terça-feira, 13 de março de 2018

A outra (conto)

Fui para Ilha Verde a convite de um amigo do trabalho. Posso assegurar que não foi a minha primeira opção. Nem a segunda. Não tinha mais nada para fazer naquele feriadão e ele insistia comigo há quase um ano. Foi quase uma forma de interromper os convites. Estava um pouco, um pouquinho curioso, para ser muito sincero. Muita gente já tinha ido à ilha e sempre falava das suas muitas maravilhas. Não pode ser tão mal assim. Areia, sol, água salgada. Tudo o que eu mais...

Não posso afirmar que sou um fã da natureza. Quando comentei com um amigo em comum que iria para a Ilha Verde, ele me olhou com cara de “você?”. Me enquadraria mais na categoria notívago urbanoide: poluição, prédio, gente, conforto, boate, junkfood, música alta, de preferência com uma batida quadrada, hipnótica. Mudança à vista?

Cheguei a uma idade em que eu deveria estar satisfeito com tudo à minha volta. Mas não. Alguma coisa, alguma coisa que eu não sei o que é, me faltava. Eu tinha conseguido me instalar em uma vida que eu tinha planejado desde sempre: o que mais eu queria?

Olhava para mim e não enxergava o que faltava. As amigas - curiosamente, as amigas insistiam: eu tinha que arrumar uma namorada. Eu já tive várias, na verdade. Umas ótimas, que se tornaram as minhas amigas; outras nem tanto. Todas tiveram os seus tempos e passaram – como uma metonímia da própria vida. As amigas teimavam: você deve se largar, se deixar levar, se abrir para o amor. Eu retrucava à brinca: eu tento, mas qual é o manual para se apaixonar?

Achava esse papo todo meio brega. Algumas pessoas têm uma necessidade patológica de um romantismo planificado, que respeita uma série de etapas a cumprir. Namorar, casar, ter filho, se separar, reclamar da/o ex... Tô fora. Sentia, entretanto, que alguma coisa me incomodava. Algum espinho continuava atravancando a minha garganta. E não, não era o fato de ter ou não ter uma namorada.

Foi por isso que eu aceitei o convite do João – o nome desse meu camarada, lá da agência – para ir para Ilha Verde. Era por demais inesperado para mim, e não caía num planejamento às avessas. Foi um movimento de tentativa de me largar, me deixar levar, me abrir para o inesperado. Queria desplanejar as coisas. Go with the flow.

Mas não iria acampar. Porque há limites que não devem ser ultrapassados jamais.

Escolhemos uma pousada tranquila. Boa localização, nada muito caro, bastante rústica até. Para chegar lá, pegamos um barco, dividimos com outras pessoas. Não reclamei da falta de organização para embarcar, do balanço das ondas que me mareou um pouco, nem de, apesar do pequeno mas seguro cais, desembarcar na areia da praia principal da ilha – algo que não havia sido avisado com antecedência. Tudo era experiência, tudo era experiência. Deveria me abrir para o novo. Derivar. Estava tentando me tirar desse lugar onde eu pudesse ordenar o meu entorno.

Meu mantra não deu conta, porém, da surpresa de descobrir que a nossa reserva de dois simples quartos tinha sido entendida de maneira errada – para tentar ser simpático – como um quarto duplo. E apenas uma cama de casal. Nada contra o João, mas não queria dividir o leito com ele por três noites.

Saí da pousada enfurecido, procurando uma vaga, uma cama, um quarto, o que quer que fosse, em qualquer lugar longe dali. Andei toda a extensão da praia, falei com uns 20 atendentes diferentes, pedi ajuda a balconistas, garçons, garçonetes, barqueiros... todos disseram que a ilha estava lotada por conta do feriado. Eu, inexperiente, eu, sem qualquer jogo de cintura, eu, acostumado com planejamentos sendo cumpridos à risca, mesmo nesse país excessivamente tropical, voltei derrotado para a pousada. Encontrei João nervoso, tentando resolver o problema, que se apresentava insolúvel. Pensei em voltar para casa. Pensei em abandonar tudo. Pensei em xingar todas as pessoas que eu encontrasse pelos próximos dois dias. Mas engoli em seco. Sem falar uma palavra, peguei minha mochila, catei a chave, e fui para o quarto, deixando o João para trás.

