Comecei a nadar com seis meses de idade, se os relatos que eu escutei a vida inteira estão corretos. Antes dos 5 anos, já dominava os quatro estilos. Aos 5, fui federado, e tinha o segundo número de inscrição mais baixo entre todos os atletas fluminenses da minha idade [eu conheci o primeiro]: 25.079. Nadei ininterruptamente até os 16 anos quando, depois de muitas decepções minhas, pessoais, resolvi viver a vida fora das piscinas. Não voltei a nadar até os 26, porque o luto era forte. Entre idas e vindas, após o retorno, continuo nadando até hoje. Mas, recentemente, houve uma grande mudança nesse meu hábito.
Durante esses quase 30 anos de braçadas, eu praticamente só nadei dentro de piscinas. Em um espaço razoavelmente controlado, limitado, onde você sabe muito bem o que te espera. Era um constante ir e vir, um exercício de contar azulejos. Poucas vezes havia algo que fugisse de um marasmo, de algo extremamente repetitivo e monótono. Entre essas exceções, lembro da lenda da piscina do Guanabara que escutava quando criança, e onde, por acaso, fui nadar de maneira bem amadora muitos anos mais tarde.
O Guanabara, que fica aqui pertinho de casa, tem a piscina olímpica mais antiga não só da cidade como de todo o Brasil, segundo o site oficial deles. A construção se iniciou em 1932 e acabou em 1935, e foi sede do campeonato sul-americano deste ano, além de, ao longo de sua história, ser palco de cinco quebra de recordes mundiais, inclusive de gente como Maria Lenk, Manoel dos Santos e José Fiolo, nomes que são famosos para quem lembra um pouco da história da natação. Há uma placa com o feito de Fiolo no parque aquático até hoje, por exemplo.
Por ser uma piscina tão antiga, e dedicada igualmente a outras modalidades dos esportes aquáticos, os engenheiros acharam por bem fazer o poço, aquela fundura enorme que serve de segurança para a galera dos saltos ornamentais, na mesma piscina. Até aí, mais ou menos tudo bem. É como se, ao nadar nas raias centrais, olhássemos para o abismo das profundidades, que nem sendo tão profunda assim [gira em torno de seis metros] parece uma eternidade para quem está passando ali em cima. Para piorar, quando éramos garotos, a área do poço estava totalmente tomada por lodo, como se não fosse limpa há décadas. Não se enxergava nada além de uma espessa cobertura de limo verde-amarronzado.
Girava entre os garotos a lenda de que haveria uma ligação clandestina entre a piscina e a baía de Guanabara, que fica literalmente do outro lado da rua, na sua vertente praia de Botafogo, o que justificaria o gosto salobro da água - e o que também explicaria a quantidade de recordes ali, já que a água mais densa proporciona uma maior flutuação, portanto menos atrito, além de uma maior capacidade de deslocamento com as braçadas. Nós, meninos ainda crédulos das coisas desconhecidas, não pensávamos muito nisso: apenas nadávamos mais forte todas as vezes que por azar caíamos nas raias centrais [onde normalmente ficam os melhores tempos balizados]. Eu, particularmente, fechava os olhos, de medo. Como dizem por aí: para olhar para o abismo tem que estar forte, porque, senão, ele pode olhar de volta.
De toda forma, a principal diversão de quem nada na piscina é, muito provavelmente, a competição. Nem, necessariamente, ser mais rápido que o coleguinha, algo muito comum entre nadadores que tem a síndrome do peixe beta - aquele que não pode ver um igual que quer logo brigar. Mas, se já está um pouco mais maduro, ser mais rápido que você mesmo. Como se você estivesse sempre querendo evoluir. Ou nunca estivesse satisfeito consigo mesmo. Ou tendo que arranjar maneiras de não morrer de tédio.
Recentemente, eu dizia, recentemente houve uma mudança. Decidi aproveitar que eu vivo numa cidade litorânea, e na proximidade de praias que, segundo o governo estadual [quem ainda acredita nele?], estão balneáveis, resolvi simplesmente abandonar a piscina e nadar na praia. Escolhi, para o receio de amigos, conhecidos, gente que gosta de mim, e quer me ver com saúde, a praia Vermelha, por ser, bem, por ser na minha rua. Todos os dias que não chove, nem na véspera, nem no dia anterior, eu dou minhas braçadas de um lado a outro dos morros, da Urca e da Babilônia [acho que o nome é esse]. Só não faço virada olímpica porque de um lado a pedra está tomada de limo, e do outro, não há pedra para se virar.
