O monastério budista Longquan fica longe para dedéu do centro de Beijing – mas ainda pertence à grande metrópole de Beijing. São mais de 50 quilômetros da Praça Tian’anmen – o centro do Reino do Centro –, ou uma hora de carro depois de descer na última estação da linha 4, que, por sua vez, já é quase em Japeri. Fica dentro do parque Fenghuangling (serra da Fênix), em cujas montanhas estão escritos os famosos dizeres com a caligrafia de um mestre da arte de séculos atrás: 德道 – De Dao, caminho da virtude ou caminho virtuoso. Dois dos conceitos centrais do antigo pensamento chinês.
Toda essa lonjura funciona para que os monges e os estudiosos do budismo possam, há mais de mil anos (entre ida e vindas), se isolar da agitação da capital e focar nas leituras e discussões dos textos sagrados. Ou funcionava para isso. Desde 2005, quando o local voltou a se tornar o centro nervoso dos budistas chineses, a nova administração está tentando abrir as portas e se comunicar com o mundo todo.
O capo do lugar, o venerável mestre Xuencheng – visto pelos frequentadores do lugar como a maior autoridade do budismo na e da China – é o "autor" de blogs e microblogs, além de uma penca de livros. O próprio monastério também tem um site próprio em que aborda assuntos tão diversos como terrorismo, a causa animal ou os benefícios de se entoar os cânticos e sutras budistas. Todos traduzidos para diversas línguas, que vão do japonês, tailandês e coreano, até o espanhol, francês e inglês. Agora chegou a vez do português.
Há alguns meses, estudantes chineses da última flor do Lácio se encontram no monastério aos domingos para repetir uma rotina: ler um sutra de manhã na língua de Camões (mesmo que o conhecimento da língua ainda não seja lá essas maravilhas), almoçar no imenso e novíssimo refeitório seguindo as regras locais (não se pode falar, deve-se aprender os gestos cerimoniais, e é de bom tom ajudar na limpeza do lugar), e discutir os caminhos da versão para o português de todo esse material produzido diariamente.
No último domingo, estive lá após encontrar um convite num site tipo a "Time Out" para se ler sutras em português. Eu, que nunca tinha tido contato com qualquer sutra, fiquei com uma curiosidade imensa e dupla. Por que diabos eles estão falando de budismo em português?
Sou um curioso sobre as religiões. Tenho uma dificuldade imensa em entender a crença, a fé, qualquer fé, mas acho um dos sentimentos mais genuínos que existe, quando “autêntico” (se é que há isso). A fé é algo que antecede a razão e dá forças para que muitas pessoas consigam empurrar a pedra morro acima, diariamente, mesmo sabendo que ela vai cair durante o sono.
Muitas vezes, entretanto, a fé, exatamente por trabalhar em outros canais que não o que comum e metafisicamente chamamos razão, é usurpada por sacerdotes aproveitadores. Não precisamos ir à China para ver isso, basta pensar na Igreja Universal e o seu drive-thru do descarrego em São Paulo.
De todas as religiões, as orientais me parecem menos “contaminadas” por aquilo que Heidegger chamou de “técnica”, mas que, numa interpretação mais aberta, poderia ser também a modernidade, o Ocidente, o capitalismo, a, enfim, hegemonia de pensamento. Aquilo que transforma todos os aspectos da vida, do ser, daquilo que há, em apenas uma causa para uma mesma consequência: dar mais lucros. "Lucro", repare você, aqui é usado como uma palavra metafórica, não precisa ser dinheiro exatamente.
Essa hegemonia do modo de ser atual criou as bases para que todas as coisas sejam mais eficientes, úteis, práticas – todas, claro, de acordo com apenas um único padrão. O hegemônico.
É um processo que se retroalimenta. Qualquer comportamento que fuja inicialmente desse formato estrutural exigente, como a contemplação, o ócio, a calma, é logo cooptado. O ócio tem que ser criativo, os restaurantes lucram com a slow food e a comfort food, a criação só é valorizada caso tenha likes e compartilhamentos. A hegemonia é compulsória. Não há lado de fora. A utopia é um espaço a se conquistar, novamente e sempre.
O budismo, assim como o hinduísmo, o taoísmo, e até mesmo o confucionismo, propõe caminhos que são anteriores à hegemonia atual. Ou proporiam. Quem viu “Mad men” até o final sabe que há décadas o Ocidente viu no Oriente uma possibilidade de criar uma new age do capitalismo. Mas e aqui na China? Como ficou isso?
