E então Ramon disse: "Let's play rock and roll", assim mesmo, em inglês, porque era a língua de Kurt Cobain e Tom Yorke, seus ídolos, e contou "one-two-three-four", como se fosse um dos Ramones, porque éramos dessa geração e começamos a tocar. Como sempre, o bar estava meio-cheio, meio-vazio, dependendo de quem o enxergasse. Não somos um sucesso, mas também temos amigos. Sempre há quem pague o couvert. Claro que não dá nem para a conta de luz, mas ninguém aqui tem essa como a principal fonte de renda – infelizmente.
Eu sou o baterista da banda. Nos apresentamos todas as quintas, um dia que seria de médio movimento mesmo. No fim de semana, temos que ganhar algum dinheiro com o estabelecimento. O bar é uma parceria entre alguns amigos de faculdade – eu incluído – para termos um lugar para escutar a música que gostamos, comer bem e encontrar conhecidos sem precisar enfrentar nenhuma fila ou esquentar a cabeça. Jonas sempre brincava, durante a faculdade, sobre o seu "Masturbar". Um dia, ele se emputeceu com o trabalho, resolveu pedir demissão e, com o dinheiro do fundo de garantia e ajuda financeira de todo mundo, montou-o. Temos um amigo que gosta de fazer drinques e o chamamos para ser o barman. Outro gosta de cozinhar e ficou responsável pelo menu, mais um é DJ e assumiu as carrapetas; a decoração ficou a cargo do Negão, que desenha, junto com a mulher do Jonas, que comprou os móveis do salão e todos os apetrechos femininos (luminárias, tapetes, copos etc.). Aline estava desempregada na época da inauguração e virou a hostess. Enfim: todos têm empregos fixos nas suas respectivas áreas e ganham um extra pelo bico. A verdade é que todo mundo trabalha no Masturbar porque gosta. A grana que levantamos não é nada demais. Às vezes dá até prejuízo. Mas o lugar se transformou na nossa casa em comum. Uma espécie de república, literalmente pública. Jonas é quem organiza tudo. É uma espécie de gerente-administrativo. Ao fim do mês, presta contas a todos e mostra balancetes, planilhas e gráficos. Todos recebem um dinheiro fixo da casa e o que sobra da grana – se sobra – ou é reinvestido no bar ou é dividido pelos sócios. A organização é uma espécie de condomínio, como os Diários Associados. Ou uma cooperativa. Ou seja lá como isso é denominado.
Participo da empreitada desde o início – sou uma espécie de sócio-fundador – pelos motivos acima, mas, principalmente, porque tocar bateria é a atividade que mais me dá prazer no mundo. Posso passar horas no banquinho com a baqueta na mão, atrás de bumbo, pratos, tons, que não percebo o tempo passar. Na noite de quinta-feira, não há Papa que morra que me faça ficar na redação. A propósito, meu ganha-pão é o jornalismo. Sou editor de um telejornal nacional. Se não coloco o nome do dito-cujo aqui é porque não o considero importante, apesar da audiência. O salário não é ruim, não posso reclamar. A montoeira de prêmios que já recebi parecem me dizer que a grana ao fim do mês é justa. O problema é que não tenho nenhum tesão por isso. Faço tudo no automático. Tento trabalhar bem, de maneira correta, e não deixar passar furo, mas nada é empolgante. Já virei noite dentro daquela sala imensa e fechada, sem nenhuma ventilação além do ar-condicionado, já entrevistei ministro, governador, bandido, já consegui matérias exclusivas, já acabei com a carreira de militares com informações privilegiadas, já sustentei programas de assistência, mas nada disso é importante. Se me levanto diariamente e vou ao trabalho é para manter o luxo de poder sentar às quintas-feiras à bateria d'Os Escroques.