João é um cara simpático, aberto, engraçado, mas desde que chegou à agência tentava forçar uma amizade que não nasce voluntariamente. As ligações mais fortes precisam, necessariamente, de história, de histórias. Algumas relações podem se romper indefinidamente porque foram estendidas além do seu ponto ótimo, antes do tempo. Prometi para mim, tal qual uma Scarlett O’Hara dizendo que nunca mais iria passar fome, só um pouco menos melodramática, que eu não ficaria os quatro dias – e as três noites – com ele, naquele quarto. Não sobreviveria.

Trocamos de roupa e decidimos ir para a praia – não era para isso que estávamos ali? Só que a praia balneável mais próxima ficava a uma hora de caminhada. Numa trilha. Que subia e descia um morro. Dentro de uma floresta úmida. Tudo é experiência, tudo é experiência. Levei água e fiz um sanduíche. Passei protetor solar. E repelente. Calcei um tênis velho, confortável. Fiz uma mochila com toalha, óculos escuros, chinelos e demais badulaques. Queria diminuir a possibilidade de me irritar – mais. Planejamento também é importante. Não seria inteligente de minha parte ignorar um dos meus principais ativos. Partimos numa marcha silenciosa.

O dia correu tranquilo, com água calma e morna e sol envergonhado – o que minha alva e desacostumada pele agradeceu – e até consegui me esquecer da situação do quarto. Almoçamos tarde, num restaurante de beira-mar, peixe fresco frito, com acompanhamentos frugais, salada, pirão leve, arroz branco genérico. Voltamos sem muita dificuldade. Estava tudo bem. Mesmo. Parecia algo como felicidade, se é que podemos de alguma maneira capturá-la com as palavras. Era isso, então?

Decidimos, de noite, buscar alguma birosca que servisse qualquer cerveja digna do título. Não foi tarefa fácil, mas após uma peregrinação encontramos uma minúscula vendinha que ficava colada ao principal camping da ilha. Meu humor parecia leve. A atmosfera insular deveria estar me contagiando. O mundo me soava mais fácil. Não estava me reconhecendo. Qual seria o próximo passo, escutar reggae?

Com uma autoconfiança que me era totalmente incomum, decidi puxar papo com a mesa ao lado – duas meninas queimadas de sol, com roupas hippies, fumavam, bebiam e conversavam animadamente. Não particularmente bonitas, tinham corpos apetitosos, se podia reparar à distância, com peitos que quase explodiam nas camisas – ou batas, ou como se chamava aquilo que elas vestiam. Eram, isso sim, bem diferentes do estilo de mulher com quem eu me relacionava comumente, mesmo as one-night-only, mas resolvi aceitar a maré de primeiras vezes sem relutância.

O nome de uma era Estela, da outra, a que mais me interessou, Íris. Cabelos cacheados volumosos queimados pelo sol, pele salgada, dentes um pouco maiores que a boca comportava, e um esplendoroso par de olhos claros, que me pareceram azuis à primeira vista, mas que na verdade, descobri depois, eram verdes. Ela me pareceu corresponder. Em pouco tempo, confirmei que éramos de mundos bem diferentes, mesmo. Ela, bióloga, estudava tartarugas, uma especialista. E eu, por profissão e escolha, um generalista. Sei um pouco de quase tudo, e tudo, certamente, de nada. Talvez seja resultado de uma falta de interesse no atacado. Não tenho uma paixão, suspeito – o que me deixa na dúvida sobre mim mesmo. Um pouco desconcertado. Era isso?

Ela me parecia um pouco limitada para qualquer assunto que fugisse da sua expertise. Ela se dizia feminista e liberal, mas só repetia clichês internéticos. O papo não fluía naturalmente. Tinha que a toda hora fazer uma nota de rodapé em assuntos que são, para mim, banais. Pensei: e daí, é só por essa noite. E não vou precisar dividir a cama com João – que se engraçava com Estela. Combinei de ele dormir na barraca com sua pretendente, e Íris ir para o nosso quarto. Talvez culpado (injustamente) pelo quiproquó do quarto, ele aceitou. Não iria discutir paridade nem tentar ser magnânimo naquele momento. Antes que eu percebesse, impulsionado por essa exótica sensação de potência – ou pelas cervejas que estavam fazendo efeito – eu e Íris já nos beijávamos.

