Série personagens fictícios
capítulo 1: o médico incompetente
Edgar sempre fora o principal aluno das suas turmas, desde o primário. Não fazia nenhum esforço para ser o melhor. As notas esbarravam no máximo. Os alunos, no início, o cobiçavam, depois, tenderam à inveja. Edgar mostrava-se superior (ou indiferente) a tudo. Para ele, todas as conversas sobre assuntos menores que aqueles que ele considerava importante, eram balelas. Reunidas num saco e jogadas fora antes mesmo de conferi-las.
Para falar a verdade, Edgar menosprezava os outros. Sentia-se tão acima da humanidade que não se importava com as declarações que lhe dirigiam. Seguia em frente. Era blasé, distante, de certa forma frio. Incomodava-se com nada.
Estudou medicina, mas poderia ter optado por qualquer outra profissão. Seria bem sucedido, estava escrito. Já na universidade, demonstrava a sua capacidade de assimilação de conteúdo de maneira enciclopédica. Fazia ligações entre o conteúdos explicados que eram incríveis, sabia diagnosticar doenças impensáveis, tinha interpretações surpreendentes, lembrava de detalhes dos textos, recitava-os despreocupadamente em voz alta para a humilhação do interlocutor. Os professores o adoravam. Os alunos, alguns o admiravam, outros, os menos afoitos ao estudo, não o suportavam.
Ao formar-se, encontrou a mulher da sua vida. E esse encontro logo surtiu efeito nele. Aline não fora sua primeira mulher, mas com ela, Edgar pensou em se casar. O incrível é que ela era extremamente diferente dele. Se ele era racional, ela era emotiva. Se ele era teórico, ela era prática. Se ele era um frio, ela era passional. Os mais chegados perceberam os efeitos, viram como ele se transformou num ser mais humano próximo dos outros.
Quando estava longe dela, entretanto, Edgar ainda era praticamente o mesmo. No hospital, arremessava diagnósticos sem nenhum tipo de contato com os pacientes. Não lhes dirigia a palavra, não conversava, não queria saber como se sentiam. E, surpreendentemente, sempre acertava. Por mais que não valesse da sua própria humanidade para saber como os outros se saíam, por mais que se mantivesse à distância, ele conhecia tão bem o corpo humano por estudos com cadáveres e em livros que ele processava todas as informações e desenvolvia uma receituário infalível quase instantaneamente.
As pessoas vinham lhe agradecer e ele sempre ficava constrangido. Não via nenhum motivo para isso. Queria ficar longe delas. Continuar fazendo aquilo que ele estuda e estudou tanto para fazer, ou seja, curar pessoas. Não era nada demais o que ele fazia. Quando ele consertava o carro, por exemplo, não ia dizer "obrigado" ao mecânico. Ele não fez mais que o seu trabalho. No máximo, dava uma gorjeta. O trabalho deve ser desempenhado à perfeição ou não deve ser feito.
Quando já beirando a idade que chamam de madura, sua mulher adoeceu. Ele, já um médico reconhecido internacionalmente, pediu para tratar do caso. E mesmo que não tivesse feito o pedido, seria indicado porque era realmente o melhor. No início, pensou que seria mais um de seus pacientes. Então, não conseguiu evitar a obviedade, e o pensamento assombrou à sua mente. Era a sua mulher, ali, deitada. Mesmo assim, não devia se envolver, repetiu para si mesmo. Receitou, como sempre, revisitando suas anotações mentais, uma série de procedimentos. E, pela primeira vez, não deram certo. Pelo contrário.
Aline queria falar com ele. Edgar não sabia como lidar com isso, a mulher queria falar-lhe. Deitada sobre a cama, coberta pelos lençóis brancos, usando aquela roupa ridícula, ela seria sua mulher ou mais uma paciente? E por qual motivo seus métodos não surtiram efeitos? Edgar se confundira. Nada era mais claro. Isolou-se, deixou-a sozinha, não deveria se envolver, tinha que curá-la. E isto não queria dizer envolvimento, nunca quis, não poderia deixar-se contaminar, ele sabe a resposta, é óbvio, qualquer um pode enxergar, está na sua frente, tem que estar. Nada o impede, ali na frente, é só abrir os olhos, mas por que agora não vê nada?
Mas nada deu certo dessa vez.
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