sexta-feira, 20 de novembro de 2015

A trajetória do sol, por Nietzsche

HISTÓRIA DE UM ERRO

1.
O mundo verdadeiro passível de ser alcançado pelo sábio, pelo devoto, pelo virtuoso. - Ele vive no interior deste mundo, ele mesmo é este mundo.
(Forma mais antiga da ideia, relativamente inteligente, simples, convincente. Transcrição da frase: "eu, Platão, sou a verdade".)

2.
O mundo verdadeiro inatingível por agora, mas prometido ao sábio, ao devoto, ao virtuoso ("ao pecador que cumpre a sua penitência").
(Progresso da ideia: ela se torna mais sutil, mais insidiosa, mais inapreensível - ela torna-se mulher, torna-se cristã...)

3.
O mundo verdadeiro inatingível, indemonstrável, impassível de ser prometido, mas já enquanto pensado um consolo, um compromisso, um imperativo.
(No fundo, o velho sol, só que obscurecido pela névoa e pelo ceticismo; a ideia tornou-se sublime, esvaecida, nórdica, königsberguiana.)

4.
O mundo verdadeiro - inatingível? De qualquer modo, não atingido. E, enquanto não atingido, também desconhecido. Conseqüentemente tampouco consolador, redentor, obrigatório: Ao que é que algo de desconhecido poderia nos obrigar?...
(Manhã cinzenta. Primeiro bocejo da razão. O canto de galo do positivismo.)

5.
O "mundo verdadeiro" - uma ideia que já não serve mais para nada, que não obriga mesmo a mais nada - uma ideia que se tornou inútil, supérflua; conseqüentemente, uma ideia refutada: suprimamo-la!
(Dia claro; café da manhã; retorno do bom senso e da serenidade; rubor de vergonha de Platão; algazarra dos diabos de todos os espíritos livres.)

6.
Suprimimos o mundo verdadeiro: que mundo nos resta? O mundo aparente, talvez?... Mas não! Com o mundo verdadeiro suprimimos também o aparente!
(Meio-dia; instante da sombra mais curta; fim do erro mais longo; ponto culminante da humanidade; INCIPIT ZARATUSTRA*.)

Trecho de "O crepúsculo dos ídolos", de Nietzsche.

* "Começa Zaratustra".

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