terça-feira, 21 de julho de 2015

As casas enroladas em arame farpado

Se há uma coisa boa em viver em uma cidade cujo transporte público é basicamente o ônibus é poder observar, às vezes calmamente, a cidade, suas ruas, esquinas, gentes, enquanto se trafega de norte a sul, e vice-versa. Funciona muito bem para os raros dias em que o engarrafamento não trancou e bloqueou e enlaçou descuidadosamente toda a urbe. É de espantar como a máfia que controla os ônibus ainda não tenha feito qualquer propaganda usando isso a seu favor.

Em cidades de países ricos e sérios, você passa boa parte do seu dia-a-dia debaixo da terra, em plataformas mal ou bem cuidadas de 50, 100 anos, passeando em labirintos no ritmo das pesadas pisadas à sua frente, entrando em linhas estranhas, baldeando em estações erradas, com medo de perder a descida precisa. No Rio, nos sábados de fim da manhã ou de início de noite, do caloroso inverno de céu azul e sol seco, você observa como o comércio popular resiste mesmo no infelizmente degradado Estácio; como a notívaga Lapa respira tranquilamente com o dia claro; como pipocam, na contramão da concentração das grandes cadeias de supermercados, pequenos hortifrútis como válvulas de oxigenação; como rareia o número de pessoas que ainda insistem em combater o bom combate do lado de fora dos seus muros; como as casas - quase todas - de bairros como Méier, Maria da Graça, Del Castilho se erguem sob a miríade de arames farpados.

Parece, em alguns endereços ali perto da Igreja do Sagrado Coração, cenário de filmes de guerra. O arame farpado não é aquele fininho de fazendas, usados para demarcar o espaço de latifúndios geralmente improdutivos. São robustos círculos concêntricos cujas lâminas são dentes de cachorros cheios de raiva. São mensagens para qualquer transeunte, mais ou menos bem intencionados, dizendo para nem tentar qualquer gracinha, para se afastar e deixar aquela família de bem em paz. Os dentes do arame grosso, que nem deveria ser chamado arame de tão espesso, são símbolos de uma casa, que vive sob o signo do medo, real ou imaginado. É um caminho, não de tijolos dourados, como o de Dorothy, mas de um nível alto de desespero - des-espero, sem espera, sem esperança.

[Curiosamente há casas que optam por não se defenderem tanto ou com essas armas. Imagino: estariam estas famílias mais vulneráveis? Seriam os alvos preferenciais para os gatunos na hora que estes escolhem as suas vítimas? Ou o inverso: o marginal [lembrando: aquele que vive à margem] pensaria que essas casas não devem ser tão importantes assim porque, exatamente, não se protegem tanto. E se o ladrão quer ser desafiado pela dificuldade do arame farpado? Ou quer dar um troco naqueles que tentaram, virtualmente, o ferir? Como podemos saber como pensa um meliante qualquer?]

Há também alguns bares de esquina, padarias híbridas, pizzarias de entrega, e - novamente eles - hortifrútis que sobrevivem - sobrevivem! - nesse caminho de trincheiras dentadas que levam para o templo máximo da mentalidade de condomínio, o lugar onde todo mundo se sente seguro, protegido, relaxado como se estivesse na própria casa: o shopping center. O Norte Shopping é um dos centros comerciais que mais fatura em todo o país. Corredores sempre lotados de pessoas de carne e osso, praça de alimentação com filas com gente de verdade, lojas cheias de consumidores ávidos para brincar o jogo que o mundo está brincando.

Tudo isso nos levanta a sobrancelha esquerda perguntando: e a crise? Será que este é o único lugar que as pessoas que vivem atrás do arame farpado se sentem ligeiramente protegidas? Neste templo bem iluminado e com seguranças embaixo das árvores de plástico? Nesse ponto de encontro que venera o ato de consumir como se fosse o objetivo maior de toda a existência humana? Estamos trocando espaços privados por espaços privados por espaços privados por espaços privados? Vivendo cotidianamente o que seria considerado por outras gerações um simulacro do viver? Tudo controlado, limpo e bonito como se fosse um laboratório de experiências sociais?

