Meu primeiro "emprego" foi o de vendedor de seguro. Eu "trabalhava" dentro de uma oficina mecânica mais arrumadinha numa rua movimentada de Nova Iguaçu e abordava os motoristas que paravam ali para trocar pneus, alinhar, balancear, fazer cambagem, com toda a malemolência que eu carrego até hoje para falar com qualquer tipo de estranho. Eu, que tanto amor tenho por carros. Que adoro dirigir. Que até hoje não sei o que é cambagem. Durou um mês e um seguro vendido para um policial desconhecido, de comportamento suspeito, que eu deixei entrar no escritório na hora de contar a féria. Tinha 17 anos.
Naquele verão extremamente quente e galpão de telha de zinco sem refrigeração em que eu ainda não tinha começado na faculdade, passava a maior parte do tempo conversando com os mecânicos e funcionários da oficina. Lembro de um rapaz jovem, negro bem negro, magro, músculos torneados, bigode fino e ralo, olhar entre o desconfiado e o malandro, que fazia rimas de rap. Ele tinha orgulho de ser negro e gostava de exaltar que os negros eram superiores aos brancos.
Um dos subgerentes do lugar, um mulato bem claro, cor de café-com-leite com mais leite que café, sempre se incomodava com os comentários do mecânico. Dizia que não havia qualquer superioridade entre os dois lados, que brancos e negros eram iguais. Eu, um branco azedo de nariz fino e cabelo ondulado, adorava dizer, junto com o mecânico rapper, que era também negro. E que os negros eram superiores aos brancos. Para desespero do subgerente e prazer do mecânico.
Nos divertíamos sempre que o subgerente aparecia inventando formas diferentes de dizer como os negros eram muito melhores que os brancos. Negros, não. Dizíamos "pretos". Se cantávamos uma música, logo lembrávamos que o autor era preto. Ou o cantor. Ou falávamos sobre a cor preta era mais bonita que a branca. Tudo era motivo para fazer troça. O subgerente ficava revoltado, tentando usar argumentos racionais para explicar que não havia qualquer diferença entre um ou outro, mas nós só caçoávamos. Insistíamos no deboche, na pilhéria, na blague. A intenção era sacanear o pobre subgerente moreninho, e ele ajudava caindo na pilha facilmente.
Todos os mecânicos, se não me falha a memória, eram negros. Alguns altamente qualificados - se não por cursos específicos, pelos anos de prática. Faziam seus serviços numa presteza e velocidade que eu não conseguia acompanhar. Viviam, a maior parte do tempo, numa região escura, com ainda menos ventilação e salubridade do galpão. Graxa e poeira era os condimentos mais comuns no ar a respirar. Eu ficava a maior parte do tempo com eles, e esquecia de abordar os motoristas que entravam. Ou não tinham muitos motoristas. Ou abordava rapidamente para dizer que fiz o meu trabalho, mas ninguém queria comprar seguros. Era 1999 e vivíamos numa economia bem mais fraca que a atual: o salário mínimo era R$ 130 e subiria para R$ 136 no primeiro de maio, no mais baixo reajuste desde 1994.
De todos os vários mecânicos, me lembro também de um sujeito mais velho, alto, igualmente magro e com bigode mais grosso. Tinha o olhar de Morgan Freeman quando faz papel de o sábio que já viveu bastante e decidiu não incomodar mais. Era alguém que guardava dentro de si um mundo maior do que o que mostrava cotidianamente. Era uma espécie de "pai" mítico do mecânico-rapper. Todos respeitavam suas opiniões. Vinha gente - normalmente branca - trazer seus carros para que ele, e somente ele, trabalhasse. Não me recordo de mais ninguém.
De todos ali, eu certamente era o mais escolarizado, apesar de ser provavelmente o mais novo. Era o único que, mesmo que sendo filho de um contador já falecido e uma pensionista que trabalhava como recepcionista de uma clínica médica, portanto com baixo orçamento para os padrões da elite de uma cidade periférica, tinha acesso à teia de segurança da classe média. O subgerente devia ter um pouco mais de estudo que o mecânico, mas a diferença ali não era de anos nos bancos escolares, mas de atitude: um se comportava como o capataz, outro como um rebelde.
Eu não sou negro, índio, mulher, gay, trans, portador de deficiência. Moro na Zona Sul do Rio de Janeiro num apartamento que me pertence. Não sou minoria, não sei o que é não ter privilégios. Vivo com privilégios desde que nasci. As únicas vezes que senti problemas por ser quem sou foi quando estava em um ambiente completamente diferente das esferas que frequento habitualmente. Quando, por exemplo, na Índia, fui a uma favela e todas as pessoas me olhavam sabendo que eu não pertencia ao lugar. Sabendo que eu destoava. Mas ainda havia algum tipo de olhar diferenciado, exatamente porque eu sou alguém que tive sempre privilégios. Por isso me pergunto sempre: posso, tenho o direito de falar sobre o que eu não sou? Como ser o outro? Como ser negro, índio, mulher, gay, trans, portador de deficiência? Como diminuir a distância que existe entre esses polos tão distantes? Como erigir uma ponte para transformar privilégios em direitos?
