quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Manual para discussões na internet

Não ria. Temos que conter a vontade de gargalhar ao pensar que precisamos de um manual para comportamento, uma etiqueta pós-moderna. A verdade é que essa eleição está se mostrando um ambiente perfeito para que as discussões se acirrem muito fortemente. Há uma polarização imensa entre os dois candidatos ao governo federal, que é abastecida pelas suas torcidas, como se eles fossem times de futebol. E, como diz o seu Elio Gaspari hoje, essa eleição será plebiscitária: ambos pedem o voto com o único argumento de que o outro é pior que você [ver: Ressentimento].

Portanto, para tentar não convencer o outro - aquele diferente de você - de que o seu partido e candidato são os melhores, sugiro um procedimento para que consigamos conversar com o outro para conservar a amizade.

Seguindo uma dica da professora Déborah Danowski, que por sua vez cita Deleuze, poderíamos dizer que
O ser de direita é sempre perceber as coisas a partir de si mesmo, como num endereço postal. Assim: eu, aqui, neste lugar, na minha casa, na rua tal, na praia de Botafogo, Flamengo, Rio de Janeiro, América do Sul. E você pensa o mundo, ali, como uma extensão de si mesmo. E cada vez que você se afasta, vai perdendo interesse, a coisa vai decaindo de valor. E ser de esquerda é o contrário: vai do horizonte até a casa.
Daí, poderíamos pensar em algum lugar onde os dois se encontram. E é só a partir desse encontro que podemos dialogar. Somente quando temos algo em comum, quando dividimos alguma certeza, alguma verdade, quando estamos andando sobre o mesmo chão é que temos a capacidade da troca, que é o início - ou deveria ser - de uma discussão. Exemplo-mor: Se não falamos a mesma língua, como vamos conversar, quiçá debater? Mas a língua é a condição básica. É necessário um outro fundamento para funcionar como fiel da balança e para que o embate tenha algum proveito. Se não...

Outro exemplo: Uma vez, quando fiz uma brincadeira sobre esquerda e direita, fui xingado [dá para conferir nos comentários], e não consegui dialogar com as pessoas que me xingavam porque não dividíamos o mínimo de lugar-comum.

Quando escrevi que "A esquerda quer arte engajada. A direita acha que a arte deve mirar o sublime. A extrema esquerda não acredita em arte que não seja política. A extrema direita queima livros que não concordem com ela. O centro leu "O pêndulo de Foucault", mas prefere não opinar para não ferir suscetibilidades", a resposta que eu recebi foi: "quem queima livros é a extrema esquerda".

Para esse rapaz [ou moça, ele/a não se identifica], me pareceu, Hitler seria de extrema-esquerda. Temos um conflito cognitivo imenso aí. Eu o [Hitler] colocaria no outro lado do espectro político, por uma série de comportamentos e políticas, como a xenofobia e o preconceito generalizado, o ideal de desenvolvimento a qualquer custo, o parâmetro fixo e excludente. Dentro da definição da Déborah, o nazista é um narcisista elevado a enésima potência [narcizista?].

A questão, para o comentarista do outro post, porém, é outra, suspeito. Apesar de ele não se explicar, tento acompanhá-lo: como a política nacional-socialista tinha no nome "socialista", além de pensar num Estado poderosamente forte, que invade as privacidades, essa política só poderia ser de esquerda, extrema-esquerda. Para ele/a, a diferença entre esquerda x direita se atém principalmente ao papel do Estado. Quanto mais interferência na vida individual, no mercado, nas "liberdades", mais ligado à esquerda. O inverso também se aplicaria.

Curiosamente, nesse caso, a direita se liga ao "liberal". Liberal, no sentido clássico, inglês. Em outras palavras, Adam Smith. Porque é possível ser liberal, no comportamento, ou seja, querendo que o Estado interfira o mínimo nas minhas individualidades, seja em relação à chamada pauta moralista [drogas, aborto, LGBT], mas, ao mesmo tempo, querer que o Estado seja intervencionista na economia, se metendo nas regras do jogo do mercado, porque não se acredita na isonomia da mão-invisível. Nesse caso, não precisa ser comunista, socialista ou outra coloração avermelhada para não querer que a economia fique com os abutres. Pode ser keynesiano - que estava longe de ser um revolucionário. A paleta de cores é grande.