Assim que entramos no quarto, já sacando as roupas, ela me pediu para falar um assunto. Paramos. Admito que fiquei surpreso. Era muito fora do clima daquela ilha. Eu a olhei arregaladamente e todas as dúvidas possíveis e algumas impossíveis me sucederam tão rapidamente que parece que elas apareceram ao mesmo tempo. Ela não era mulher. Ela não havia sido mulher a vida inteira. Mas ela se sentia mulher. Ou, ao contrário, sempre se sentiu mulher, a vida inteira, mas não era mulher, assim, biologicamente falando. Não, não. Deve ser algo mais prosaico. Ela não se depilava. Ela estava menstruada. Ela tinha namorado. Ela tinha namorada. Estela era a sua namorada. Ela era virgem. Não, impossível. Ela não transava há muito tempo. Não acredito. Mas provável ela ser ninfomaníaca. Desisto. Não sabia. Não sabia o que era. Demorou apenas um segundo, demorou toda uma eternidade. Ela, em silêncio, esperou que eu aterrissasse – não com calma, mas nervosa, com medo de ser criticada, abandonada. Podia ver o profundo receio que recheava seu rosto. Ela baixou a cabeça, junto à voz, e disse: acontece uma coisa comigo quando eu transo. Antes de eu poder exprimir qualquer reação, ela emendou, à guisa de justificativa, um tom acima, com velocidade: Algumas vezes, não sempre. Como se ela quisesse ser vista como “normal”, com apenas alguns comportamentos esporádicos “anormais”. As interrogações pululavam em mim, agora sem nem mesmo frases para acompanhá-las. Depois, ela deu uma nova pausa e balbuciou: eu, eu... incorporo quando transo. Incorporar?, pensei, como assim incorporar? Era alguma metáfora, era algum tipo de código secreto? Como assim?, me arrisquei, num misto entre o curioso e a tentativa de não invadir demais o espaço dela. Sou da umbanda, ela começou, e às vezes, algumas vezes, raramente, quase nunca incorporo uma das entidades enquanto transo. A cigana da praia, ela exemplificou. Eu, o maior cético da história – provavelmente –, não pude segurar um sorriso condescendente, como se tivesse escutado uma história de abdução alienígena, que ela entendeu como um sorriso de simpatia, e se sentiu acolhida. Me beijou com volúpia, e, logo, eu, apesar de ter ficado intrigado com a declaração, tinha me desconectado da informação para me dedicar ao corpo dela.

Explorei cada pedaço da sua pele e pude confirmar a promessa que se anunciava quando a avistei. Ela parecia se divertir também. Olhava para mim com vontade, sorrindo, gemendo, fechando os olhos. Ela sentou no meu colo, com as pernas em volta de mim, subindo e descendo, ritmadamente. Aos poucos, ela foi derretendo, se desconectando, os olhos fechados, a respiração profunda em um compasso repetitivo, hipnótico, o cabelo jogado, um lado depois o outro, em seguida voltava, ia se entregando, aos poucos, inclinou o corpo para trás, a cabeça pendurada, um feixe de luz que passava numa brecha pela janela mal ajambrada iluminou seu corpo, dividindo-o em duas metades, como se ela tivesse um meridiano que a cortasse ao meio, em laterais, eu comecei a ouvir uma ligeira risada, leve, que foi crescendo, crescendo até que explodiu numa gargalhada completamente diferente da voz que ela tinha quando nos encontramos, uma gargalhada em altos soluços. Eu estava assustado. Ela parou. Ela me encarava agora com um olhar de uma segurança incomum. Não, não era segurança. Ou não era apenas segurança. Tinha lascívia, um enorme desejo de possuir o outro, de adentrar, de submeter o outro. Era como se eu me tornasse apenas um objeto para ela, para ela resolver as suas vontades, era como se ela tivesse tomado completamente as rédeas da situação e me fizesse mero componente. Era como se ela tivesse se tornado uma predadora, e eu, a presa.

Aconteceu, assim, rapidamente. Acho que o fato de ela ter bebido, somado ao incomum – eu, essa noite, esse quarto, essa ilha –, e ela ter se sentido segura comigo a fez relaxar. Talvez, sei lá, abrir as portas. Olha o que eu estou dizendo! Eu, que não acredito em nada. Eu sou ateu! Ateu! Não acredito nem em energia, signo, tarô, nada disso. Tenho dificuldade com qualquer movimento além da realidade mais material. Isso – essa incorporação –, isso não pode ser explicado racionalmente. Como posso estar me deixando levar assim?