Antes desse novo cotidiano, a minha impressão foi outra: medo. Essa informação não deveria assustar quem me conhece já que eu sou um dos maiores medrosos que existe. Mas era um medo meio generalizado, sem um motivo específico. Era medo do que eu não conhecia, medo do que eu suspeitava, medo do que eu poderia conhecer. Medo, medo, medo. Nadar no mar, mesmo que numa praia bem delimitada, com uma distância de cerca de 250 metros entre uma pedra e outra, numa profundidade que não deve passar a da piscina do Guanabara [que, aliás, foi limpa há cerca de dez anos], dá medo. Ou me deu medo.
Em várias oportunidades, não dá para enxergar um palmo à frente da cara. Sempre é necessário levantar a cabeça para saber se você não vai ser atropelado por um caiaque, um sujeito no stand-up paddle, por um pequeno barco, ou mesmo por um outro nadador. Na pedra do morro da Babilônia, sempre há um homem vestindo branco e pescando, e desde que ainda garoto vi um outro menino ser fisgado por um anzol e ter que cortar a própria carne para retirar, com a menor consequência, o pedaço de metal da perna, eu tenho receio de ser pescado também. No outro lado, aos pés da pista Cláudio Coutinho, é comum encontrar gente que faz pesca submarina, com seus arpões prontos para disparar. Há uns anos, um sujeito flechado por essas armas brancas [como diria O Globo] apareceu boiando nesta mesma praia. Fora que é difícil confiar nas medições do governo quando você encontra todos os tipos de objeto boiando na praia, especialmente às segundas-feiras, após um domingo bastante ensolarado - mesmo que os parâmetros entre o que o governo avalia e o que eu vejo sejam diferentes.
Nadar no mar, descobri, é outro esporte. Mesmo que a água seja mais densa e, como já vimos, auxilie na natação, manter o equilíbrio dentro d'água é um exercício que não para nunca. Como as águas, mesmo as mais calmas, estão sempre se mexendo, o primeiro esforço que se faz é para ficar quieto, parado, para seguir adiante. É um trabalho constante que aumenta de intensidade conforme o mar está mais nervoso. É um negócio de estabilizar-se para logo se desestabilizar e forçar a estabilização, que logo sai de estabilidade. Parece um equilíbrio em movimento. Uma ginga da capoeira. O andar de bicicleta. Sabe aquele nado bonito, esbelto, que você viu nas Olimpíadas e conseguiu repetir depois de muito esforço? Esqueça. No mar, nadar já é muito.
Em um segundo momento, nadar no mar requer uma disciplina ainda mais ferrenha, porque você sempre tem que estar atento para não ser atropelado, como dito acima, mas também para nadar em uma linha razoavelmente reta: você deve ir em uma direção que você mesmo pré-estabeleceu. Além disso, todas as vezes que você se desliga, algo te rouba a atenção. Uma vez, encontrei um cardume de peixes bem pequenininhos e nadei sobre eles por cerca de 20 segundos. Parece pouco, mas me senti naquela cena do personagem principal do "Barba ensopada...", do Galera, quando ele nada sobre uma baleia [aliás, parece que a cena realmente aconteceu com o autor; aliás 2, parece que Galera também nadava na praia Vermelha quando no Rio]. Minha atenção foi tomada por aqueles peixinhos. A velocidade com que eles mudavam de rumo. O ritmo coreografado entre todos. Era por demais fascinante para eu poder pensar em qualquer outra coisa além.
Há também a beleza natural do Rio, que eu, talvez por ter nascido em outra cidade, ainda não me acostumei. É muito impressionante respirar para um lado e olhar para o Pão de Açúcar, ali, do meu lado, enorme, impávido colosso. Respirar para o outro e ver, lá de longe, o Corcovado e a estátua daquele moço de braços abertos como se quisesse dar um abraço na cidade inteira. Mas o principal é o sentimento de liberdade. O horizonte que não tem fim. É o não enxergar bordas por todos os lados. O não ver os limites postos tão fisicamente. Isso, realmente, é enobrecedor. Claro que há limites - não nado quando chove, não nado quando alguém, eu ou o mar, está de ressaca, não nado quando estou cansado, quando tenho que fazer outras coisas. Mas há ainda muita liberdade dentro dessas limitações. Uma liberdade que geralmente não enxergamos quando estamos presos à vida dentro da piscina.
