O termo inglês "backlash" quer dizer algo como "retrocesso" ou "o ato de retroceder". Muitas vezes o sentido usado é um pouquinho diferente: uma espécie de reação contra algum tipo de avanço. Dá para pensar em uma imagem poética, que daria um sentido mais claro do movimento que isso envolve: como se fosse uma onda que retrocede em direção ao mar após explodir na areia. Mas esse último tipo de interpretação só pode ser vista como otimista no atual estado de coisas do Brasil.
Desde mais ou menos 2002 até cerca de junho de 2013, o Brasil surfou uma maré progressista, como se todos os nossos problemas fossem resolvidos apenas com o passar do tempo. Noves fora uma política que transformou nossa economia em uma monocultura de exportação, com o sacrifício de florestas e ecossistemas (numa citação quase irônica da teoria da dependência do sociólogo Fernando Henrique Cardoso), havia a sensação de que, enfim, o Brasil estava dando certo. O futuro do país havia chegado. Pela primeira vez em muito tempo os pobres urbanos tinham acesso a bens de consumo - nunca serviços de cidadania - que os aproximava, mas ainda a uma distância imensa, da parte de cima da sociedade. Depois chegou junho de 2013, em seguida veio outubro de 2014 e, por fim, este março de 2015 que finalmente, esperamos, se encerrou ontem.
Não dá para pensar nesse momento histórico do Brasil sem sentir ecos de outros momentos da nossa curta trajetória de país consolidado. E esse 1º de abril, em que alguns comemoram [sic] o 51º aniversário do golpe de Estado cometido por militares com apoio maciço da elite, que conseguiu levar a população conservadora para as ruas do país, não nos deixa esquecer dessa proximidade.
Muito se fala de como João Goulart, que era fortemente atacado pela direita conservadora, demorou para se apoiar na esquerda revolucionária. E que, quando ele se apoiou, a aproximação deu mais argumentos para a direita recrudescer suas ações. Lembre-se que o inflamado discurso na Central do Brasil foi no dia 13 de março de 1964, portanto menos de 20 dias antes do golpe. Também se fala muito de como a própria esquerda era bastante radical no período, não aceitando negociar ou dialogar com o governo, pensando que o único caminho possível para melhorar a vida da população mais pobre era a via revolucionária. Goulart, apesar de ou por ter propostas muito fortemente populares, ficou sozinho e foi alvo fácil daqueles que sentiram seus privilégios ameaçados. Naquele período e espaço geográfico bem afeito a intervenções militares, deu no que deu.
Jango não foi o primeiro chefe de Estado que foi atacado pela elite por tomar atitudes políticas que podem ser consideradas populares. Seu padrinho político, Getúlio Vargas, foi outro que sofreu com acusações e mais acusações de corrupção e incompetência canalizadas nos - não deve ser coincidência - veículos de comunicação de então. O Vargas que assumiu o governo na década de 1950 era bem diferente do ditador do Estado Novo. Era um político ligado aos trabalhadores e isso deve ter desagradado o andar de cima. Segundo algumas interpretações, ele teria conseguido adiar por dez anos o golpe por conta da atitude extrema do seu suicídio, e criou o caminho perfeito para a subida ao poder de um dos políticos mais escorregadios que já tivemos, JK.
De qualquer forma, pode-se sugerir que o primeiro golpe de Estado que "endireitou" o caminho do Brasil foi ainda outro: a proclamação da República. Não se deve esquecer que o nosso segundo monarca era considerado "republicano" e que os atos da República nova podem ser vista como dignos de uma ditadura, apoiada por forças conservadoras. Basta pensar que a República só foi instituída logo após o império brasileiro ter tomado uma atitude considerada, novamente, popular: a abolição da escravatura. Não se mexe em privilégios impunemente.
Longe da teoria da conspiração, essa sucessão de acidentes nos faz pensar: e se essa crise em que vivemos foi fabricada? É muito complicado defender o governo atual, depois de tantas escolhas controversas - para dizer o mínimo, mas e se a elite sentiu que não poderia mais especular com a maior taxa de juros do mundo? Que deveria finalmente adentrar o capitalismo produtivo, com um atraso de 200 anos? E se a elite ficou incomodada com a presença dos pobres em lugares antes exclusivos? E não quisesse mais ter que pagar caro para ter uma empregada doméstica ou um marceneiro? E se até o ano passado não houvesse reais motivos para preocupação alguma e nos foi incutido que estávamos caminhando para a bancarrota e após tantas repetições e boicotes dos mercados, começamos a acreditar nesse caminho e entramos em uma espiral decrescente?