Já no primeiro contato com os meninos e meninas do grupo, todos se mostraram empolgados com a presença de um curioso brasileiro. Foram extremamente carinhosos e atenciosos, o tempo todo – mesmo quando tive que tirar o sapato e o meu chulé empesteou a sala. Na minha primeira conversa com André, um dos voluntários, ele me perguntou sobre o meu interesse no budismo e ficou claramente constrangido quando eu disse que eu o imagino como um sistema de pensamento – mais que uma religião – em que as regras não são dadas anteriormente, em que não há uma dicotomia clara entre bem e mal, em que há a necessidade de se encontrar o equilíbrio em todas as ações. Logo entendi por que ele ficou com aquela cara de interrogação.
O último cristão morreu na cruz, disse Nietzsche. Talvez possamos acrescentar que o último budista tenha ascendido aos céus com o Gautama. Li apenas um sutra, e portanto esse meu resumo deve ser encarado com desconfiança, mas na passagem havia claramente um tom maniqueísta e de salvação única e exclusivamente pela fé. Uma passagem cheia de jargão, abusando de uma mitologia do extremo-oriente, com outros deuses e hierarquias entre os seres santos, completamente diferente da história “original”. Como se a passagem de Sidarta Gautama fosse o evangelho e os sutras todo o restante da bíblia.
Líamos em português mas só André e Verônica (outra voluntária) tinham noção da língua. O importante nem era entender, mas apenas recitar o texto sagrado. Como se isso já fosse o suficiente para se adentrar o espaço da fé.
Para piorar a minha percepção, a magnitude do espaço me impressionou – negativamente. É um prédio suntuoso que continua em obra, mesmo depois de mais de uma década de abertura. Todo o espaço interno é coberto por madeira de qualidade. O edifício, que tinha se transformado em habitação dos camponeses durante a revolução cultural, tem traços megalomaníacos que fazem um visitante mais incrédulo como eu não deixar de pensar da catedral da fé, da Igreja Universal, ali na Suburbana.
Almoçamos – homens para um lado, e sempre à frente, mulheres para o outro, e vindo depois – e fomos conhecer o espaço ao redor. Fui apresentado a Liuwen, uma professora de inglês extremamente simpática e prestativa que ajudou e ajuda voluntariamente na tradução do material (todo mundo ali doa o seu trabalho para o monastério). Ela me serviu de guia no restante do dia. Conhecemos a horta orgulhosamente orgânica, onde há um espaço dedicado exclusivamente para os insetos, e onde não se pode comer nem mesmo uma das infinitas castanhas: tudo pertence ao altíssimo, me responderam quando estava para dar uma mordida no fruto colhido do pé.
Depois, seguimos para onde ficam as “capelas” do lugar. Conheci a área para as celebrações ao ar livre, com canais de centenas de anos, e descobri que para essa escola do budismo, há budas do passado, do presente e do futuro. Liuwen ficou confusa quando neguei a opção de fazer um pedido para um dos budas, pra que meus sonhos se realizassem. Disse a ela que não desejo nada, que estou muito satisfeito com a minha sorte e aceito sem muitos problemas o que o destino me reserva. Tentei amenizar lembrando que a minha irmã também sofre com esse meu comportamento, quando ela me pergunta o que eu quero ganhar de presente no meu aniversário. Não adiantou muito.
Vimos árvores sagradas que eles consideram ter mais de mil anos (gosto muito da tradição chinesa de honrar as árvores) e fomos participar do encontro de discussão da tradução. Assistimos a um vídeo que mostrava como as versões em outras línguas dos escritos sagrados eram importantes para divulgar a boa-nova. Como era indispensável que se propagasse o budismo pelo mundo. E eu só pensava nas missões religiosas e o papel disso para a expansão da cultura ocidental pelo mundo.
Em vários momentos, eles se diziam felizes por eu querer conhecer mais da cultura chinesa. Não diziam do budismo. Como se China e budismo fosse intercambiáveis, mesmo que toda a história do budismo tenha nascido entre Índia e Nepal, mesmo que a grande maioria da população chinesa se considere sem religião – ou venere apenas o deus dinheiro.
