sábado, 19 de novembro de 2016

Como fazer a coisa certa?

Não sou grande fã de Spike Lee. Acho obras como "Malcom X" excepcionais, com a sua cinebiografia de um líder negro que aceitava a violência como parte integrante das negociações de poder, em vez de achar que as coisas cairão dos céus porque você se comportou bem, de acordo com as expectativas dos mais fortes.

Ele não mantém, contudo, uma regularidade para me fazer ir ao cinema todas as vezes que lança um novo filme - coisa que acontece com Woody Allen e Martin Scorsese, por exemplo, para ficar só com os nova-iorquinos [na verdade Spike Lee nasceu em Atlanta, mas seus filmes são tão ligados a NY que não dá para dissociá-los].

De qualquer forma, sua obra principal, "Do the right thing", tem ao menos uma cena memorável - e que diz muito sobre o nosso momento histórico. O longa tem aquele clima de retratar o berço da cultura hip-hop, mostrando quase num clima documentário o lado menos conhecido da cidade mais conhecida dos EUA. Sempre achei que faltava, ironicamente, ritmo, no seu início, mais puxado para a comédia de costumes. Depois, há o aumento da temperatura (no sentido metafórico e no literal) que culmina na cena clímax do longa. Para mim, a maior esfinge da obra dele, que eu até hoje não consegui decifrar completamente, o que demonstra todo o seu poder.

No filme, além de dirigir, escrever e atuar, Spike Lee é Mookie, um entregador de pizza que trabalha para o ítalo-americano Sal (Danny Aiello) e convive com seu filho racista Pino (John Turturro). Mookie é um sujeito muito tranquilo, sem muitas ambições, que não tem problemas de relacionamento com os italianos da área, mesmo com todos os poréns.

Ele se identifica com os negros, mas não é um grande partidário de qualquer movimento mais organizado. De certa forma, ele funciona como o elo que conecta os dois lados do bairro. É quem consegue se dar razoavelmente bem com os brancos e vive como os negros. Um sujeito quase híbrido - quase. Com essa facilidade em circular entre os diferentes, Mookie se torna uma espécie de válvula de escape de ambos os lados, o amortecedor de todas as tensões. Até que ele começa a comprar o barulho dos negros.

Encurtando uma trama razoavelmente longa: há uma crescimento da tensão durante o filme e os negros se enfurecem com os italianos e resolvem protestar em frente à pizzaria de Sal. Mookie, que sempre foi razoavelmente tranquilo, está completamente fora de si porque um de seus amigos acabara de morrer enforcado por policiais. Esfrega o rosto na tentativa de encontrar a resposta correta, enquanto os negros e os italianos discutem arduamente, sem tomar uma atitude mais direta.

Sal não é "culpado" de absolutamente nada. Não fez nada que possa ser visto, pelas leis, pelos códigos oficiais, como alguém que merecesse receber qualquer tipo de punição. Ele é o homem que estava há décadas na área, empregando gente do bairro, sempre se posicionando de maneira razoavelmente correta. Sal não era um problema, no sentido mais estrito da questão.

Ali, porém, Sal não era mais apenas Sal. Mookie não era mais somente Mookie. Eles se transformam em símbolos, vão além de suas próprias individualidades. Sal representa a opressão, a hegemonia, o andar de cima que insiste em pisar no de baixo. Mookie, que tinha sido um sujeito que passava panos-quentes em todas as questões desde o início do filme, decide então jogar uma lixeira na janela da pizzaria de Sal. Os negros aproveitam que o pavio tinha sido aceso e pilham o lugar. Era um pedido de reparação histórica.

Dá um confere na cena:


Sempre imaginei que o nome do filme tinha a ver com essa cena. Mas como "fazer a coisa certa" se Sal estava sendo punido por nenhum crime seu? Como o "certo" pode ser quebrar a lei, destruir o patrimônio alheio - ser um "vândalo"? Como o certo pode ser, em resumo, o "errado"?

 A cena é impressionante exatamente porque é amoral. Porque mostra que há momentos em que fazemos o certo por linhas tortas. Que é necessário quebrar algumas regras para que todos sejam respeitados por estas mesmas regras. A cena é grandiosa porque tem várias pontas soltas, várias questões não resolvidas, várias motivações que podem ser contestadas.