Não teremos um golpe de Estado porque não é a moda atual, mas nos direcionamos para um país cada vez mais conservador, quase um Estado Totalitário, sem precisar de nenhuma intervenção militar - para desespero de alguns. Principalmente com o crescimento dos políticos ligados às bancadas da bala e da fé, entre outras patrocinadas por lobbies conservadores. Os primeiros sinais já estão à mostra. Algumas apostas para os próximos capítulos:
/ As pautas de segurança pública [maioridade penal, aumento de efetivo policial etc.] serão obviamente reforçadas - é a união de forças da direita religiosa com a elite de direita que acreditam que só mais força pode combater a violência.
/ A economia deverá ter uma guinada, ainda mais forte, à direita - pelo mesmo motivo: acreditam no Estado mínimo como se fosse a solução para todos os problemas. O Estado, aliás, é o problema.
/ As pautas de direitos humanos e minorias serão vistas como perfumaria: num momento de crise, alguns ovos deverão ser quebrados para o omelete da nação. A Amazônia, para essas pessoas, é um deserto.
/ As pautas comportamentais [legalização de drogas, aborto etc.] são as únicas ainda em disputa, porque a elite de direita tende a ser "liberal", no sentido de não querer se meter com a vida privada. Laissez faire, laissez passer, clássico. Mas esse é um ativo forte para a bancada religiosa.
Desde mais ou menos 2002 até cerca de junho de 2013, o Brasil surfou uma maré progressista, como se todos os nossos problemas fossem resolvidos apenas com o passar do tempo. Noves fora uma política que transformou nossa economia em uma monocultura de exportação, com o sacrifício de florestas e ecossistemas (numa citação quase irônica da teoria da dependência do sociólogo Fernando Henrique Cardoso), havia a sensação de que, enfim, o Brasil estava dando certo. O futuro do país havia chegado. Pela primeira vez em muito tempo os pobres urbanos tinham acesso a bens de consumo - nunca serviços de cidadania - que os aproximava, mas ainda a uma distância imensa, da parte de cima da sociedade. Depois chegou junho de 2013, em seguida veio outubro de 2014 e, por fim, este março de 2015 que finalmente, esperamos, se encerrou ontem.
Não dá para pensar nesse momento histórico do Brasil sem sentir ecos de outros momentos da nossa curta trajetória de país consolidado. E esse 1º de abril, em que alguns comemoram [sic] o 51º aniversário do golpe de Estado cometido por militares com apoio maciço da elite, que conseguiu levar a população conservadora para as ruas do país, não nos deixa esquecer dessa proximidade.
Muito se fala de como João Goulart, que era fortemente atacado pela direita conservadora, demorou para se apoiar na esquerda revolucionária. E que, quando ele se apoiou, a aproximação deu mais argumentos para a direita recrudescer suas ações. Lembre-se que o inflamado discurso na Central do Brasil foi no dia 13 de março de 1964, portanto menos de 20 dias antes do golpe. Também se fala muito de como a própria esquerda era bastante radical no período, não aceitando negociar ou dialogar com o governo, pensando que o único caminho possível para melhorar a vida da população mais pobre era a via revolucionária. Goulart, apesar de ou por ter propostas muito fortemente populares, ficou sozinho e foi alvo fácil daqueles que sentiram seus privilégios ameaçados. Naquele período e espaço geográfico bem afeito a intervenções militares, deu no que deu.
Jango não foi o primeiro chefe de Estado que foi atacado pela elite por tomar atitudes políticas que podem ser consideradas populares. Seu padrinho político, Getúlio Vargas, foi outro que sofreu com acusações e mais acusações de corrupção e incompetência canalizadas nos - não deve ser coincidência - veículos de comunicação de então. O Vargas que assumiu o governo na década de 1950 era bem diferente do ditador do Estado Novo. Era um político ligado aos trabalhadores e isso deve ter desagradado o andar de cima. Segundo algumas interpretações, ele teria conseguido adiar por dez anos o golpe por conta da atitude extrema do seu suicídio, e criou o caminho perfeito para a subida ao poder de um dos políticos mais escorregadios que já tivemos, JK.
De qualquer forma, pode-se sugerir que o primeiro golpe de Estado que "endireitou" o caminho do Brasil foi ainda outro: a proclamação da República. Não se deve esquecer que o nosso segundo monarca era considerado "republicano" e que os atos da República nova podem ser vista como dignos de uma ditadura, apoiada por forças conservadoras. Basta pensar que a República só foi instituída logo após o império brasileiro ter tomado uma atitude considerada, novamente, popular: a abolição da escravatura. Não se mexe em privilégios impunemente.