Para isso, para enxergar essa liberdade, não ver esses limites como inibidores, mas como incentivadores, descobri que há de se ter um pouco de coragem. E coragem nada mais é que enfrentar os próprios - e não de outrem - medos. E os medos são sempre, me parece, do nosso tamanho.
Durante esses quase 30 anos de braçadas, eu praticamente só nadei dentro de piscinas. Em um espaço razoavelmente controlado, limitado, onde você sabe muito bem o que te espera. Era um constante ir e vir, um exercício de contar azulejos. Poucas vezes havia algo que fugisse de um marasmo, de algo extremamente repetitivo e monótono. Entre essas exceções, lembro da lenda da piscina do Guanabara que escutava quando criança, e onde, por acaso, fui nadar de maneira bem amadora muitos anos mais tarde.
O Guanabara, que fica aqui pertinho de casa, tem a piscina olímpica mais antiga não só da cidade como de todo o Brasil, segundo o site oficial deles. A construção se iniciou em 1932 e acabou em 1935, e foi sede do campeonato sul-americano deste ano, além de, ao longo de sua história, ser palco de cinco quebra de recordes mundiais, inclusive de gente como Maria Lenk, Manoel dos Santos e José Fiolo, nomes que são famosos para quem lembra um pouco da história da natação. Há uma placa com o feito de Fiolo no parque aquático até hoje, por exemplo.
Por ser uma piscina tão antiga, e dedicada igualmente a outras modalidades dos esportes aquáticos, os engenheiros acharam por bem fazer o poço, aquela fundura enorme que serve de segurança para a galera dos saltos ornamentais, na mesma piscina. Até aí, mais ou menos tudo bem. É como se, ao nadar nas raias centrais, olhássemos para o abismo das profundidades, que nem sendo tão profunda assim [gira em torno de seis metros] parece uma eternidade para quem está passando ali em cima. Para piorar, quando éramos garotos, a área do poço estava totalmente tomada por lodo, como se não fosse limpa há décadas. Não se enxergava nada além de uma espessa cobertura de limo verde-amarronzado.
Girava entre os garotos a lenda de que haveria uma ligação clandestina entre a piscina e a baía de Guanabara, que fica literalmente do outro lado da rua, na sua vertente praia de Botafogo, o que justificaria o gosto salobro da água - e o que também explicaria a quantidade de recordes ali, já que a água mais densa proporciona uma maior flutuação, portanto menos atrito, além de uma maior capacidade de deslocamento com as braçadas. Nós, meninos ainda crédulos das coisas desconhecidas, não pensávamos muito nisso: apenas nadávamos mais forte todas as vezes que por azar caíamos nas raias centrais [onde normalmente ficam os melhores tempos balizados]. Eu, particularmente, fechava os olhos, de medo. Como dizem por aí: para olhar para o abismo tem que estar forte, porque, senão, ele pode olhar de volta.
De toda forma, a principal diversão de quem nada na piscina é, muito provavelmente, a competição. Nem, necessariamente, ser mais rápido que o coleguinha, algo muito comum entre nadadores que tem a síndrome do peixe beta - aquele que não pode ver um igual que quer logo brigar. Mas, se já está um pouco mais maduro, ser mais rápido que você mesmo. Como se você estivesse sempre querendo evoluir. Ou nunca estivesse satisfeito consigo mesmo. Ou tendo que arranjar maneiras de não morrer de tédio.
Recentemente, eu dizia, recentemente houve uma mudança. Decidi aproveitar que eu vivo numa cidade litorânea, e na proximidade de praias que, segundo o governo estadual [quem ainda acredita nele?], estão balneáveis, resolvi simplesmente abandonar a piscina e nadar na praia. Escolhi, para o receio de amigos, conhecidos, gente que gosta de mim, e quer me ver com saúde, a praia Vermelha, por ser, bem, por ser na minha rua. Todos os dias que não chove, nem na véspera, nem no dia anterior, eu dou minhas braçadas de um lado a outro dos morros, da Urca e da Babilônia [acho que o nome é esse]. Só não faço virada olímpica porque de um lado a pedra está tomada de limo, e do outro, não há pedra para se virar.