É complicadíssimo estabelecer um diálogo com alguém sem entender razoavelmente o que o outro quer falar. Algumas vezes, apenas falamos em dialetos diferentes. Em geral, porém, temos a tendência de lutar com o que for possível para vencer o diálogo, impor o que sabemos como única verdade existente, e nos desesperamos ante a qualquer argumento contrário, que não enxerga o "óbvio". Somos em geral arrogantes, detentores do certo, do ético, do correto, totalmente seguros de si, desmerecedores, em tom de ironia destrutiva e corrosiva, do outro. Ou simplesmente grosseiros - como foi o caso dos comentários do outro post. O raciocínio é simples: Ele é imbecil e pronto. Fim da discussão. Próxima polêmica, por favor, onde eu possa dar a minha visão superior.

Talvez, e finalmente, estejamos aprendendo o que é a opinião pública - mais de 200 anos depois do iluminismo francês, e quase 200 anos após a criação do Speaker Corner, no Hyde Park londrino. Porém, essa defasagem deixa muitas marcas, marcas que o tempo só acentua. A nossa opinião pública cada vez mais parece uma afonia de vozes surdas, um conjunto de opiniões privadas que não criam qualquer música, além do mero barulho. Uma sugestão sem querer criar uma regra: talvez fosse melhor escutarmos, e muito, antes de falarmos qualquer coisa.

domingo, 5 de outubro de 2014

Panorama das eleições - 1o turno

Por uma série de razões [incompetência, falta de tempo, polêmicas se atropelando...], não consegui dar qualquer pitaco sobre as eleições neste primeiro turno. Fiquei, então, com o cargo de observador-cronista-crítico das posições políticas que observei, o que me deu mais vontade de escrever do que sobre a eleição em si. Mais vontade porque, de certa forma, durante muito tempo, a eleição para a presidência não me preocupou: Dilma e Marina são candidatas equivalentes para ocupar o cargo [Aécio, não]. Equivalentes, não iguais.

Não são perfeitas, têm milhares de defeitos diferentes entre si, mas de algum modo perverso, funcionam como análogas, caso você afaste o microscópio. Nos detalhes, são quase opostas [uma ambientalista, outra desenvolvimentista; uma pretensa esquerdista pré-68, outra pretensa esquerdista pós-68; uma pragmática outra idealista, etc.], mas numa visão aérea, distante, sem pormenores, as duas seriam confundidas, suspeito. Os seus defeitos são intercambiáveis e no fim vira um grande "tanto-faz" sobre quem for eleita.

Novamente, e para deixar bem claro isso: Aécio, por sua vez, não é equivalente às duas candidatas mulheres. Ele claramente representa o reacionário [no sentido de manter políticas de privilégio] e liberal [no sentido de econômico de deixar o mercado nas mãos apenas dos tubarões].

O que sempre me espantou foi as eleições para o governo dos estados: Alckmin, sendo reeleito num estado que está sofrendo de falta d'água; Pezão, vice-governador de Cabral, liderando as pesquisas num estado onde se acampou na porta do então governador por semanas, em sinal de protesto contra a violentíssima política de segurança. Claro que dá para entender os motivos dessas votações [um sentimento forte anti-petista, no primeiro caso; uma tentativa de fazer "voto útil" logo no primeiro turno contra Garotinho, no segundo], mas não consigo entender.

Com isso, me restou acompanhar das trincheiras, como um espectador de novela, os comentários entre os partidários dessa guerra pseudo-ideológica que foi palco o faketruque. Foi difícil segurar o ímpeto de me intrometer [só opinei em um caso de mentira deslavada], foi complicado aguentar tanta artilharia pesada vinda de todos os lados que mais queria ferir que construir, mas eu sobrevivi, sobrevivi para contar. :-)

Não precisa ser um gênio para perceber os públicos ali envolvidos, mas quero deixar registrado, como forma de crônica de uma eleição anunciada: O Brasil está dividido ao meio. De um lado quem apoia o projeto que se chamou lulo-petista, do outro, os muito e muito diferentes entre si contra isso.

Por mais curioso que possa parecer para quem se lembra da mesma crítica levantada ao outro espectro político, o projeto lulo-petista, que é, em tese, ou que se vende como tal, de esquerda, é bem mais coeso que o adversário. A chamada oposição está esfacelada - muito provavelmente por culpa dela mesma. Não há oposição porque e/ou não se sabe, e/ou não se conseguiu, e/ou não se quis fazer oposição nos últimos anos.

