais profunda. Como se usasse a metáfora Platônica da caverna e a refizesse: o homem saiu da caverna, no momento em que o sol está a pino. É nesse momento em que a incondicionalidade toma consciência, ou seja, é o episódio da noção de que o não ter condições é a própria razão de ser, do viver, do seguir adiante. Isto é, não há um algo, um alguém, um Ser como parâmetro. É saber que deus, em que formato ele tiver ou estiver, está morto. É o momento em que se sabe que não há uma diferença entre mundo real e aparente – que ambos não existem. É também nesse instante em que o sentimento da falta de necessidade [incondicionalidade] tomou consciência, despertou, que nasce um novo desejo, algo que impulsiona, que "deliberadamente” deseja a “vontade de potência”, de maneira quase aprisionadora. Querer a vontade de potência é o mesmo que querer racionalmente ser mais emocional. Ou planejadamente ser intuitivo. Ou arquitetar a autenticidade. São determinadas situações que se é ou não se é.

Dessa maneira, seguindo o raciocínio de Heidegger, o homem resiste a se subjugar a qualquer objetivação. E se todo sujeito só subjetiva, ou seja, ninguém é objeto, o que é, isto é Ser agora, agora que o "domínio da Vontade de potência está amanhecendo" e que essa abertura está se tornando uma função da vontade, está existindo em função da vontade, ou seja, sendo subjugada, sujeitada, objetificada? O que é, o que está acontecendo com o Ser neste momento de dominação? "O Ser está sendo transformado em um valor", ele responde.

Ele não fica satisfeito. Quer saber se o Ser pode ser melhor avaliado do que simplesmente ser um valor, porque ele acredita que, desta forma, ele já estaria degradado. Porque estaria, de certa maneira, condicionado à vontade de potência, como se dependente da vontade de potência. Ou mesmo subjugada, ou ainda sendo em função da vontade de potência. Dessa forma, o Ser estaria despojado da "dignidade de sua essência". A vontade de potência, nesse sentido, apenas substituiria deus, sem qualquer vantagem para o Ser. Nesse sentido, o Ser não seria a vontade de potência, mas algo além. E a vontade de potência seria algo que, porque não consciente, poderia dominar o ser. Nas palavras de Heidegger, este processo oblitera a experiência do Ser.


[1]    Heidegger, 1977 / 102, em tradução livre

Transcendência

La filósofa dibujó un minucioso retrato de Eichmann como un burgués solitario cuya vida estaba desprovista del sentido de la trascendencia, y cuya tendencia a refugiarse en las ideologías le llevó a preferir la ideología nacionalsocialista y a aplicarla hasta el final. “Lo que quedó en las mentes de personas como Eichmann”, dice Arendt, “no era una ideología racional o coherente, sino simplemente la noción de participar en algo histórico, grandioso, único”. El Eichmann de Arendt es un hombre que, engañándose y convenciéndose a sí mismo, está persuadido de que sus sangrientas acciones manifiestan su virtud.

Em Eichmann, a ideologia nazista veio substituir o sentimento transcendental original. E o que é o transcendental se não é, exatamente, transcender, ultrapassar, sair de si, optar por não ser o centro do universo e perceber que há outros elementos que podem e devem atrair a nós? Infelizmente, para ele e para a humanidade, no caso de Eichmann, e de todos os demais racistas, foi uma ideologia, um sentimento transcendental que propunha matar outros homens. Daqui.

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Deus está morto, vida longa à vida.

Deus está morto mas o rigor da humildade permanece; esse foi o diagnóstico de Nietzsche, e a tarefa monstruosa que ele fala da consistência de remover o rigor na humildade, no avançar rumo a uma intoxicante e eufórico sim para uma vida Dionisíaca. Homenagem à vida terrena é o que importa para Nietzsche. Nisso, ele espera diferir o niilismo do mero sóbrio. O niilismo moderno perde o Além sem ganhar o Aqui. Nietzsche, entretanto, quer ensinar a arte de vencer se alguém perder. Todo o êxtase, toda a felicidade, todo o pairar sobre os sentimentos, todas as intensidades que normalmente erm associadas ao Além devem ser concentradas nesta vida. As forças de transcendência devem ser preservadas, porém, redirecionadas para a imanência. Transcendência, porém "permanecer fiel à terra" - é o que Nietzsche espera do seu super-homem, o homem do futuro. O super-homem de Nietzsche é livre da religião, porém não no senso de a ter perdido; ele a tomou de volta para dentro de si. Assim seus ensinamentos do eterno retorno do mesmo não tem marcas de melancolia resignada. O carrossel do tempo não esvaziarão os eventos para a falta de sentido e a futilidade, mas as ideias do retorno devem intensificá-las. O imperativo de Nietzsche é: você deve viver o momento que você pode querer que ele retorne sem horror. Uma vez mais desde o início!
Safranski, mesmo do anterior. 

Aperfeiçoando o niilismo

Ele quer aperfeiçoar o niilismo revelando o niilismo secreto na longa história do dar sentido metafísico. As pessoas, Nietzsche argumenta, viram as coisas como um "valor" se isso serviu para manter e crescer das suas próprias vontades de poder ou a repulsa dos poderes superiores. Por detrás de cada definição de valor e declaração de valor havia, portanto, a vontade de poder. Isso era verdade também para os "grandes valores" - Deus, ideias, o transcendental. Por um longo tempo, entretanto, essa vontade de poder não foi transparente para si mesma. Enfeitara as coisas criadas por eles próprios com a aura de uma origem super-humana. As pessoas pensaram que eles tinham descoberto essências independentes quando na verdade eles tinham apenas as inventado - da vontade de poder. Eles tinham lido de maneira errada sua própria energia de criar valores. Eles evidentemente preferiram ser vítimas e recebedores de dádivas do que agentes e doadores - possivelmente pelo medo da sua própria liberdade. Essa desvalorização fundamental das próprias energias de criação de valores foi mais tarde crescida por meio de valores transcendentais estabelecidos. Procedendo do transcendental, eles desvalorizaram o corpo e finitude. Evidentemente faltou a eles a coragem para a finitude. Por conta disso, portanto, aqueles valores transcendentais, inventados como um bastião contra a ameaça da nulidade e finitude, se transformaram a força para a desvalorização niilística da vida. Sob o céu de ideias, Nietzsche diz, os humanos nunca vieram ao mundo verdadeiramente. Esse céu de ideias que ele agora espera destruir - essa foi o aperfeiçoar do niilismo - para que a humanidade pudesse ao menos aprender o que queria dizer "permanecer fiel à terra". Essa foi a ultrapassagem do niilismo.
Rüdiger Safranski escrevendo sobre Nietzsche na biografia de Heidegger [tradução minha].