Antes desse novo cotidiano, a minha impressão foi outra: medo. Essa informação não deveria assustar quem me conhece já que eu sou um dos maiores medrosos que existe. Mas era um medo meio generalizado, sem um motivo específico. Era medo do que eu não conhecia, medo do que eu suspeitava, medo do que eu poderia conhecer. Medo, medo, medo. Nadar no mar, mesmo que numa praia bem delimitada, com uma distância de cerca de 250 metros entre uma pedra e outra, numa profundidade que não deve passar a da piscina do Guanabara [que, aliás, foi limpa há cerca de dez anos], dá medo. Ou me deu medo.
Em várias oportunidades, não dá para enxergar um palmo à frente da cara. Sempre é necessário levantar a cabeça para saber se você não vai ser atropelado por um caiaque, um sujeito no stand-up paddle, por um pequeno barco, ou mesmo por um outro nadador. Na pedra do morro da Babilônia, sempre há um homem vestindo branco e pescando, e desde que ainda garoto vi um outro menino ser fisgado por um anzol e ter que cortar a própria carne para retirar, com a menor consequência, o pedaço de metal da perna, eu tenho receio de ser pescado também. No outro lado, aos pés da pista Cláudio Coutinho, é comum encontrar gente que faz pesca submarina, com seus arpões prontos para disparar. Há uns anos, um sujeito flechado por essas armas brancas [como diria O Globo] apareceu boiando nesta mesma praia. Fora que é difícil confiar nas medições do governo quando você encontra todos os tipos de objeto boiando na praia, especialmente às segundas-feiras, após um domingo bastante ensolarado - mesmo que os parâmetros entre o que o governo avalia e o que eu vejo sejam diferentes.
Nadar no mar, descobri, é outro esporte. Mesmo que a água seja mais densa e, como já vimos, auxilie na natação, manter o equilíbrio dentro d'água é um exercício que não para nunca. Como as águas, mesmo as mais calmas, estão sempre se mexendo, o primeiro esforço que se faz é para ficar quieto, parado, para seguir adiante. É um trabalho constante que aumenta de intensidade conforme o mar está mais nervoso. É um negócio de estabilizar-se para logo se desestabilizar e forçar a estabilização, que logo sai de estabilidade. Parece um equilíbrio em movimento. Uma ginga da capoeira. O andar de bicicleta. Sabe aquele nado bonito, esbelto, que você viu nas Olimpíadas e conseguiu repetir depois de muito esforço? Esqueça. No mar, nadar já é muito.
Em um segundo momento, nadar no mar requer uma disciplina ainda mais ferrenha, porque você sempre tem que estar atento para não ser atropelado, como dito acima, mas também para nadar em uma linha razoavelmente reta: você deve ir em uma direção que você mesmo pré-estabeleceu. Além disso, todas as vezes que você se desliga, algo te rouba a atenção. Uma vez, encontrei um cardume de peixes bem pequenininhos e nadei sobre eles por cerca de 20 segundos. Parece pouco, mas me senti naquela cena do personagem principal do "Barba ensopada...", do Galera, quando ele nada sobre uma baleia [aliás, parece que a cena realmente aconteceu com o autor; aliás 2, parece que Galera também nadava na praia Vermelha quando no Rio]. Minha atenção foi tomada por aqueles peixinhos. A velocidade com que eles mudavam de rumo. O ritmo coreografado entre todos. Era por demais fascinante para eu poder pensar em qualquer outra coisa além.
Há também a beleza natural do Rio, que eu, talvez por ter nascido em outra cidade, ainda não me acostumei. É muito impressionante respirar para um lado e olhar para o Pão de Açúcar, ali, do meu lado, enorme, impávido colosso. Respirar para o outro e ver, lá de longe, o Corcovado e a estátua daquele moço de braços abertos como se quisesse dar um abraço na cidade inteira. Mas o principal é o sentimento de liberdade. O horizonte que não tem fim. É o não enxergar bordas por todos os lados. O não ver os limites postos tão fisicamente. Isso, realmente, é enobrecedor. Claro que há limites - não nado quando chove, não nado quando alguém, eu ou o mar, está de ressaca, não nado quando estou cansado, quando tenho que fazer outras coisas. Mas há ainda muita liberdade dentro dessas limitações. Uma liberdade que geralmente não enxergamos quando estamos presos à vida dentro da piscina.
Para isso, para enxergar essa liberdade, não ver esses limites como inibidores, mas como incentivadores, descobri que há de se ter um pouco de coragem. E coragem nada mais é que enfrentar os próprios - e não de outrem - medos. E os medos são sempre, me parece, do nosso tamanho.
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