No fim da tarde, fomos recebidos por um dos principais monges do lugar, o venerável Wuguang, secretário do monastério. Segundo me contaram, ele é o número dois da hierarquia do espaço, e esses tipos de encontros são extremamente incomuns – disseram que eu tinha sorte. Ele basicamente me contou dos planos de modernização que o venerável mestre Xuecheng tenta colocar em prática, por conta do mundo contemporâneo. De como isso tinha como intenção propagar a fé, angariar recursos do mundo inteiro para o monastério, e contribuir com o pensamento produzido ali nas discussões urgentes do momento, como terrorismo, aquecimento global, crise ecológica. Ganhei três livros e um CD-Rom, com ensinamentos do venerável e com uma pequena história recente do prédio. Não consegui parar de pensar que aquilo era uma metonímia da China. Ou como, para a China, aquele monastério tinha se tornado, depois de anos fechado, muito importante para o seu tabuleiro geopolítico. Explico melhor:
Em primeiro lugar, porque a China pode se mostrar tolerante com outras crenças (além da fé no comunismo de mercado, ou capitalismo de Estado, o paradoxo que você preferir). Liberdade religiosa é um capital valorizado em um mundo em que as pessoas se matam por discordar da fé alheia. Além disso, mostra que a China deixa, aos poucos, que algumas liberdades apareçam – como se isso fosse o suficiente.
Também há o soft power. No tabuleiro das relações internacionais, a China aparece sempre com a força bruta de ter uma nação de mais de um bilhão de pessoas, um dínamo militar e com uma economia de crescimento vertiginoso. Mas isso não consegue conquistar cabeças e mentes de um povo acostumado a ser seduzido por tramas açucaradas de Hollywood, músicas pops e modas, culinária e costumes europeizados.
Talvez uma narrativa (palavra do momento, mas que pode ser traduzida para “caô”, como sugeriu L. A. Simas) mais simpática, como a do budismo, e a sua agricultura orgânica, sua preservação histórica, sua mitologia aguada em que basta a fé para mover montanhas, pode ter uma boa entrada o outro lado do globo.
Por último, mas nem por isso menos importante: Tibete. Em vários momentos os meus verdadeiramente simpáticos cicerones insistiam o quão importante é o venerável mestre Xuecheng, como ele é a maior autoridade na China sobre o budismo. Como ele é o presidente da Associação Budista da China. Como ele é quase uma figura mítica. A maneira como todos eles tratavam qualquer monge, com uma veneração (não é à toa a alcunha de venerável para todos eles) me faz crer a intenção de sacralizar essas figuras.
Ora, o Tibete fica dentro do território chinês e quer se tornar independente da China. O Dalai Lama é a principal personagem do budismo tibetano, mas agora tem que viver na cidade de Mcleod Ganj, na vizinha Índia, porque ele é persona non grata aqui. No mundo inteiro, porém, ele é uma doce figura que torna o tema Tibete um dos assuntos mais amargos para a China. Quanto mais a China tenta massacrar o Dalai Lama, mais ele se fortalece, se tornando a personificação do injustiçado, do herói, do Davi contra Golias.
Se não dá para usar a força, como, então, combatê-lo? Criando outra figura, que seja tão importante e simpática quanto o concorrente. Jogando todo o foco nessa outra figura. Modernizando (em vários sentidos) um ensinamento milenar. Diluindo uma discussão complicada. Traduzindo suas palavras para todas as línguas importantes, inclusive o português.
De tudo isso, o que mais me incomodou, entretanto, foi o uso da fé alheia para fins nem sempre muito claros. São inúmeros voluntários trabalhando de graça nos fins de semana, além de um grupo fixo de um grupo que eles chamam de “leigos”, que moram lá e ajudam a administração desse enorme complexo religioso. Pessoas que dão todas as suas forças para uma organização, com o intuito de ajudar o budismo.
Em muitas vezes, me pareceu que eles estavam sendo enganados. Em outras, pensei que o importante para eles, mais que o simples processo religioso, da crença em si, era criar uma comunidade da qual eles se sentissem parte. Isso aparentemente acontece. Há uma conexão forte no grupo. Mas não sei o quanto é válido ser usado como massa de manobra para fins escusos. Participar de uma instituição que escorrega várias vezes na hipocrisia. Não sei o quanto há nessas práticas cotidianas do monastério do chamado “caminho virtuoso” – como a inscrição no morro ali atrás do monastério não nos deixa esquecer. Parece que pouco.
BOX - Bolinhos dos céus
A discussão da tradução foi curta – basicamente só eu dei opiniões. Devem optar pelo português brasileiro ou de Portugal? Como divulgar no Brasil? Como traduzir determinados termos? Nada muito empolgante. Fomos, então, participar da produção das tortas da lua (月饼, yuèbĭng), por conta do festival de outono, em que, por uma tradição muito antiga da China, se venera a deusa que mora na lua, deusa esta que se confunde com a própria lua. O feriado é nacional, acontece na próxima quinta-feira, e a intenção é reunir as famílias num jantar de confraternização. Mais ou menos como o natal para os brasileiros, ou Thanksgiving para os americanos.
