Dor
profundamente
transformador
Primeiro porque a peça me mostrou outro Mersault (o protagonista). Lido numa época bem triste na minha vida, ele me refletia nas palavras. Era um sujeito deprimido, que nada o tiraria da inércia. Era anódino, anestesiado com o mundo. Meu gosto foi por sentir que havia outro de mim no mundo, sentir que havia um igual, que não estava sozinho e que outra pessoa já tinha passado pelo que eu passava – e sobrevivera para contar.
Já o do Guilherme Leme é um homem que a expressão “tanto faz” recorre como uma vírgula. Ele percebe a falta de propósito de todas as coisas que o cercam e decide ser feliz com as pequenas coisas, tendo consciência das parcas escolhas que pode ter.
A famosa primeira frase: “Não sei se a minha mãe morreu hoje, ou ontem”, para mim, ao lê-la, era dita aos sussurros, sem força como por um sonâmbulo. Na peça, Guilherme Leme diz rápido, alto, para mostrar que isso não importa. Qual é a diferença de ela ter morrido hoje ou ontem?
Na versão do teatro, Mersault é exatamente o “homem revoltado” que Camus exemplificou no seu ensaio “Mito de Sísifo”. O homem que, diante das agruras diárias, de todo o sofrimento cotidiano, não se desespera e se suicida (o único problema filosófico para Camus). Ele não se faz de coitado e admite a parcela de responsabilidade por aquilo que ele se tornou.
Para mim, era um homem que acumulava angústias e explodiu um dia, sem saber muito bem por quê. Para a peça, é um homem que matou outro por causa do sol, do calor, do amigo. Tanto faz.
Portanto acertei quando profetizei que a peça não se aproximaria da minha imaginação, já que ela apontou outros caminhos e interpretações para o mesmo texto, até mais próximos, provavelmente, do original pensado por Camus. E não, não foi uma péssima ideia.