O outro Herbert Quain
Moisés é um homem de poucas e parcas paixões. Gosta de ficar em casa com a pequena família, tem o cuidado de se aprumar quando trabalha (numa repartição pública onde é respeitado) e sua predileção é descoberta fácil: livros. Já amanheceu e anoiteceu e entardeceu sentado em sua poltrona de couro curtido, marrom escuro, perto da janela do quarto aos fundos, a luz sempre fraca, a lâmpada pendurada por um fio esgarçado, ele, quase aterrado pelos velhos livros e entorpecido pelo cheiro de bolor que entope as narinas menos acostumadas.
É um homem quieto, de sorriso constante. Quando se defende das suas características, argumenta insegurança. Gosta de avistar o neto de dois anos brincando na porta do quarto. Nesses momentos o riso não é uma defesa, é uma resposta, é automático.
Se possuísse o hábito de se gabar, ouviríamos que faz o seu trabalho há trinta e cinco anos e nunca teve qualquer tipo de censura por ocasião de uma falha pessoal. É metódico do tipo disciplinado. Senta-se na mesma mesa do restaurante em que almoça, existente desde quando começou no laboro.
Possui uma coleção variada de literatura. Mas, se o pedissem para, dentre os vários, apontar um de prioridade, curiosamente não titubearia em pronunciar apenas uma curta sentença: Herbert Quain. Apesar do nome nitidamente anglo-saxão, diz-se que é do Europa oriental, sem muita exatidão quanto ao seu país, rosto redondo, barba grande e desordenada, cabelos cacheados pretos. Em sua única foto conhecida, aparenta pouca vaidade e rudeza. Como se fosse um selvagem insociável.
Tal autor gosta de temas pouco comuns, e é por isso a sua a posição de destaque para Moisés. Narra eventos inacreditáveis, que, em tese, se oporiam ao realismo; contudo, nessas fábulas, ele se preocupa em fazer crer ao eventual leitor da veracidade da mais completa invenção. Abusa de raciocínios intrincados, de uma lógica surpreendente e, quando se termina um de seus livros, sua fé cotidiana fica necessariamente abalada.
Moisés admite, com a vergonha pontuando as frases, que possui toda a obra desse homem desconhecido, quase que dentro de si, tantas são as vezes que já as releu por completo. Cita que Quain nunca escreveu um prólogo ou página que descrevesse a si mesmo, ou que fosse capaz de indicar alguma coisa sobre a personalidade do escritor, como exemplo, um livro de resenhas. Ele é um mistério até para aqueles que o lêem. Alguns chegam a duvidar de sua existência. Principalmente porque suas obras são todas impessoais. Tirando seu estilo, de fácil identificação, é complicado isolá-lo. Emprega frases rebuscadas que podem levar o incauto a imaginá-lo como um virtuose, o que é quase verdade. Como uma entidade que as pessoas visitariam por tempo específico, Moisés brinca que ele é a versão masculina da musa grega e sorri sozinho com o pensamento.
Agora que se aposentou, Moisés tem o tempo que sempre ansiou para se dedicar apenas aos seus livros. Não tem nenhuma pretensão literária, apenas gosta de revisitar as personagens e situações que lhe são tão familiares. Como se assim ele conseguisse fugir um pouco da solidão que abate os homens quando envelhecem em qualquer idade. Aos poucos, uma obsessão veio a tomar-lhe: embrenhar-se-ia para saber de Herbert Quain. Empenharia todo o seu tempo com isso, seria seu propósito, sua meta, seu fim.
Escolheu os caminhos mais óbvios: bibliotecas públicas, universidades abertas e as católicas, sebos desconhecidos, livrarias especializadas, críticos honestos, outros autores do submundo, feiras de livros, eventos literários, coquetéis com escritores, rodas de literatura, jornais específicos, publicações on-line, escolas de pensamento... e, unanimidade: os que o conheciam, não demonstravam maior conhecimento que o próprio Moisés. Alguns, nitidamente, criaram sobre a aura de mistério. Ouviu que Quain habitara durante anos uma cabana cheia de livros no meio de um deserto gelado, para o lado da Romênia, ou Hungria. Outros insistiram na tese, um tanto quanto óbvia, de que ele era um insociável. Havia os que narravam histórias malignas, assassinatos, fugas, esconderijos, reclusão. Moisés encontrou um trabalho na faculdade estadual sobre o estilo inconfundível de Quain, definindo-o como um ‘neobarroco com tendências simbolistas, mas cerebral’ e achou graça da frase; contudo, exatamente nada sobre sua vida particular. Fez amizade com o professor que redigiu a dissertação e usava algumas de suas tardes para a conversa. Moisés havia despertado o interesse novamente do mestre sobre o autor nebuloso. Chegaram ao ápice de programar uma viagem para o leste europeu, mas quando perceberam que seria improfícuo, já que não sabiam nem por qual país começar, desistiram.
