segunda-feira, 25 de agosto de 2014

'El perseguidor' - Cortázar, trecho

Como es natural mañana escribiré para Jazz Hot una crónica del concierto de esta noche. Pero aquí, con esta taquigrafía garabateada sobre una rodilla en los intervalos, no siento el menor deseo de hablar como crítico, es decir de sancionar comparativamente. Sé muy bien que para mí Johnny ha dejado de ser un jazzman y que su genio musical es como una fachada, algo que todo el mundo puede llegar a comprender y admirar pero que encubre otra cosa, y esa otra cosa es lo único que debería importarme, quizá porque es lo único que verdaderamente le importa a Johnny.

Es fácil decirlo, mientras soy todavía la música de Johnny. Cuando se enfría... ¿Por qué no podré hacer como él, por qué no podré tirarme de cabeza contra pared? Antepongo minuciosamente las palabras a la realidad que pretenden describirme, me escudo en consideraciones y sospechas que no son más que una estúpida dialéctica. Me parece comprender por qué la plegaria reclama instintivamente el caer de rodillas. El cambio de posición es el símbolo de un cambio en la voz, en lo que la voz va a articular, en lo articulado mismo. Cuando llego al punto de atisbar ese cambio, las cosas que hasta un segundo antes me habían parecido arbitrarias se llenan de sentido profundo, se simplifican extraordinariamente y al mismo tiempo se ahondan. Ni Marcel ni Art se han dado cuenta ayer de que Johnny no estaba loco cuando se sacó los zapatos en la sala de grabación. Johnny necesitaba en ese instante tocar el suelo con su piel, atarse a la tierra de la que su música era una confirmación y no una fuga. Porque también siento esto en Johnny, y es que no huye de nada, no se droga para huir como la mayoría de los viciosos, no toca el saxo para agazaparse detrás de un foso de música, no se pasa semanas encerrado en las clínicas psiquiátricas para sentirse al abrigo de las presiones que es incapaz de soportar. Hasta su estilo, lo más auténtico en él, ese estilo que merece nombres absurdos sin necesitar de ninguno, prueba que el arte de Johnny no es una sustitución ni una complementación. Johnny ha abandonado el lenguaje hot más o menos corriente hasta hace diez años, porque ese lenguaje violentamente erótico era demasiado pasivo para él. En su caso el deseo se antepone al placer y lo frustra, porque el deseo le exige avanzar, buscar, negando por adelantado los encuentros fáciles del jazz tradicional. Por eso, creo, a Johnny no le gustan gran cosa los blues, donde el masoquismo y las nostalgias... Pero de todo esto ya he hablado en mi libro, mostrando cómo la renuncia a la satisfacción inmediata indujo a Johnny a elaborar un lenguaje que él y otros músicos están llevando hoy a sus últimas posibilidades. Este jazz desecha todo erotismo fácil, todo wagnerianismo por decirlo así, para situarse en un plano aparentemente desasido donde la música queda en absoluta libertad, así como la pintura sustraída a lo representativo queda en libertad para no ser más que pintura. Pero entonces, dueño de una música que no facilita los orgasmos ni las nostalgias, de una música que me gustaría poder llamar metafísica, Johnny parece contar con ella para explorarse, para morder en la realidad que se le escapa todos los días. Veo ahí la alta paradoja de su estilo, su agresiva eficacia. Incapaz de satisfacerse, vale como un acicate continuo, una construcción infinita cuyo placer no está en el remate sino en la reiteración exploradora, en el ejemplo de facultades que dejan atrás lo prontamente humano sin perder humanidad. Y cuando Johnny se pierde como esta noche en la creación continua de su música, sé muy bien que no está escapando de nada. lr a un encuentro no puede ser nunca escapar, aunque releguemos cada vez el lugar de la cita; y en cuanto a lo que pueda quedarse atrás, Johnny lo ignora o lo desprecia soberanamente.
 Todo el cuento acá.

