sexta-feira, 19 de junho de 2015

Sou negro

Meu primeiro "emprego" foi o de vendedor de seguro. Eu "trabalhava" dentro de uma oficina mecânica mais arrumadinha numa rua movimentada de Nova Iguaçu e abordava os motoristas que paravam ali para trocar pneus, alinhar, balancear, fazer cambagem, com toda a malemolência que eu carrego até hoje para falar com qualquer tipo de estranho. Eu, que tanto amor tenho por carros. Que adoro dirigir. Que até hoje não sei o que é cambagem. Durou um mês e um seguro vendido para um policial desconhecido, de comportamento suspeito, que eu deixei entrar no escritório na hora de contar a féria. Tinha 17 anos.

Naquele verão extremamente quente e galpão de telha de zinco sem refrigeração em que eu ainda não tinha começado na faculdade, passava a maior parte do tempo conversando com os mecânicos e funcionários da oficina. Lembro de um rapaz jovem, negro bem negro, magro, músculos torneados, bigode fino e ralo, olhar entre o desconfiado e o malandro, que fazia rimas de rap. Ele tinha orgulho de ser negro e gostava de exaltar que os negros eram superiores aos brancos.

Um dos subgerentes do lugar, um mulato bem claro, cor de café-com-leite com mais leite que café, sempre se incomodava com os comentários do mecânico. Dizia que não havia qualquer superioridade entre os dois lados, que brancos e negros eram iguais. Eu, um branco azedo de nariz fino e cabelo ondulado, adorava dizer, junto com o mecânico rapper, que era também negro. E que os negros eram superiores aos brancos. Para desespero do subgerente e prazer do mecânico.

Nos divertíamos sempre que o subgerente aparecia inventando formas diferentes de dizer como os negros eram muito melhores que os brancos. Negros, não. Dizíamos "pretos". Se cantávamos uma música, logo lembrávamos que o autor era preto. Ou o cantor. Ou falávamos sobre a cor preta era mais bonita que a branca. Tudo era motivo para fazer troça. O subgerente ficava revoltado, tentando usar argumentos racionais para explicar que não havia qualquer diferença entre um ou outro, mas nós só caçoávamos. Insistíamos no deboche, na pilhéria, na blague. A intenção era sacanear o pobre subgerente moreninho, e ele ajudava caindo na pilha facilmente.

Todos os mecânicos, se não me falha a memória, eram negros. Alguns altamente qualificados - se não por cursos específicos, pelos anos de prática. Faziam seus serviços numa presteza e velocidade que eu não conseguia acompanhar. Viviam, a maior parte do tempo, numa região escura, com ainda menos ventilação e salubridade do galpão. Graxa e poeira era os condimentos mais comuns no ar a respirar. Eu ficava a maior parte do tempo com eles, e esquecia de abordar os motoristas que entravam. Ou não tinham muitos motoristas. Ou abordava rapidamente para dizer que fiz o meu trabalho, mas ninguém queria comprar seguros. Era 1999 e vivíamos numa economia bem mais fraca que a atual: o salário mínimo era R$ 130 e subiria para R$ 136 no primeiro de maio, no mais baixo reajuste desde 1994.

De todos os vários mecânicos, me lembro também de um sujeito mais velho, alto, igualmente magro e com bigode mais grosso. Tinha o olhar de Morgan Freeman quando faz papel de o sábio que já viveu bastante e decidiu não incomodar mais. Era alguém que guardava dentro de si um mundo maior do que o que mostrava cotidianamente. Era uma espécie de "pai" mítico do mecânico-rapper. Todos respeitavam suas opiniões. Vinha gente - normalmente branca - trazer seus carros para que ele, e somente ele, trabalhasse. Não me recordo de mais ninguém.

De todos ali, eu certamente era o mais escolarizado, apesar de ser provavelmente o mais novo. Era o único que, mesmo que sendo filho de um contador já falecido e uma pensionista que trabalhava como recepcionista de uma clínica médica, portanto com baixo orçamento para os padrões da elite de uma cidade periférica, tinha acesso à teia de segurança da classe média. O subgerente devia ter um pouco mais de estudo que o mecânico, mas a diferença ali não era de anos nos bancos escolares, mas de atitude: um se comportava como o capataz, outro como um rebelde.

***

Eu não sou negro, índio, mulher, gay, trans, portador de deficiência. Moro na Zona Sul do Rio de Janeiro num apartamento que me pertence. Não sou minoria, não sei o que é não ter privilégios. Vivo com privilégios desde que nasci. As únicas vezes que senti problemas por ser quem sou foi quando estava em um ambiente completamente diferente das esferas que frequento habitualmente. Quando, por exemplo, na Índia, fui a uma favela e todas as pessoas me olhavam sabendo que eu não pertencia ao lugar. Sabendo que eu destoava. Mas ainda havia algum tipo de olhar diferenciado, exatamente porque eu sou alguém que tive sempre privilégios. Por isso me pergunto sempre: posso, tenho o direito de falar sobre o que eu não sou? Como ser o outro? Como ser negro, índio, mulher, gay, trans, portador de deficiência? Como diminuir a distância que existe entre esses polos tão distantes? Como erigir uma ponte para transformar privilégios em direitos?