Talvez, talvez, porque essa posição me deixou com um tesão que eu nunca tinha experimentado antes. Ela, ela, a outra mandava em mim. A cigana. Ela. Exigia de mim, sem pronunciar uma única palavra reconhecível, fazer o que ela quisesse. Ria, ria, gargalhava, de engasgar. Eu virei um boneco. Queria apenas agradá-la. Obedecê-la. Seguir suas ordens. Queria, mas não só. Queria também conquistar essa, essa... mulher. Esse espírito, essa fantasma. Sei lá. Queria no fundo, fazer o seu jogo para que ela me desejasse. Queria mostrar para mim mesmo que eu podia. Que eu podia seduzir até mesmo o que não existia. Queria agarrar esse espectro que escapava por entre os dedos como se fosse fumaça – e nem fumaça era. Estava, pela primeira vez na minha vida, apaixonado, instantaneamente apaixonado. Uma paixão doentia, obsessiva, uma paixão platônica, à primeiríssima vista – sendo que eu não vi nada, nem ninguém.

Quando acabamos, ela, digo, Íris estava ainda com ligeiros espasmos, olhos fechados, como se retornasse de um lugar muito longínquo para si, falando coisas ininteligíveis, num português quebrado, recheado de chiados, de palavras entrecortadas e recriadas com uma cadência musical, estalando os dedos, respirando fundo, tentando se controlar, enquanto eu estava ofegante, olhos arregalados, assustado, não sabendo o que dizer, o que comentar, impressionado com o que aconteceu. Depois, descansados, deitados, um do lado do outro, barriga para cima, olhando o teto encardido da simplória pousada, sol nascendo lá fora, corpos suados, sentindo dores de tanto esforço, a musculatura esgarçada, eu tinha certeza de que havia sido uma experiência fora do ordinário. Alguma coisa havia passado por ali, alguma coisa tinha mexido comigo profundamente. Eu tinha certeza de que queria repetir.

Quase não saímos do quarto nos dias seguintes – João, coitado, ficou direto na barraca com Estela. Íamos a um restaurante e voltávamos, e era só. Cochilávamos levemente e eu acordava já nervoso. Tomávamos banho juntos, encaixados. Ela saía pelada do quarto, no meio da madrugada, às gargalhadas, só para sentir a brisa da noite, e eu corria atrás dela, irreconhecivelmente. Eu queria mais e mais. Eu estava viciado nela. Nela, na cigana. Só nela. Estava encantado. É difícil admitir isso. Estava enfeitiçado. Não quero jogar com as palavras, mas não sei se é possível. Estava hipnotizado, completamente entregue. Queria mais uma dose, a toda hora. Todas as vezes que Íris voltava a si, eu não queria conversar com ela. Tentava, mas eu desconversava. Queria manter Íris longe, fora. Queria apenas a cigana. A cigana, que não falava nada com nexo, mas que se comunicava com risos, com gargalhadas, com gritos de prazer, com orgasmos estrondosos. Parecia que ela se alimentava de mim, da minha energia, dos meus gozos, do meu suor, de todos os meus fluidos. Ela mantinha um olhar que me atravessava. Eu era tão menor que ela, tão insignificante, mas me sentia o maior dos homens quando a fazia explodir. Ela resmungava nesse seu dialeto o qual eu nunca conseguia captar mais que uma ou outra frase, que não fazia qualquer sentido. Eu tentava conversar com ela. Durante o ato, eu dentro de Íris, eu falava: você está gostando? Você gosta assim? Você quer mais? Ela só ria, ria, como se dissesse: coitado, como ele pensa que pode ter a petulância de falar comigo? Quem ele acha que é? Ria como se me olhasse de cima para baixo, de cima abaixo. O que tinha Íris de insegura tinha a cigana de prepotente. Quase como uma segunda personalidade que compensava a primeira. Eu, contrariado, querendo controlar o inefável, comandar o indomável, entrava ainda mais forte, mais fundo, mais duro, mais violento, até que ela parava de rir para começar a gemer novamente, no meu ritmo, saía de um registro e entrava em outro, até que eu, de algum jeito, conseguia me fazer entender, até que ela respondesse às minhas ações, até que eu novamente dominasse o ambiente, domasse esse cavalo desembestado, me transformasse no esteio, no maestro, no coreógrafo desse pas de deux exótico, ou, melhor dizendo, desse pas de trois, em que um dos elementos sempre sumia, desaparecia, e os outros dois lutavam, ou um deles escalava essa alta montanha para chegar no topo e encontrar uma cigana rindo de mim, me caçoando, uma cigana que já sabia o futuro e o passado, já sabia o que iria acontecer e o que havia acontecido, uma cigana que faria qualquer coisa para se alimentar da minha energia, para drenar toda a minha força, para sugar minha seiva até o fim, para retirar completamente minha vontade de viver, como uma vampira, como uma parasita.