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Adorável azul - Hölderlin

IN LIEBLICHER BLÄUE...
(Friedrich Hölderlin)
No azul adorável, floresce o telhado de metal do campanário. Em redor pairam gritos de andorinhas, à volta estende-se o mais comovente azul. O sol, por cima, vai muito alto e dá cor à chapa metálica. Mas suave, lá no alto, ao vento, range o catavento. Quando alguém desce, abaixo do campanário, os degraus, então o silêncio é vida; pois quando o corpo a tal ponto se destaca, depressa se forma uma figura do homem. As janelas de onde tocam os sinos parecem portas da beleza. Sim, as portas, parecendo ainda natureza, são à imagem das árvores da floresta. A pureza, que é simplicidade, é também bela. No interior, do diverso nasce um espírito grave. Tão simples são as imagens, tão santas, que por vezes se tem medo, na verdade, de as descrever. Mas os celestes, que são sempre inteiramente ricos e generosos, fazem dessa modéstia a sua virtude e a sua alegria. O homem, nisso, pode imitá-los. Mas, quando a sua vida não é senão cansaço, pode um homem olhar para cima e dizer: assim quero eu ser? Sim. Enquanto no seu coração permanecer a pura amizade, o homem pode medir-se, feliz, pela divindade. Será Deus desconhecido, ou será, como o céu, evidente? E nisto que prefiro acreditar. Tal é a medida do homem. Rico em méritos, é no entanto poeticamente que o homem habita nesta terra. A sombra da noite estrelada não é mais pura, se ouso dizê-lo, que o homem como imagem de Deus. Haverá na terra uma medida? Não há nenhuma. Nunca o mundo do Criador suspendeu o curso do trovão. Uma flor é ela própria bela porque floresce sob o sol. Frequentemente, o olhar encontra nesta vida seres que poderíamos dizer ainda mais belos que as flores. Oh, como o sei! Porque sangrar do corpo, e do próprio coração, por já não ser inteiro, agradará isso a Deus? A alma, creio, deve permanecer pura, senão do Todo-Poderoso aproxima-se com as suas asas a águia, reforçada pelo louvor do seu canto e as vozes de numerosas aves. É a essência, é a forma. Belo pequeno ribeiro, tu brilhas comovente enquanto corres, tão claro como o olhar da divindade pela via láctea. Conheço-te bem, mas as lágrimas perturbam o olhar. Vejo no entanto uma vida alegre florescer nos próprios corpos da criação ao redor de mim, porque a comparo sem erro às pombas solitárias entre os túmulos. O riso, dir-se-ia, desgosta-me no entanto dos homens, porque tenho um coração. Quereria eu ser um cometa? Assim o creio. Porque eles têm a rapidez das aves; florescem em fogo e são na sua pureza semelhantes à criança. Desejar um bem maior, a natureza do homem não o deixa presumir. A alegria de tal virtude, também ela merece ser louvada pelo espírito grave que sopra por entre as três colunas do jardim. Uma jovem bela deve coroar a sua fronte com flores de mirto, porque é simples, de essência e de sentimento. Mas os mirtos estão na Grécia. Quando alguém se vê ao espelho, quando um homem aí vê a sua imagem como pintada, ela assemelha-se-lhe. A imagem do homem tem olhos, a lua, porém, tem luz. O rei Édipo tem um olho a mais, talvez. O sofrimento de um tal homem parece indescritível, indizível, inexprimível. Quando o drama o representa, é isso que ocorre. Mas de mim agora, o que é que vem, que eu pense em ti? Como ribeiros, arrasta-me para aí o fim de um não sei quê, que se estende como a Ásia. Esta dor, naturalmente, Édipo conhece-a. Naturalmente é por isso. Terá também Hércules sofrido? Certamente. Os Dióscuros, apesar da sua amizade, não suportaram também a dor? Sim, lutar, como Hércules, com Deus, isso é sofrer. E possuir a imortalidade, que esta vida inveja, é também sofrimento. Sofrimento, também, contudo, quando um homem se cobre de sardas e fica coberto de muitas manchas dos pés à cabeça! E o belo sol que faz isso: ele tudo chama à sua revelação. Ele conduz os jovens com o encanto dos seus raios como com rosas. Os sofrimentos de Édipo são como os de um pobre homem que se lamenta de alguma falta. Ó filho de Laios, pobre estrangeiro na Grécia! Viver é morrer, e a morte é também uma vida.
Tradução daqui, da revista TBC, The Black Cat, em prosa. Aparentemente o original foi escrito em versos.