O arame superlativamente farpado é um símbolo de um modo de viver que vê o outro como um problema. Como uma questão que não merece ser respondida ou pensada, mas eliminada. Um característica que não se restringe à Zona Norte, ou ao subúrbio. Muitíssimo pelo contrário. Uma tentativa cada vez mais comum em toda a cidade de se proteger de um inimigo, real ou imaginado, que vem pela televisão, pelas ruas, do asfalto, do morro, dos bueiros, das sombras, do outro lado do túnel, da imaginação neurótica que acha que o diferente de si sempre é uma ameaça. O sintoma visível de uma fantasia de segurança que só seria encontrada no âmbito do mais privado possível - de preferência em um bunker. Ou no conforto da privada. Um desejo de isolamento compulsivo, da destruição da coletividade anárquica, onde o mundo acontece sem roteiro pré-aprovado, onde o protocolo nem foi nem vai ser escrito. Uma fobia do até-mesmo ligeiramente diverso e uma adoração de tudo o que é ególatra, narcisista e excludente. Uma proposta de homogeneização das experiências cotidianas, de uma vida de gosto extremamente familiar e exageradamente confortável, que, com o tempo, tende a ir se degradando, perdendo o sabor, se anodizando, se encaminhando para o niilismo da falta de parâmetros e, consequentemente, a depressão. E tome remédios antimonotonia.

Ou nada disso. Ou simplesmente estamos aprofundando nossas existências em direção a relações cada vez mais simples e binárias, do tipo: eu x outro; casa x rua; público x privado, em que nenhum desses elementos se mistura, e um deles sempre é bom, enquanto o outro deve ser óbvia e necessariamente o inverso disso. Aprofunda-se as divisões em opostos que nunca se complementam, que têm aversão ao seu imaginário outro, aquele que talvez nem exista da maneira como esperamos. Um mundo em que sempre se odeia qualquer centímetro que saia do limite preparado com a antecedência de gerações. Há, parece, uma única forma de proteger essa identidade, que se quer-porque-quer fixa, imutável e limitada: com arame farpado.

sábado, 11 de julho de 2015

Minha rua e seus moradores

[Como sobreviver dentro de um cotidiano em que o ódio é a principal moeda de troca entre as pessoas? Em que a violência é justificada, a segregação, incentivada? Em que estamos destruindo cotidianamente os grandes formatos sem colocar nada no lugar? Como encontrar algum alento nessa atmosfera venenosa? Onde respirar quando falta o ar?]

Viver no mesmo endereço há tempos e as suas vantagens. Você começa a ganhar vizinhos, mesmo numa cidade que ainda insiste em crescer. Cumprimenta o ator olhudo, ponta de programas de humor desde Chico Anysio. Reconhece o grande pesquisador de música que vive no prédio Pixinguinha e, já bem velhinho, arrasta os pés pesadamente pelas calçadas. Pega o mesmo ônibus do travesti coroa que é careca em cima da cabeça e tem cabelo longo e louro nas laterais. Faz questão de acenar para o passeador de cachorros, que acena empolgado de volta, o mesmo que vai embora de bicicleta cantando. Escuta sem responder o português dono da mercearia suja, que sempre tenta justificar os preços altos com os problemas da economia. Enxerga os moradores da rua.

Quando se mora há muito tempo na mesma barulhenta avenida, é possível reconhecer os detalhes. Há a jovem que anda sempre sozinha, quieta carregando sacos com plástico, papelão, restos. Anda sempre com um turbante improvisado e roupas largas, como um figura saída de uma tela do Debret. É nova, magra, os olhos muito vivos e, ao mesmo tempo, tristes. Parece que está sempre a ponto de se desculpar, de começar a chorar, de desistir, de escapar - caso precise. Seu rosto é pequeno e bonito. Simples. Raramente pede dinheiro - quando acontece, faz em frente à padaria - padaria em que a atendente um dia quase pediu desculpas quando a conta de poucos itens deu R$ 50.

A moça que vive na rua dorme em lugar ignorado, mas suas coisas, seus sacos sempre estão perto do ponto de ônibus, do lado da estação de bicicletas. Ela nunca encara os olhos dos transeuntes, como se pedisse desculpas pela sua presença, pela sua existência. Seus olhos vivos e tristíssimos procuram apressadamente e ao mesmo tempo uma saída, uma via de fuga em caso de ameaça, mais matéria-prima que vai se transformar em dinheiro que vai se transformar em comida que vai lhe dar mais sobrevida. Sobrevida...

Nunca a vi comendo.

A padaria é ponto de outros moradores, como o bêbado da voz caricaturalmente grossa. Ele, ao contrário da moça jovem, está sempre tentando causar algum tipo de rebuliço. É abastecido pelo pessoal da oficina, vizinho da padaria e da auto-escola. Dorme por ali mesmo. Esse encara quem o encara. Como se nós fôssemos os culpados, os responsáveis por ele estar ali, daquele jeito. Como se nós tivéssemos obrigação de lhe dar dinheiro. Às vezes, rola uma discussão em brados com outros moradores da mesma marquise. Problemas de vizinhos... quem nunca?