O bolinho em si é gostoso e simples: uma massa comum com recheios variados, do doce ao salgado. O do monastério tinha uma mistura de castanhas, gergelim, amendoim. Era doce, mas não muito doce. Minha função foi enrolar a massa no recheio e entregar para a formatação. Eu era o único homem na minha área. Os homens cuidavam de colocar a massa dentro de uma forma, tipo um espremedor de batata, para que todos eles saiam iguais. O monastério vende caixas desses bolinhos. Liuwen comprou três caixas e me deu uma tortinha. O reverendo responsável pela cozinha me autorizou, porque eu os ajudei, a comê-los quentinhos, recém-saídos do forno.
O monastério é impactante |
O capo do lugar, o venerável mestre Xuencheng – visto pelos frequentadores do lugar como a maior autoridade do budismo na e da China – é o "autor" de blogs e microblogs, além de uma penca de livros. O próprio monastério também tem um site próprio em que aborda assuntos tão diversos como terrorismo, a causa animal ou os benefícios de se entoar os cânticos e sutras budistas. Todos traduzidos para diversas línguas, que vão do japonês, tailandês e coreano, até o espanhol, francês e inglês. Agora chegou a vez do português.
Há alguns meses, estudantes chineses da última flor do Lácio se encontram no monastério aos domingos para repetir uma rotina: ler um sutra de manhã na língua de Camões (mesmo que o conhecimento da língua ainda não seja lá essas maravilhas), almoçar no imenso e novíssimo refeitório seguindo as regras locais (não se pode falar, deve-se aprender os gestos cerimoniais, e é de bom tom ajudar na limpeza do lugar), e discutir os caminhos da versão para o português de todo esse material produzido diariamente.
No último domingo, estive lá após encontrar um convite num site tipo a "Time Out" para se ler sutras em português. Eu, que nunca tinha tido contato com qualquer sutra, fiquei com uma curiosidade imensa e dupla. Por que diabos eles estão falando de budismo em português?
Sou um curioso sobre as religiões. Tenho uma dificuldade imensa em entender a crença, a fé, qualquer fé, mas acho um dos sentimentos mais genuínos que existe, quando “autêntico” (se é que há isso). A fé é algo que antecede a razão e dá forças para que muitas pessoas consigam empurrar a pedra morro acima, diariamente, mesmo sabendo que ela vai cair durante o sono.
Muitas vezes, entretanto, a fé, exatamente por trabalhar em outros canais que não o que comum e metafisicamente chamamos razão, é usurpada por sacerdotes aproveitadores. Não precisamos ir à China para ver isso, basta pensar na Igreja Universal e o seu drive-thru do descarrego em São Paulo.
De todas as religiões, as orientais me parecem menos “contaminadas” por aquilo que Heidegger chamou de “técnica”, mas que, numa interpretação mais aberta, poderia ser também a modernidade, o Ocidente, o capitalismo, a, enfim, hegemonia de pensamento. Aquilo que transforma todos os aspectos da vida, do ser, daquilo que há, em apenas uma causa para uma mesma consequência: dar mais lucros. "Lucro", repare você, aqui é usado como uma palavra metafórica, não precisa ser dinheiro exatamente.
Eles insistem que a imagem parece um homem deitado |
É um processo que se retroalimenta. Qualquer comportamento que fuja inicialmente desse formato estrutural exigente, como a contemplação, o ócio, a calma, é logo cooptado. O ócio tem que ser criativo, os restaurantes lucram com a slow food e a comfort food, a criação só é valorizada caso tenha likes e compartilhamentos. A hegemonia é compulsória. Não há lado de fora. A utopia é um espaço a se conquistar, novamente e sempre.
O budismo, assim como o hinduísmo, o taoísmo, e até mesmo o confucionismo, propõe caminhos que são anteriores à hegemonia atual. Ou proporiam. Quem viu “Mad men” até o final sabe que há décadas o Ocidente viu no Oriente uma possibilidade de criar uma new age do capitalismo. Mas e aqui na China? Como ficou isso?