terça-feira, 19 de agosto de 2014

Tristeza que tem fim com um samba

Quando eu fiz a minha pós-graduação em Arte e filosofia, minha monografia versou sobre a forma como Machado de Assis teria psicografado o caráter do brasileiro - esse ser inefável - ao comentar como iria escrever sua mais famosa obra: "com a pena da galhofa e a tinta da melancolia". Ou seja, o "exterior", a pena, desse sujeito bem humorado, feliz e contente, seria apenas um disfarce para o verdadeiro interior, que esconderia uma tristeza inconteste.

Não sei se hoje eu ainda aceitaria repetir essa definição, a começar por essa divisão tão metafisicamente clara [ou seria claramente metafísica?], ou mesmo por pensar esse binômio não daria mais conta [se é que um dia deu] do que seria esse sujeito brasileiro; ou, ainda, por duvidar de qualquer possibilidade de definição totalizante.

De qualquer forma, a relação deste provável lado sombrio da personalidade do brasileiro sempre me chamou bastante a atenção, porque, de certa forma, comprovaria a tese do palhaço que esconde a tristeza interna fazendo piada. Tese esta muito bem representada, aliás e infelizmente, pelo suicídio semana passada do Robin Williams.

Por mais que eu suspeite de que Machado tenha feito um gol nesse seu chute, me espanto quando encontro representantes nas artes de brasileiros que mostram esse caráter mais obscuro, não abertamente resplandecente, como cada vez mais é a regra. Acontece todas as vezes que penso no Goeldi, por exemplo. De toda forma, o samba, mais amplamente a música popular feita no Brasil desde a bossa nova até o fim dos anos 1970, é, provavelmente, a mais representativa dessa mistura entre os dois polos.

Talvez o marco inaugural desse período, a criação de "Orfeu negro", quando Vinicius e Tom trabalham pela primeira vez juntos, já comprove isso. Como se sabe, a música mais famosa da peça, depois filme, chama-se "Felicidade", mas versa sobre a tristeza, aquela que não tem fim, enquanto o seu antagônico teria, sim.

Recentemente eu tive um estalo quando vi [ou ouvi] Caetano Veloso dialogando com essa tradição. O baiano de Santo Amaro nunca escondeu que a sua maior influência seria João Gilberto, o deus espírito santo da santíssima trindade bossa-novística, e seu último disco comprova como até hoje ele acha a bossa nova foda. Nessa música, mesmo, ele admite como João Gilberto teria dado razão para que não nos sentíssemos apenas o fruto de três raças tristes, mas o resultado de uma mistura única, que, como toda miscigenação, é forte exatamente por ter elementos diversos.

Vinte anos antes, pelo menos, Caetano já tentava dar uma resposta-continuação para essa questão levantada por Machado e incrementado por Vinicius e a bossa nova: a tristeza, a melancolia está presente em nossa psiquê coletiva? Seria essa a alma que estaria dentro do corpo do brasileiro arquetípico? Junto com Gil, Caetano, em uma dessas músicas que já nascem clássicas, admite que a "tristeza é senhora / desde que o samba é samba". Um dos elementos parece ser essa mesmo, portanto.

"Desde que o samba é samba", apesar de ter uma letra bem curtinha, parece se inserir completamente na história da música brasileira. No verso seguinte, fala sobre a questão do racismo, do preconceito de cor, que é parte mais que integrante da tradição do samba, talvez seja a sua essência [no sentido de origem]: "A lágrima clara sobre a pele escura". Uma das interpretações lembra a imagem do homem e da mulher negros, descendentes de escravos, da maior violência que o Brasil e, antes, Portugal, produziu nessas violentas terras, que é o ícone do samba, do sambista, chorando. "A noite, a chuva que cai lá fora", refletindo a mesma imagem, de um continente negro, [galhofento? feliz? sambista?] que está triste, chora.