Eu, que sempre fui um adolescente muito certinho, fiquei chocado com essa mudança de posição do personagem quando a vi pela primeira vez. Como entender o protagonista bonzinho tomando uma atitude que é completamente contrária às suas atitudes desde o início do filme? Como optar por desrespeitar as regras, sem que isso se transforme numa regra desregrada? Como, em suma, viver sem regras? As regras funcionam para quem? Regras criam privilégios? As perguntas sem acumulam.

Se Mookie tivesse sentado e conversado com todas as partes, resolvido o problema no diálogo, negociando todas as questões, todos nós aplaudiríamos e saberíamos que era, claro, a "coisa certa". Mas o quão verdadeira seria essa cena? O filme mostra todas as nossas incoerências, nossas contradições, nossas vontades que são contra-si mesmas. Mostra que em situações extremas, às vezes, tomamos atitudes extremas. Que, às vezes, a violência contra símbolos opressivos, para destituí-los, para tentar equilibrar um pouco mais as coisas, são mais que desculpáveis, são necessárias. Mas qual é o limite para essa violência?

Suspeito que seja uma ótima metáfora do nosso momento histórico atual.

ps. revendo a cena agora, há uma outra virada de perspectiva quando o chinês diz para os negros que querem destruir seu lugar: "me black". Os negros entendem a diferença e param. Isso me lembra a famosa frase do Eduardo Viveiros de Castro: “No Brasil, todo mundo é índio, exceto quem não é”.

sábado, 5 de novembro de 2016

O que podemos fazer?

Vi esse pacote apocalíptico do governo estadual, depois da série de pacotes apocalípticos do governo federal, depois da eleição de um prefeito apocalíptico, ligado à Igreja Universal, e fiquei pensando: o que podemos fazer?

Em outras palavras: se acreditamos que há um descompasso imenso entre um discurso de austeridade e uma prática de aumentos de salários e benefícios para políticos e juízes, entre a suposta necessidade de cortes e a continua prática de isenções fiscais, feitas com, no mínimo, pouco esmero, o que podemos fazer?

Ainda: se não formos partidários da ideia de que esse é um remédio amargo para uma doença crônica, se percebermos que quem, como sempre, está pagando o pato é o andar de baixo, enquanto os ricos aumentam sua distância dos pobres, o que, cazzo, podemos fazer?

A resposta mais óbvia: protestar. Mas como? Que tipo de protesto? Aos domingos, fechando ruas da orla carioca - que já é normalmente fechada? Em dias de semana, interrompendo o trânsito no Centro da cidade, causando incômodo?

Qual é a garantia de manifestações? Demonstrar a insatisfação publicamente é o suficiente para que os mandatários mudem de posição? Ou eles podem simplesmente ignorar totalmente os protestos, como um pai generoso que olha a pirraça do filho e acha fofo? Ou ainda pior: e se eles capitalizarem essas manifestações para determinados fins, diferentes do que imaginamos?

Quantas pessoas são suficientes em um protesto para ter algum tipo de retorno? Seremos protegidos ou agredidos pela PM? Avisaremos com antecedência nosso trajeto? A manifestação será coberta pelas TVs? E se cobertas: qual será o tom? Seremos manifestantes ou vândalos?

Quais atitudes podemos tomar durante a caminhada? Podemos cantar palavras de ordem? Podemos xingar governantes? Podemos levar cartazes sugerindo a mudança do governo? Podemos pedir a morte de políticos?

Como chamar a atenção para a nossa insatisfação? Como não deixar que a manifestação seja domesticada? Como fazer com que os governantes nos escutem? Um protesto em um protestódromo seria eficiente? Qual grau de incômodo estamos dispostos a aceitar de manifestações contrárias às nossas intenções?

Podemos andar fora do trajeto determinado? Podemos revidar uma agressão de um policial? Podemos sequestrar embaixador americano, alemão, japonês? Podemos matar empresários que financiam estruturas de tortura?

Como demonstrar nossa insatisfação? Podemos quebrar símbolos  do Estado? Podemos quebrar vidraças de banco? Podemos tacar fogo em lixeiras? Podemos jogar coquetel molotov? Podemos exibir nossa raiva e frustração contra a precarização da educação, as filas de hospitais, a corrupção generalizada?

A morte de um tirano é justificada? Como decidir quem é tirano? Quem decide isso? Quais são os critérios?

O que podemos fazer, quando o horizonte parece tão pouco promissor, para voltar a ter um respiro de esperança?