Um dos anos mais complicados na política nacional [na inter também] talvez merecesse um texto que falasse sobre os desmandos de Brasília, Laranjeiras ou do Piranhão. Mas não me sentiria bem em invadir o terreno de colegas muito mais capacitados, nem gostaria de, agora, repisar assuntos considerados de difícil digestão. Não podemos baixar a guarda nunca, mas merecemos um refresco para recarregar as baterias e mirar o 2016 de frente.
Talvez o melhor seja falar sobre outro assunto que tenha ficado à sombra de todos os infortúnios e, quem-sabe?, tenha florescido exatamente por conta dessas desgraceiras todas - mais ou menos como aconteceu no período da ditadura civil-militar. Não é uma mera percepção pessoal, mas um assunto que foi conversado em vários lugares - das redes sociais às redações de jornais: como esse ano foi extremamente produtivo para a música brasileira. O pessoal do Tramp, por exemplo, conseguiu eleger 150 álbuns brasileiros no ano. Não é pouca coisa. E não estamos falando apenas de gente não tão conhecida, mas nomes que variam entre o medalhão (Gal, Djavan, Lenine etc.) até outros que estão crescendo e aparecendo entre aqueles que fogem do senso comum (Siba, Letuce, Tulipa...).
Pode-se fazer uma lista como eles fizeram, ou tentar resumir essa nova onda de maneira metonímica, elegendo algum grupo que consiga sintetizar o espírito desses tempos tão multifacetados. Minha sugestão para tentar entender esse ano de 2015, por um lado que não seja o mar de lama (literal e literário) que estamos metidos, é o Clube da encruza. São os músicos que, entre outros projetos, criaram encontros inesquecíveis como o Metá Metá e o Passo Torto; e que participaram, só neste ano, do disco da Elza Soares, produzindo talvez o grande álbum do ano, e o de Rodrigo Campos, talvez o outro grande álbum do ano. O pessoal que foi apelidado de povo do "samba sujo de São Paulo": além do Rodrigo, Kiko Dinucci, Marcelo Cabral, Thiago França, Romulo Fróes, e, claro, Juçara Marçal.
Nesse ano da desgraça de 2015, o Clube da encruza [nome que eles se deram para uma apresentação na sala Funarte - grande palco carioca - em agosto] lançou - juntos ou separados - ao menos três discos memoráveis. Além dos dois supracitados ("A mulher do fim do mundo", da Elza, e "Conversas com Toshiro", do Rodrigo Campos), podemos colocar no mesmo patamar o "Thiago França", isso, o nome do saxofonista, do Passo Torto, que contou com a participação de Ná Ozzetti (que, por sua vez, participou do disco de Rodrigo Campos). Mas não ficam só nisso.
Mais experimental, Juçara Marçal participou de dois projetos com muito noise e pitadas generosas de influência das culturas de tradição africana: "Anganga", com Cadu Tenório, de influência mais eletrônica; e "Abismu", com o parceiro de sempre Kiko Dinucci, e Thomas Harres, mais free jazz, mais rock, mais improviso.
(Um parêntese rápido: Harres não é um desconhecido; ele é baterista de Ava Rocha, que também produziu um disco incrível neste ano, o "Ava Patrya Yndia Yracema", Negro Léo (cujo último disco - de 2015 - "Niños heroes", chegou a ser elogiado até pelo NYT, para não dizer que estamos sendo benevolentes com a produção nacional) e Abayomi. As boas influências tendem a se encontrar, não?)
Se não bastasse, Thiago França, aos 30 minutos do segundo tempo desse 2015, lançou ainda um disco com seus solos de saxes e percussão para fazer versões de músicas consagradas do candomblé ou de outros estilos com forte influências africanas, o "Sambanzo, coisas invisíveis". E já em dezembro, lançou ainda outro projeto, "Boomshot", agora com Kiko, o rapper Síntese e o DJ Akilez, com músicas mais ligadas ao hip-hop. É capaz de até o dia 31, eles lançarem outras coisas.