Entre os oposicionistas, há claramente de três a quatro grandes divisões: anti-petistas, claramente reacionários; os marinistas, ligados às causas mais atuais, verdes, tecnológicas; e os esquerdistas, que querem puxar o debate mais para a esquerda - grupo que ainda se divide entre os anarquistas e os mais pragmáticos [nomes todos meus, claro]. Vou tentar traçar o perfil de cada um desses grupos aqui, mas se há algo que os une, em linhas muito gerais, e o que é muito curioso, é a lógica do ressentimento. Não se vota a favor do próprio candidato, na maioria das vezes, mas contra o outro. Aponta-se o indicador para o outro e se esquece dos outros quatro dedos que miram o próprio.

Ou, do lado exatamente oposto, há um sentimento de grande desesperança coletiva porque não haveria nenhum político "bom". Sentimento este muito parecido com a descoberta de que deus não existe, nem mesmo existe o papai noel ou o coelhinho da páscoa. Puxa-vida.

Mas como ser extremamente coerente para governar um país de 200 milhões de diferentes almas? Como agradar a gregos, troianos, espartanos, cretenses, efésios, e tantas e tantas outras populações? [Daí algumas pessoas falarem sobre a importância dos governos menores, como prefeituras e centros comunitários. Mas isso é papo para outro dia.] Aos eleitores, pois:

Lulo-petistas
Por conta do tamanho do eleitorado, há muitas divergências entre esses, mas há algo que os une: Percebe-se que houve avanços sociais inegáveis nos últimos 12 anos. Inegáveis até para os adversários, que mantêm seus discursos sobre a manutenção dessas mesmas políticas [Bolsa família, Pro-Uni, Minha casa, Mais médicos...]. Esses eleitores nem sempre concordam com tudo o que o projeto lulo-petista pratica, mas o prefere, claramente, contra os adversários. Provavelmente por isso, há uma demonização dos principais adversários.

Os ataques a Aécio antes da morte do Eduardo Campos [aliás, que eleição foi essa, hein?], e depois, mais fortemente contra Marina são prova disso. Marina, claro, não se ajudou, voltando atrás de políticas mais liberais, mas os partidários do projeto lulo-petista pegaram essas fraquezas da Marina e fizeram troça. Chafurdaram. Sambaram na cara.

Se ela recuou sobre o casamento entre homossexuais, é porque é evangélica e obedece ao Silas Malafaia. Se tem o Giannetti e o Lara Resende na equipe econômica, é porque é neoliberal. Se muda sobre a lei da anistia, é porque é ligada aos militares torturadores da ditadura. Todas associações muito rápidas que nem sempre se comprovam na realidade.

Porém e o principal: todas essas são posições que o lulo-petismo não só defendeu como praticou. Ou Lula ou Dilma tocaram nas causas ditas moralistas [aborto, drogas, LGBT etc.], cortaram os lucros dos grandes bancos ou revisaram a lei da anistia? No fundo, os dilmistas criticavam na Marina algo que a candidata deles fazia exatamente igual.

Marinistas
Esses, para mim, são os mais interessantes. Marina nunca ganhou uma eleição majoritária, sempre participou do legislativo, e quando foi para o executivo, como ministra, se sentiu sufocada e pediu para sair. Isso talvez seja a explicação dos diversos erros que ela cometeu nessa candidatura.

Com a morte de Eduardo Campos [novamente: que eleição!], Marina ganhou todos os votos e mais um pouco dos dedicados ao seu antecessor. Ela virou um sinônimo de uma política que poderia ser de esquerda, verdadeiramente de esquerda, mas que se importaria com causas que o governo lulo-petismo parecia não se importar, como as verdes ou a de proteção de populações minoritárias fora do eixo urbano. Era alguém que encarnava uma esquerda que não pensa em crescer o bolo para dividir, que não divide a sociedade em apenas classes sociais, que sai do âmbito da política quadrada, de dentro de gabinete e protocolar. Em suma, parecia a personagem perfeita para incorporar a vontade das ruas do ano passado. Parecia. Com a ajuda dos dilmistas e dos aecistas, ela se auto-implodiu.