Já o vi em outras latitudes, com outros mendigos também conhecidos, como o careca baixinho que vive grunhindo e que bateu até matar a bananeira que crescia ao lado do viaduto Carlota Joaquina, aquele que passa por cima da pista do Aterro do Flamengo. Não satisfeito com apenas matar a bananeira, tacou fogo no toco que sobrou. Um sujeito que carrega muita confusão dentro de si, claramente errante, sempre com uma latinha de Brahma à mão. Parece com ódio da sociedade porque não a consegue entender - essa mesma sociedade que também não fez muito esforço para o entender. Já trabalhou com o guardador de carro perto da Policlínica, mas não mais. É dos mais inconstantes.

Recentemente, apareceram dois novos, um casal, exatamente nesse viaduto, que eu sempre vi como a mais perfeita rota de fuga para os assaltantes da região. Desde que o menino foi assassinado no ponto de ônibus em frente à loja de ferragem, que fica do lado da farmácia, do lado da oficina, do lado da auto-escola, do lado da padaria, a área parece que ficou mais segura. Uma patrulhinha fica 24 horas por ali. Uma pracinha foi construída. Brinquedos de criança. Luz forte. Jardim com flores. Academia da Terceira Idade. O sentimento, talvez apenas somente o sentimento, se espalhou até mesmo o viaduto Carlota Joaquina - um nome que diz algo sobre o local.

O casal no viaduto pescou minha atenção recentemente. Todas as vezes que eu passo bem cedinho por ali, indo ao supermercado ou à feira, mesmo quando encontro o menino psicótico que passa andando à deriva e todo encasacado mesmo no mais alto verão, conversando, discutindo, brigando com os seus demônios, eles, o casal da escada do viaduto está lá, ainda dormindo. E é uma cena que se destaca do cinza do chão, mesmo que eles estejam totalmente sujos, que se descola do barulho dos carros que passam logo ali abaixo, ainda que não façam qualquer ruído.

Os dois dormem calma, profunda, justamente. Dormem sem pressa. Dormem numa realidade paralela ao que acontece sobre o viaduto. Ignorando a neurose de quem está chegando para o trabalho na IBM ou na Odebrecht. Dormem como se mostrassem que não há necessidade de muita coisa no mundo. Um com o braço sobre a outra. Encaixados em conchinha. Ela com a cabeça no ombro dele. Ele fazendo carinho nela. Desconjuntados, atrapalhados, um sobre a outra, e vice-versa, como em disputa pelo sagrado território da alcova. Um alcova pública, mas ainda uma alcova.

São dois jovens, mais novos que eu, completamente fora de qualquer padrão da exigência hegemônica de beleza. Dormem sobre o papelão nas madrugadas em que os termômetros descem a menos de 15 graus. Eles têm um à outra para se esquentar, se encostar, saber que não estão sozinhos, completamente sozinhos no mundo. Não que seja indispensável ter um alguém especial exatamente ao seu lado, mas eles não teriam nenhuma outra pessoa - nenhuma outra, em todo o mundo. O outro, a outra que está do lado dela, dele, é um contato que restou. Eles e o resto do mundo, eles e a humanidade, eles e o que os circunda.

Ainda não estão totalmente alijados da sociedade - não digo desta sociedade que os quer fora do mundo, quer apagá-los, quer que eles miraculosamente não existam mais, ou melhor: nunca tenham existido jamais. Eles mostram que há algo em comum entre as pessoas, usem ternos, tailleurs, um top vermelho encardido, uma camisa branca dois números maiores. Todos fazem parte de algo que é maior: ao fim, somos os mesmos e únicos.

Eles ainda não desistiram, não se largaram, não têm medo, raiva, não querem destruir nada, não foram para uma dimensão à parte, ainda se conectam uma com o outro, ainda enxergam em si, em ambos, no que eles construíram, no que constroem a cada instante, a cada noite, ainda encontram um fiapo de vida, algo que ainda esquenta, que aquece dentro, que derrete o gelo que insiste em matar o que vive, ainda percebem que há algo mais que a mera sobrevivência, a mera busca pela próxima refeição. Eles ainda têm algo, algo por que continuar.

ps. Dispensável dizer: de dia ou de noite, todos os mendigos são pretos.