O que todos esses discos têm em comum? Em uma primeira audição, pouca coisa, além do fato de eles compartilharem os mesmos músicos, em várias versões. Mas, ao se dar tempo ao tempo - coisa tão incomum nesse 2015 - pode-se ver que, além de beberem numa fonte que sai lá da África [aliás, outro rapper que também provou dessa água neste ano foi Emicida, com o "Sobre crianças, quadris, pesadelos e lições de casa"], misturado com a sujeira, o barulho, o noise bem comum da geração novaiorquina dos anos 1990, há uma tentativa de experimentar. Uma urgência de colocar logo no ar, de saber que uma obra nunca está verdadeiramente pronta se nós não a lançarmos. Uma tentativa de registrar as subidas e as descidas das vontades na hora que elas se apresentam. Uma intuição de que o esboço é a melhor forma de se expressar nos dias de hoje.
Isso não quer dizer que os discos são toscos, amadores, feitos nas coxas. O tamanho das produções de discos como o da Elza e do Rodrigo Campos não permitiriam dizer isso. São complexos, grandiosos, cheios de arranjos em que podemos ir descobrindo pequenas pérolas escondidas. Mas eles sabem que é necessário também mergulhar em terrenos pouco confiáveis para se oxigenar. Não é possível rodar em volta do lugar já conquistado para todo o sempre, porque aí se perde o viço. E as experimentações são os lugares perfeitos para entender a dinâmica entre erros e acertos. Perceber onde, como, quem estabelece a fronteira entre esses dois campos. Enxergar os lados todos do poliedro arrendondado em que vivemos e registrar essa história.
O Clube da encruza talvez seja a metonímia desse 2015 porque conseguiu acompanhar a quantidade gigantesca de informação sobre a qual a atualidade nos soterra, processando-a, transformando-a em algo mais perene que o simples clicar em um link da timeline. Conseguiu surfar nessa tera-onda, e, concomitantemente, interromper o fluxo de tempo, para criar um outro... tempo para se viver. Mostraram que não existe mais - se é que um dia existiu - um grupo fechado, hermético, desconectado, sem contato com outras dimensões. Que as influências podem vir de todas as partes do mundo, ao mesmo tempo e agora. Que é possível misturar punk com axé, que é possível encontrar na sujeira de uma microfonia uma doce boniteza harmônica. Que as regras são sempre estabelecidas a posteriori e que é preciso viver primeiro para conhecer quais são elas, mesmo que isso pareça mais doloroso.
Talvez o melhor seja falar sobre outro assunto que tenha ficado à sombra de todos os infortúnios e, quem-sabe?, tenha florescido exatamente por conta dessas desgraceiras todas - mais ou menos como aconteceu no período da ditadura civil-militar. Não é uma mera percepção pessoal, mas um assunto que foi conversado em vários lugares - das redes sociais às redações de jornais: como esse ano foi extremamente produtivo para a música brasileira. O pessoal do Tramp, por exemplo, conseguiu eleger 150 álbuns brasileiros no ano. Não é pouca coisa. E não estamos falando apenas de gente não tão conhecida, mas nomes que variam entre o medalhão (Gal, Djavan, Lenine etc.) até outros que estão crescendo e aparecendo entre aqueles que fogem do senso comum (Siba, Letuce, Tulipa...).
Pode-se fazer uma lista como eles fizeram, ou tentar resumir essa nova onda de maneira metonímica, elegendo algum grupo que consiga sintetizar o espírito desses tempos tão multifacetados. Minha sugestão para tentar entender esse ano de 2015, por um lado que não seja o mar de lama (literal e literário) que estamos metidos, é o Clube da encruza. São os músicos que, entre outros projetos, criaram encontros inesquecíveis como o Metá Metá e o Passo Torto; e que participaram, só neste ano, do disco da Elza Soares, produzindo talvez o grande álbum do ano, e o de Rodrigo Campos, talvez o outro grande álbum do ano. O pessoal que foi apelidado de povo do "samba sujo de São Paulo": além do Rodrigo, Kiko Dinucci, Marcelo Cabral, Thiago França, Romulo Fróes, e, claro, Juçara Marçal.