Os marinistas não conseguem mais declarar seu voto em altos brados, como foi no início da sua campanha. Há uma vergonha atravessada na garganta, como uma espinha de peixe. Há uma dificuldade de se aceitar a posição dela ambígua em relação aos ruralistas, por exemplo. Como uma verde negocia com gente assim? É uma contradição que não consegue se sustentar, porque ataca seu eixo principal.

Entre os que votam em Marina, há ainda aqueles que querem apenas votar contra o PT. O que nos leva ao próximo grupo de eleitores.


O anti-petismo
Entre esses, não importa quem vença a eleição, desde que não seja Dilma. O sentimento é de nojo contra o PT e Lula, muito parecido com o que havia quando eu era moleque contra Brizola. A piada, então, era "Brizola? Isola". Me parece uma posição reacionária, no sentido clássico, de querer voltar a ser o que era, antes de Lula.

A principal bandeira desse grupo é a da moralidade no sentido da lisura com a coisa pública. Muito parecida, aliás, com a levantada por Collor em 1989, quando se anunciou como "o caçador de marajás". Apregoam o voto contra Dilma como se a compra de votos de parlamentares para a processo de privatização da Vale ou para a emenda constitucional para a reeleição em cargos executivos, ambos no governo tucano de FHC, não tivessem existido. Ou que o mensalão não tivesse aparecido no governo do Azeredo, do PSDB, em Minas Gerais. Ou que o governo eterno do PSDB de São Paulo não estivesse sendo investigado por corrupção nas obras de expansão do metrô. Marina, claro, sai na vantagem com esse argumento da lisura, mas sua fraqueza em outros aspectos detonam sua imagem aqui.

Além do argumento da propensa honestidade, se usam de argumentos elitistas e de manutenção de privilégios - às vezes nem se dando conta disso. Os símbolos aqui são outros, não necessariamente diretos porque, bem, ninguém no Brasil é machista, racista ou tem qualquer preconceito. Mas não se vota no PT porque o Lula é analfabeto, Dilma é mulher [Marina entra no balaio igualmente], pobre agora frequenta os mesmos lugares que eu, tem muito preto na faculdade, gente que não sabe se comportar em ambientes públicos. O melhor-pior argumento que eu cheguei a presenciar foi: a inflação cresceu [o que já é uma falácia] com os serviços caros porque se paga muito pelos empregados, que não são qualificados para receber tanto.

Esquerdistas
Por fim, há esse pequeno, porém barulhento, grupo que quer puxar a discussão mais para a esquerda: Quer introduzir a discussão sobre as pautas morais [aborto, drogas, LGBT...], quer pensar outro modelo econômico para o país, diminuir a grande desigualdade social que ainda existe, planejar um futuro mais igualitário para todo mundo.

Nesse grupo, há os pragmáticos, que conseguem enxergar em algum candidato alguém que represente esses anseios. Entre os pragmáticos, ainda há os: pragmatíssimos, que votam nos principais nomes [principalmente Dilma] abrindo mão de alguma dessas bandeiras para focar em outras, que acham mais importantes [como o caso da desigualdade social à custa da destruição ambiental, por exemplo]; e os pragmatinhos, que votam em candidatos menos expressivos [Luciana Genro, mas também Eduardo Jorge], porque são os únicos que falam sobre esses temas de maneira aberta, mas que não tem qualquer chance [eleição não é só para vencer, minha gente!].

E há os anarquistas, que querem outra forma de política, e sugerem não votar.

Estes sugerem que pensar que a participação na democracia deve acontecer apenas de dois em dois anos é se abster dos destinos do país pelos outros dois anos e se achar o super-importante quando vai a uma urna eletrônica. Pensar que a democracia representativa é a única forma de se mudar o país é ter uma visão antiquada e, muito pior, covarde.

Falta água em São Paulo não apenas porque os governos foram gananciosos e acabaram com o ambiente do estado, mas porque nós, paulistas, consumimos muito, muito mais que o estado consegue produzir. Mata-se muito no Rio porque nós, fluminenses, queremos que se mate muito os pobres nas favelas, e assim podemos nos sentir seguro. Nós somos o problema.

Enquanto acharmos que o problema político é dos outros e não nosso - meu! - só ouviremos reclamações e acusações contra o outro lado. É a lógica do ressentimento.