Os versos seguintes reforçam o clima melancólico, que já tinha sido lembrado pelas frases iniciais: "Solidão apavora / Tudo demorando em ser tão ruim". Mas o seguinte já começa a mudança: "Mas alguma coisa acontece / No quando agora em mim". A primeira parte seria uma referência a "Sampa"? Se alguma coisa acontece no coração de Caetano "só quando [ele] cruza a Ipiranga e a avenida São João", isto é, só então, lá dentro da cidade maior do Brasil ele pode sentir, gostar, ser São Paulo, em "Desde que o samba...", ele afirma essa "alguma coisa acontece" neste momento exato, "agora". É mais urgente. O samba, que nessa música está bastante embebido de bossa nova, e que pode ser uma metonímia para música e, por que não?, para a arte, e arte brasileira especificamente, circula no sangue de Caetano+Gil, a todo momento, sempre, nunca para. Assim, eles descobrem como fugir da dualidade melancolia x galhofa, para uma relação de mudança:

"Cantando eu mando a tristeza embora". Pela primeira vez, há uma atitude, há um posicionamento ativo, algo que se possa fazer. E não é trabalhar, ou qualquer ato ligado às tradições do chamado Ocidente, mas o cantar, o divertir-se, o, seguindo o modo de viver de quem é sambista, portanto, viver a vida como ela é. E o cantar não esconde a tristeza. O cantar é o transformar a tristeza em outro algo.

Em uma entrevista em que ele fala sobre essa música, Caetano lembra muito da última parte da letra, que continua esse raciocínio e lembra outros:
O samba ainda vai nascer
O samba ainda não chegou
O samba não vai morrer
Veja o dia ainda não raiou
O samba é o pai do prazer
O samba é o filho da dor
O grande poder transformador
Os quatro primeiro versos seriam a afirmação de que esse elemento fora das práticas utilitárias, no caso o samba, a música, a arte, não se perde, não acaba, mesmo com o mundo se transformando em algo cada vez mais ligado a relações pragmáticas. Lembra muito a fala do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro quando se refere aos índios, esses marginalizados por definição, como aqueles que vão nos ensinar, nós do centro, a viver após a catástrofe iminente do nosso mundo. E lembra o próprio Caetano em "Um índio", que coloca o personagem geralmente ligado preconceituosamente a um passado remoto, arcaico, tradicionalista, descendo de uma "estrela colorida / brilhante" para nos revelar, nós os donos da hegemonia, o "óbvio".

Os três últimos versos reforçam a tradição talvez iniciada por Machado, mas com uma pequena mudança, um twist: o samba, a música, a arte, e a arte brasileira nascem a partir da tristeza [dor, melancolia] e transforma essa dor em alegria [prazer, galhofa]. Ele não nega a tradição brasileira, a herança que recebeu, ao contrário, a reafirma, mas acrescentando um detalhe pequeno, que mostraria uma posição mais própria dos indivíduos.

A arte, esse estado de espírito produzido pelo artista, é o "entre" os dois polos que, talvez, um dia, nos definiram - e que podem, de alguma forma, ainda nos definir. Um entre que não separa dois elementos concomitantes, mas que se transmutam um no outro. Um sendo o elemento originário do outro. Em vez de serem elementos duais do mesmo corpo, são o mesmo elemento, apenas transformado pelo fogo da arte.

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Which life?

In the short interval between the time when my beard began to sprout and now, when it is beginning to turn grey, in this half-century more radical changes and transformations have taken place than in ten generations of mankind; and each of us feels: it is almost too much! My today and each of my yesterdays, my rises and falls, are so diverse that I sometimes feel as if I had lived not one, but several existences, each one different from the others. For it often happens that when I carelessly speak of “my life,” I am forced to ask, “which life?"
 Stefan Zweig, in The world of yesterday (1942)