Nesse ano da desgraça de 2015, o Clube da encruza [nome que eles se deram para uma apresentação na sala Funarte - grande palco carioca - em agosto] lançou - juntos ou separados - ao menos três discos memoráveis. Além dos dois supracitados ("A mulher do fim do mundo", da Elza, e "Conversas com Toshiro", do Rodrigo Campos), podemos colocar no mesmo patamar o "Thiago França", isso, o nome do saxofonista, do Passo Torto, que contou com a participação de Ná Ozzetti (que, por sua vez, participou do disco de Rodrigo Campos). Mas não ficam só nisso.
Mais experimental, Juçara Marçal participou de dois projetos com muito noise e pitadas generosas de influência das culturas de tradição africana: "Anganga", com Cadu Tenório, de influência mais eletrônica; e "Abismu", com o parceiro de sempre Kiko Dinucci, e Thomas Harres, mais free jazz, mais rock, mais improviso.
(Um parêntese rápido: Harres não é um desconhecido; ele é baterista de Ava Rocha, que também produziu um disco incrível neste ano, o "Ava Patrya Yndia Yracema", Negro Léo (cujo último disco - de 2015 - "Niños heroes", chegou a ser elogiado até pelo NYT, para não dizer que estamos sendo benevolentes com a produção nacional) e Abayomi. As boas influências tendem a se encontrar, não?)
Se não bastasse, Thiago França, aos 30 minutos do segundo tempo desse 2015, lançou ainda um disco com seus solos de saxes e percussão para fazer versões de músicas consagradas do candomblé ou de outros estilos com forte influências africanas, o "Sambanzo, coisas invisíveis". E já em dezembro, lançou ainda outro projeto, "Boomshot", agora com Kiko, o rapper Síntese e o DJ Akilez, com músicas mais ligadas ao hip-hop. É capaz de até o dia 31, eles lançarem outras coisas.
O que todos esses discos têm em comum? Em uma primeira audição, pouca coisa, além do fato de eles compartilharem os mesmos músicos, em várias versões. Mas, ao se dar tempo ao tempo - coisa tão incomum nesse 2015 - pode-se ver que, além de beberem numa fonte que sai lá da África [aliás, outro rapper que também provou dessa água neste ano foi Emicida, com o "Sobre crianças, quadris, pesadelos e lições de casa"], misturado com a sujeira, o barulho, o noise bem comum da geração novaiorquina dos anos 1990, há uma tentativa de experimentar. Uma urgência de colocar logo no ar, de saber que uma obra nunca está verdadeiramente pronta se nós não a lançarmos. Uma tentativa de registrar as subidas e as descidas das vontades na hora que elas se apresentam. Uma intuição de que o esboço é a melhor forma de se expressar nos dias de hoje.
Isso não quer dizer que os discos são toscos, amadores, feitos nas coxas. O tamanho das produções de discos como o da Elza e do Rodrigo Campos não permitiriam dizer isso. São complexos, grandiosos, cheios de arranjos em que podemos ir descobrindo pequenas pérolas escondidas. Mas eles sabem que é necessário também mergulhar em terrenos pouco confiáveis para se oxigenar. Não é possível rodar em volta do lugar já conquistado para todo o sempre, porque aí se perde o viço. E as experimentações são os lugares perfeitos para entender a dinâmica entre erros e acertos. Perceber onde, como, quem estabelece a fronteira entre esses dois campos. Enxergar os lados todos do poliedro arrendondado em que vivemos e registrar essa história.
O Clube da encruza talvez seja a metonímia desse 2015 porque conseguiu acompanhar a quantidade gigantesca de informação sobre a qual a atualidade nos soterra, processando-a, transformando-a em algo mais perene que o simples clicar em um link da timeline. Conseguiu surfar nessa tera-onda, e, concomitantemente, interromper o fluxo de tempo, para criar um outro... tempo para se viver. Mostraram que não existe mais - se é que um dia existiu - um grupo fechado, hermético, desconectado, sem contato com outras dimensões. Que as influências podem vir de todas as partes do mundo, ao mesmo tempo e agora. Que é possível misturar punk com axé, que é possível encontrar na sujeira de uma microfonia uma doce boniteza harmônica. Que as regras são sempre estabelecidas a posteriori e que é preciso viver primeiro para conhecer quais são elas, mesmo que isso pareça mais doloroso.
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