Assim, com a mesma sem-cerimônia que a empolgação o dominou, tal ventania foi diminuindo, aguando, se misturando, até que o deixou só novamente. E os dias voltaram a ser o mesmo e eterno.
Uma noite, porém, ele, que não era dessas coisas, sonhou. Mas era de uma realidade tal que em nenhum momento se apercebeu do evento onírico. Principalmente por sua simplicidade, quase cotidiana. Era um ambiente que ele reconhecia: um quarto escuro, com uma infinita fileira de estantes com livros que se perdiam até o final do campo de visão, e duas poltronas, iguais à dele, no centro. Pareceu-lhe que era a única coisa a fazer e, por isso, sentou-se. Em instantes, estava ao seu lado o autor Quain. Parado, muito parecido em movimentos com ele próprio: quieto, calmo. Estavam tão confortáveis que, ao olhar de um leigo, era possível supor uma antiga amizade entre os dois. Não é imaginável apontar com exatidão como ou quem iniciou a conversa. O que realmente Moisés abalizou, entretanto, foi a voz de Quain. Suave, delicada, até um pouco infantil. Não imaginava uma voz tão doce para aquele corpanzil e se surpreendeu e ficou feliz com isso. Conversaram, se conversaram, pouco, e Moisés não seria capaz de se lembrar de nenhuma frase. Marcou-lhe apenas a voz que era terna em angular oposição ao homem abrutalhado que estava ao seu lado. Recorda com perfeição de suas mãos, dos dedos, das unhas enegrecidas que pareciam garras e os gestos vagarosos. O rosto era o mesmo rude de barba revolta e cabelo desgrenhado que sua única foto propagava. No entanto, nada foi tão marcante quanto sua voz. Vinha até ele em sussurros com poucas variações de tons, de volume, monocórdia, o pequeno som que desbancava qualquer conceito pré-estabelecido, que valia como uma demonstração de engano, de como todos estavam errados. Quain permanecia, Quain existiu, era evidente. E como podia ter imaginado ser ele um cruel?, com essa fala, ninguém pode ser maléfico. Sorriu de alegria por ter a possibilidade de conhecer essa verdade e acordou.
Acordou e buscou o conteúdo da conversação e só achou a voz, e o pensamento veio em seguida e repetiu alto, sozinho na cama: “Nunca havia imaginado tal voz”. O sonho trouxe-lhe um conforto, como se tivesse alcançado um objetivo impossível. Era a resposta que havia se proposto, o pedaço suficiente, o detalhe necessário. Podia voltar ao seu cotidiano sem sobressaltar-se, sem desesperança.
E assim, teve uma vontade quase subconsciente de se renovar, ler novos livros, entrar em contato com velhos autores, mas de obras inéditas, ou textos que nunca lera por escolha, destino, fatalismo ou qualquer outro pretexto. Numa manhã fria e ensolarada, se dirigiu para o sebo costumeiro, num beco transversal de uma rua movimentada, onde os livros não são organizados e que, para escolher qualquer coisa, perde-se horas. Moisés gosta de ser surpreendido pelas suas descobertas. O seu procedimento é o mesmo sempre: arrasta um dos bancos para perto dos amontoados e vai separando um a um, colocando em uma única pilha ao seu lado direito o que gosta, e no esquerdo o que não desperta curiosidade. É quase como um exercício físico para ele. O dono, um senhor grisalho, o cumprimenta: “Moisés, separei para você um livro que você não acreditaria se apenas lhe contasse”, traz nas mãos uma edição fininha e velha, com papel amarelado e orelhas gritantes nas páginas. Moisés levanta os olhos e questiona sem pronunciar uma única palavra, mas o senhor apenas o entrega para Moisés que vidra na capa. É um pequeno conto de Herbert Quain. Abre a página e começa a ler, fica ainda mais atarantado. O autor narra uma cena com duas personagens homens sentadas em poltronas velhas de couro, rodeados por estante infinitas de livros, e ambos conversam, mas não se entendem, pois falam em línguas diversas. Impressionantemente estão os dois familiares, mesmo que, nas aparências, não sejam amigos. São dois monólogos que não se entrecruzam, mas que se complementam. Moisés olha para o vazio e dá apenas um sorriso.
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