segunda-feira, 15 de junho de 2015

Universais

Sou um puto do pensamento de outrem
Não sou fiel a nenhum homem, mulher
Corrente ou proposta
Sou politeísta, polissexual, polimórfico
Uso os conceitos, as ideias, as noções e depois, já bem usados, jogo fora
Não sigo panelas, não respeito hierarquias, não admito limites ou rótulos
Não aceito nomes
Faço aproximações insanas, interpretações inortodoxas,
Encontro verdades momentâneas no meio do jornal enrolado no peixe
Sou onívoro, despreconceituoso
Bebo o que tem para hoje
Estou suicida, enxergando a poucos metros na horizontal
Existindo e sendo o devir
Misturando quem não se fala
Criando pontes Escher
Assustando doutrinários
Propondo sociedade indisciplinárias
Sou sem nós
Não danço conforme a música
Sou um homem composto por letras do acha-palavras
Sou canhoto, sinistro, do contra
Sou quase sempre

domingo, 14 de junho de 2015

As experiências extremas de Fernando Brant

"Tenha fé em nosso povo que ele resiste / tenha fé em nosso povo que ele insiste".
Fernando Brant e Milton Nascimento

A morte de Fernando Brant poderia passar batido, mas não deveria. Representa o que o Brasil tem de melhor e pior. Compositor de algumas das mais belas canções que já tivemos contato, ele nos lembra o poder que a música chamada de popular tem no Brasil - capaz de criar, inclusive, uma sigla para ela própria (sigla essa que tanto torce o nariz de gente que quer encontrar o que seria a verdadeira arte do verdadeiro povo brasileiro: a mais original, a mais profunda, a mais representativa dos que nunca foram representados). Mas Brant também foi capaz de defender posições que podem ser interpretadas como a tentativa de perpetuar nosso abismo social.

As letras de Brant nas músicas de Milton Nascimento confirmam aquilo que o poeta Eucanaã Ferraz diz na introdução para o livro "O mundo não é chato", de textos escritos por Caetano Veloso para jornais, capas de discos e outras crônicas mais ligeiras - sem deixar de ser profundo: "no Brasil, a música popular é a instância da vida coletiva mais apta para viver essa experiência [extrema]", que é se pensar [tomar posicionamentos, agir, ser capaz de atacar e de defender] o país.

A música popular é o quando e o onde as pessoas se reúnem, no mais próximo da política arendtiana que temos. É aquela produção - no sentido que eu entendo da poiésis grega - em que se debate o hoje, se relembra o passado, se projeta o futuro. Não temos capilarização na literatura; tradição nos estudos estritamente acadêmicos, científicos ou universitários; musculatura na artes plásticas; relevância de debates dos meios de comunicação mais ou menos populares. Nos sobra - e "sobra" no sentido de abundar - a música, que nos afeta, nos nocauteia, nos eleva, enleva, nos mexe, mexe, nos destroça e nos constrói e reconstrói.

Não é um fenômeno único brasileiro, deve ter acontecido em outros lugares, mas isso não importa. O que importa é que a música é o que temos de mais profundo, que melhor nos mostra para nós mesmos, púlpito de debates, escola de quereres, sinal da beleza que se pode fazer com a nossa história.

Entretanto Brant, na sua atuação fora do campo da produção mais ligada ao campo das sensações, também nos lembra da outra metade da laranja brasileira, do erro cotidiano da dosagem do remédio que o transforma em veneno.

Suas posições extremamente raivosas na defesa dos direitos autorais de artistas carrega, além das motivações óbvias de defesa da classe, uma possibilidade de segundas e mais verticais interpretações. Era um ato conservador, no sentido mais próprio da palavra, da defesa da conservação do estado das coisas existentes. Era uma tentativa de manter as coisas como sempre foram e nunca aceitar qualquer tipo de mudança. Era uma escolha por manter privilégios de quem conseguiu esses privilégios - e não tentar construir pontes para diminuir a distância entre as extremas pontas da sociedade.

Como um homem pode ser tão inovador em um campo (estético) e tão reacionário em outro (político)? Ou por que alguém quando ultrapassa a bolha do andar de baixo já assume as posturas do andar de cima? Ou qual miopia impede os de cima de enxergar os de baixo como se fossem iguais?

Nelson Rodrigues talvez seja o principal exemplo nessa seara: um católico moralista orgulhoso de ser reacionário que dizia que expurgava suas neuroses e sonhos em uma produção teatral que era libertária, catártica, explosiva.

Essa divisão "Dr. Jekyll and Mr. Hyde" brasileira já foi muito melhor retratada por sujeitos como Roberto DaMatta, em seu "A casa e a rua". Somos conservadores em casa e liberais na rua. Somos violentos e conciliadores, ao mesmo tempo. Somos cordiais e cordiais, como diria Sérgio Buarque de Holanda. Somos extremados, precisamos de "experiências extremas".

Num momento de tamanho conservadorismo e atitudes retrógradas, excludentes e que beiram, quando não chafurdam, num fascismo descarado, quando a gangorra dessa nossa relação tensa histórica pende para um dos lados, é bom se agarrar a, ao menos, uma certeza: a música produzida no Brasil é linda. E Brant, o compositor, nos lembra disso. Que esse seja celebrado e o outro, combatido.