Naquele verão extremamente quente e galpão de telha de zinco sem refrigeração em que eu ainda não tinha começado na faculdade, passava a maior parte do tempo conversando com os mecânicos e funcionários da oficina. Lembro de um rapaz jovem, negro bem negro, magro, músculos torneados, bigode fino e ralo, olhar entre o desconfiado e o malandro, que fazia rimas de rap. Ele tinha orgulho de ser negro e gostava de exaltar que os negros eram superiores aos brancos.
Um dos subgerentes do lugar, um mulato bem claro, cor de café-com-leite com mais leite que café, sempre se incomodava com os comentários do mecânico. Dizia que não havia qualquer superioridade entre os dois lados, que brancos e negros eram iguais. Eu, um branco azedo de nariz fino e cabelo ondulado, adorava dizer, junto com o mecânico rapper, que era também negro. E que os negros eram superiores aos brancos. Para desespero do subgerente e prazer do mecânico.
Nos divertíamos sempre que o subgerente aparecia inventando formas diferentes de dizer como os negros eram muito melhores que os brancos. Negros, não. Dizíamos "pretos". Se cantávamos uma música, logo lembrávamos que o autor era preto. Ou o cantor. Ou falávamos sobre a cor preta era mais bonita que a branca. Tudo era motivo para fazer troça. O subgerente ficava revoltado, tentando usar argumentos racionais para explicar que não havia qualquer diferença entre um ou outro, mas nós só caçoávamos. Insistíamos no deboche, na pilhéria, na blague. A intenção era sacanear o pobre subgerente moreninho, e ele ajudava caindo na pilha facilmente.
Todos os mecânicos, se não me falha a memória, eram negros. Alguns altamente qualificados - se não por cursos específicos, pelos anos de prática. Faziam seus serviços numa presteza e velocidade que eu não conseguia acompanhar. Viviam, a maior parte do tempo, numa região escura, com ainda menos ventilação e salubridade do galpão. Graxa e poeira era os condimentos mais comuns no ar a respirar. Eu ficava a maior parte do tempo com eles, e esquecia de abordar os motoristas que entravam. Ou não tinham muitos motoristas. Ou abordava rapidamente para dizer que fiz o meu trabalho, mas ninguém queria comprar seguros. Era 1999 e vivíamos numa economia bem mais fraca que a atual: o salário mínimo era R$ 130 e subiria para R$ 136 no primeiro de maio, no mais baixo reajuste desde 1994.
De todos os vários mecânicos, me lembro também de um sujeito mais velho, alto, igualmente magro e com bigode mais grosso. Tinha o olhar de Morgan Freeman quando faz papel de o sábio que já viveu bastante e decidiu não incomodar mais. Era alguém que guardava dentro de si um mundo maior do que o que mostrava cotidianamente. Era uma espécie de "pai" mítico do mecânico-rapper. Todos respeitavam suas opiniões. Vinha gente - normalmente branca - trazer seus carros para que ele, e somente ele, trabalhasse. Não me recordo de mais ninguém.
De todos ali, eu certamente era o mais escolarizado, apesar de ser provavelmente o mais novo. Era o único que, mesmo que sendo filho de um contador já falecido e uma pensionista que trabalhava como recepcionista de uma clínica médica, portanto com baixo orçamento para os padrões da elite de uma cidade periférica, tinha acesso à teia de segurança da classe média. O subgerente devia ter um pouco mais de estudo que o mecânico, mas a diferença ali não era de anos nos bancos escolares, mas de atitude: um se comportava como o capataz, outro como um rebelde.
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Eu não sou negro, índio, mulher, gay, trans, portador de deficiência. Moro na Zona Sul do Rio de Janeiro num apartamento que me pertence. Não sou minoria, não sei o que é não ter privilégios. Vivo com privilégios desde que nasci. As únicas vezes que senti problemas por ser quem sou foi quando estava em um ambiente completamente diferente das esferas que frequento habitualmente. Quando, por exemplo, na Índia, fui a uma favela e todas as pessoas me olhavam sabendo que eu não pertencia ao lugar. Sabendo que eu destoava. Mas ainda havia algum tipo de olhar diferenciado, exatamente porque eu sou alguém que tive sempre privilégios. Por isso me pergunto sempre: posso, tenho o direito de falar sobre o que eu não sou? Como ser o outro? Como ser negro, índio, mulher, gay, trans, portador de deficiência? Como diminuir a distância que existe entre esses polos tão distantes? Como erigir uma ponte para transformar privilégios em direitos?