Longe da teoria da conspiração, essa sucessão de acidentes nos faz pensar: e se essa crise em que vivemos foi fabricada? É muito complicado defender o governo atual, depois de tantas escolhas controversas - para dizer o mínimo, mas e se a elite sentiu que não poderia mais especular com a maior taxa de juros do mundo? Que deveria finalmente adentrar o capitalismo produtivo, com um atraso de 200 anos? E se a elite ficou incomodada com a presença dos pobres em lugares antes exclusivos? E não quisesse mais ter que pagar caro para ter uma empregada doméstica ou um marceneiro? E se até o ano passado não houvesse reais motivos para preocupação alguma e nos foi incutido que estávamos caminhando para a bancarrota e após tantas repetições e boicotes dos mercados, começamos a acreditar nesse caminho e entramos em uma espiral decrescente?
Não teremos um golpe de Estado porque não é a moda atual, mas nos direcionamos para um país cada vez mais conservador, quase um Estado Totalitário, sem precisar de nenhuma intervenção militar - para desespero de alguns. Principalmente com o crescimento dos políticos ligados às bancadas da bala e da fé, entre outras patrocinadas por lobbies conservadores. Os primeiros sinais já estão à mostra. Algumas apostas para os próximos capítulos:
/ As pautas de segurança pública [maioridade penal, aumento de efetivo policial etc.] serão obviamente reforçadas - é a união de forças da direita religiosa com a elite de direita que acreditam que só mais força pode combater a violência.
/ A economia deverá ter uma guinada, ainda mais forte, à direita - pelo mesmo motivo: acreditam no Estado mínimo como se fosse a solução para todos os problemas. O Estado, aliás, é o problema.
/ As pautas de direitos humanos e minorias serão vistas como perfumaria: num momento de crise, alguns ovos deverão ser quebrados para o omelete da nação. A Amazônia, para essas pessoas, é um deserto.
/ As pautas comportamentais [legalização de drogas, aborto etc.] são as únicas ainda em disputa, porque a elite de direita tende a ser "liberal", no sentido de não querer se meter com a vida privada. Laissez faire, laissez passer, clássico. Mas esse é um ativo forte para a bancada religiosa.
É sempre bom lembrar na hora do golpe de 1964, muita gente "decente" e "boa" apoiou a deposição do presidente eleito, mas ninguém sabia onde aquele processo reacionário iria dar. Não basta colocar senhoras respeitáveis se beijando na novela das 9, quando o primeiro-ministro quer instituir o dia do orgulho hétero.
O que acompanhamos neste momento é, novamente, como uma repetição de uma história que queríamos esquecer, a elite de direita e a direita religiosa fazendo uma campanha publicitária [nos meios de comunicação], usando o mesmo vocabulário [contra a corrupção], o mesmo discurso [pela moral, os bons costumes, a tradição, a família e a propriedade], movimentando as mesmas peças [classes médias conservadoras], e conseguindo o mesmo resultado: "backlash".
ps. recebi de um amigo que entende, realmente, de História a seguinte crítica: "fez total sentido. mesmo. e acho que sua avaliação tá corretíssima. a escalada conservadora, entretanto, ocorre com co-participação do próprio executivo federal, que cedeu desde sempre à ideia tradicional de "controle das classes perigosas", quando essas classes confrontam o Estado - e sentimos isso na pele em 2013 e 2014. a pauta da maioridade penal estava adormecida; o primeiro poder a colocar em marcha o crescimento do poder policial foi o executivo federal, açodado pelos executivos estaduais dos partidos aliados. tem um pouco de PT na ressurreição parlamentar da diminuição da maioridade penal." Acho que é válido o complemento.
O que acompanhamos neste momento é, novamente, como uma repetição de uma história que queríamos esquecer, a elite de direita e a direita religiosa fazendo uma campanha publicitária [nos meios de comunicação], usando o mesmo vocabulário [contra a corrupção], o mesmo discurso [pela moral, os bons costumes, a tradição, a família e a propriedade], movimentando as mesmas peças [classes médias conservadoras], e conseguindo o mesmo resultado: "backlash".
ps. recebi de um amigo que entende, realmente, de História a seguinte crítica: "fez total sentido. mesmo. e acho que sua avaliação tá corretíssima. a escalada conservadora, entretanto, ocorre com co-participação do próprio executivo federal, que cedeu desde sempre à ideia tradicional de "controle das classes perigosas", quando essas classes confrontam o Estado - e sentimos isso na pele em 2013 e 2014. a pauta da maioridade penal estava adormecida; o primeiro poder a colocar em marcha o crescimento do poder policial foi o executivo federal, açodado pelos executivos estaduais dos partidos aliados. tem um pouco de PT na ressurreição parlamentar da diminuição da maioridade penal." Acho que é válido o complemento.
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