A verdade é que não sou um bom baterista. Dos músicos (Ramon na guitarra e voz, Alexandra no baixo e backing, Índio na outra guitarra e eu), sou, sem sombra de dúvida, o pior. Todos sabem disso, ninguém faz questão de esconder e essa sinceridade não me magoa. Já o fato em si, ou seja, eu ser ruim nas baquetas, ah, isso sim me incomoda. Porque por mais que eu pratique – e todo o meu tempo livre eu fico em casa a batucar: cheguei a reformar um quarto colocando proteção acústica, para poder treinar mais – por mais que eu me esforce, parece que não é o suficiente. Já melhorei muito, mas nunca serei igual aos outros escroques. Nem me comparo aos grandes bateristas da História do rock (Neil Peart encabeçando a lista), mas queria me equiparar aos meus amigos.
Já pelo outro lado, na minha versão Jeckill, sou considerado bom. Ou seja, não faço um esforço absurdo para tal e tenho recompensa. Claro que já saí exausto da redação, é até comum que isso aconteça. Mas imagino que este é o resultado normal de todos os trabalhos do mundo em que a tensão é alta o dia inteiro. A questão é: eu não me dou por completo para o jornalismo. Sou, na minha avaliação interna, burocrático, mediano, medíocre até. Faço o mínimo para que não me mandem embora. E esse mínimo é visto como algo acima da média.
Não pensem que eu quero legislar em causa própria, não, por favor. A causa é outra. Estou mais reclamando do mundo e questionando o sucesso que me elogiando. Também não é uma questão de baixa qualidade dos coleguinhas. Há sujeitos sensacionais sentados ao meu redor naquela redação. Gente com doutorado em História, arte, sociologia, que sabe falar cinco, seis línguas. A média cultural é elevadíssima. A grande maioria tem a mesma quantidade de prêmios que eu, se não mais. Ou seja, não é uma questão de dizer que os meus pares são ruins, mas que, talvez, sem querer, eu tenha talento para o jornalismo. Mesmo contra a minha vontade. E, por outro lado, na música, que é a minha paixão, estou qualificado na vergonhosa casta dos "esforçados".
Imagino se tal situação não ocorre exatamente por isso. Por estar aficionado com a banda, eu fico tão tenso que não absorvo a essência da música. Para mim, tocar seria algo cerebral, nunca entranhado na minha carne. Talvez se não me importasse tanto, se deixasse para lá, talvez conseguisse ser contaminado com essa espécie de radiação. O pensamento, a preocupação seria uma barreira entre mim e a música. Com o jornalismo, como eu não dou a mínima para ele, seria exatamente o oposto. Ele viria atrás de mim. Eu faria tudo no piloto automático, teria o faro para a notícia marcado no meu DNA, o texto jornalístico tatuado no meu cerne.
Talvez eu devesse apenas relaxar com relação à música. Exatamente como acontece naquela fábula oriental em que a monja estuda diariamente para alcançar o nirvana e só consegue quando um dia, em uma caminhada de volta do riacho com um pote de água, tropeça e deixa o pote cair. Ao se assustar com a água desperdiçada, ao se desligar de sua procura constante pela iluminação, ela a encontra. Talvez não consigamos encontrar nada que procuremos. O ruim é que, infelizmente, não acredito nisso.
Para mim, o problema é a simples falta de talento. Para a música, apesar dos meus esforços, tudo é em vão. Não nasci talhado para isso. A minha compleição física não é a de bateristas. Tenho braços curtos, sou baixo e a minha coordenação motora é risível. Já para o jornalismo, parece que meu caráter foi escolhido a dedo: sou extremamente curioso, gosto de ler, abomino injustiças, e não me saio mal escrevendo. Ou seja, dois pesos e duas medidas.
Entretanto, ultimamente, estou ficando cansado de procurar um sentido no mundo. O que faço, agora, é estudar, mais e mais, para tentar, com esforço, melhorar a minha técnica. Sei que os meus companheiros de banda não vão me mandar embora. Todos nós não temos intenções comerciais além do Masturbar. Sabemos das nossas limitações e do nosso pouco tempo livre para tocar o projeto. Temos até algumas músicas gravadas e colocadas na internet. Quem sabe, assim, sem pretensão, conseguimos alguma coisa?
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