Me afastei repentinamente, assustado com a conclusão a que tinha chegado. Me levantei de supetão da cama e fui para perto da porta. Foi como se eu tivesse despertado de um sonho e caísse em outro sonho, automaticamente. Menos nebuloso, com alguma autonomia, mas ainda assim, com os meus braços ainda atados. Estava ali com ela há quantas horas? Que dia era hoje? Estava sol ou já era noite? Havia perdido a noção do tempo. Há quanto não via João, ou qualquer outra pessoa? Eu tentava raciocinar, mas não conseguia ter clareza de pensamento. Estava cansado, esgotado, drenado. Os olhos arranhados. Uma fome fenomenal. Uma estafa física. Eu iria apagar a qualquer momento e ficar desacordado por eternidades. Parecia que eu estava semanas, meses, anos ali. Parecia que estava em uma teia de aranha, com o meu sangue sendo sugado diretamente do meu antebraço, me tornando seco, sem vida. Mesmo quando eu achava que estava no controle, eu agia em função dela. Eu não conversava com Íris fazia dias – para onde ela tinha ido? Eu era o responsável por ela ter sumido? Era um embate, na verdade, estava num duelo entre mim e a cigana. Íris era apenas a hospedeira, apenas isso. E eu fornecia o alimento para ela, a cigana. Eu não queria mais continuar. Queria me libertar, queria ir embora. Seria possível? Como fazer isso? Parecia sem forças. Olhava para o lado e Íris, ou a cigana, sei lá, ela dormia ali. Quem era ela? Será que ela tinha feito algum feitiço, algum trabalho? É assim que se diz? Eu não estava acreditando no que eu dizia. Mas eu tinha medo, um medo anterior, inicial, seminal. Parecia que um edifício que se mostrava como sólido despencava por inteiro, como se fosse de areia de praia. Nessa hora alguma coisa fez sentido em mim, duas pontas que estavam separadas se juntaram e estalou, deu choque, despertei deste sonho para cair novamente em outro sonho, numa queda em abismo em sequência. Ficou em mim somente o vazio – a falta desse algo que eu não sabia bem o que era. A minha vida era, havia sido até então, uma série de caixas quadradinhas colocadas uma sobre a outra, com cuidado metódico. A cigana era um espelho colocado à minha frente, um espelho que me refletia pelo avesso, ao contrário, com o meu negativo, que era ainda assim eu, um “eu”. Com o meu outro, com a minha outra. Com alguém tão diferente de mim, que, de alguma forma, me instigava a caminhar na sua direção, e me perder, e entrar em um lugar inseguro. Com minha antípoda, com o outro lado da gangorra. Assustado com o que eu via, com me reconhecer pelo inverso, depois de tanto tempo me escondendo de mim mesmo porque só enxergava um “eu” que eu tinha estabelecido, um “eu” fixo, que não dava mais conta de mim mesmo, porque eu já tinha mudado, porque mudamos sempre, porque é impossível fixar os limites por muito tempo, porque não há estabilidade eterna, porque só podemos escolher, no máximo, se temos sorte, o medo que vamos enfrentar, assim, nesse estado de espírito sobressaltado, eu acordei, mais uma vez.

Do meu lado, Íris dormia profundamente. Levantei cuidadosamente, sem fazer barulho algum. Fui à janela porque queria ver o céu, queria ver um horizonte. Era noite da mais escura, com a lua envergonhada e nuvens escondendo as estrelas. Nada podia ser mais banal, com bichos fazendo barulho, as pessoas dormindo, o negror pegajoso. Mas era uma outra forma de banalidade.

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