Já no primeiro contato com os meninos e meninas do grupo, todos se mostraram empolgados com a presença de um curioso brasileiro. Foram extremamente carinhosos e atenciosos, o tempo todo – mesmo quando tive que tirar o sapato e o meu chulé empesteou a sala. Na minha primeira conversa com André, um dos voluntários, ele me perguntou sobre o meu interesse no budismo e ficou claramente constrangido quando eu disse que eu o imagino como um sistema de pensamento – mais que uma religião – em que as regras não são dadas anteriormente, em que não há uma dicotomia clara entre bem e mal, em que há a necessidade de se encontrar o equilíbrio em todas as ações. Logo entendi por que ele ficou com aquela cara de interrogação.
O último cristão morreu na cruz, disse Nietzsche. Talvez possamos acrescentar que o último budista tenha ascendido aos céus com o Gautama. Li apenas um sutra, e portanto esse meu resumo deve ser encarado com desconfiança, mas na passagem havia claramente um tom maniqueísta e de salvação única e exclusivamente pela fé. Uma passagem cheia de jargão, abusando de uma mitologia do extremo-oriente, com outros deuses e hierarquias entre os seres santos, completamente diferente da história “original”. Como se a passagem de Sidarta Gautama fosse o evangelho e os sutras todo o restante da bíblia.
A entrada para as "capelas" não foi reformada ainda |
Para piorar a minha percepção, a magnitude do espaço me impressionou – negativamente. É um prédio suntuoso que continua em obra, mesmo depois de mais de uma década de abertura. Todo o espaço interno é coberto por madeira de qualidade. O edifício, que tinha se transformado em habitação dos camponeses durante a revolução cultural, tem traços megalomaníacos que fazem um visitante mais incrédulo como eu não deixar de pensar da catedral da fé, da Igreja Universal, ali na Suburbana.
Almoçamos – homens para um lado, e sempre à frente, mulheres para o outro, e vindo depois – e fomos conhecer o espaço ao redor. Fui apresentado a Liuwen, uma professora de inglês extremamente simpática e prestativa que ajudou e ajuda voluntariamente na tradução do material (todo mundo ali doa o seu trabalho para o monastério). Ela me serviu de guia no restante do dia. Conhecemos a horta orgulhosamente orgânica, onde há um espaço dedicado exclusivamente para os insetos, e onde não se pode comer nem mesmo uma das infinitas castanhas: tudo pertence ao altíssimo, me responderam quando estava para dar uma mordida no fruto colhido do pé.
Depois, seguimos para onde ficam as “capelas” do lugar. Conheci a área para as celebrações ao ar livre, com canais de centenas de anos, e descobri que para essa escola do budismo, há budas do passado, do presente e do futuro. Liuwen ficou confusa quando neguei a opção de fazer um pedido para um dos budas, pra que meus sonhos se realizassem. Disse a ela que não desejo nada, que estou muito satisfeito com a minha sorte e aceito sem muitos problemas o que o destino me reserva. Tentei amenizar lembrando que a minha irmã também sofre com esse meu comportamento, quando ela me pergunta o que eu quero ganhar de presente no meu aniversário. Não adiantou muito.
Vimos árvores sagradas que eles consideram ter mais de mil anos (gosto muito da tradição chinesa de honrar as árvores) e fomos participar do encontro de discussão da tradução. Assistimos a um vídeo que mostrava como as versões em outras línguas dos escritos sagrados eram importantes para divulgar a boa-nova. Como era indispensável que se propagasse o budismo pelo mundo. E eu só pensava nas missões religiosas e o papel disso para a expansão da cultura ocidental pelo mundo.
Em vários momentos, eles se diziam felizes por eu querer conhecer mais da cultura chinesa. Não diziam do budismo. Como se China e budismo fosse intercambiáveis, mesmo que toda a história do budismo tenha nascido entre Índia e Nepal, mesmo que a grande maioria da população chinesa se considere sem religião – ou venere apenas o deus dinheiro.
Essa é a área onde se fazem as cerimônias ao ar livre |
Em primeiro lugar, porque a China pode se mostrar tolerante com outras crenças (além da fé no comunismo de mercado, ou capitalismo de Estado, o paradoxo que você preferir). Liberdade religiosa é um capital valorizado em um mundo em que as pessoas se matam por discordar da fé alheia. Além disso, mostra que a China deixa, aos poucos, que algumas liberdades apareçam – como se isso fosse o suficiente.
Também há o soft power. No tabuleiro das relações internacionais, a China aparece sempre com a força bruta de ter uma nação de mais de um bilhão de pessoas, um dínamo militar e com uma economia de crescimento vertiginoso. Mas isso não consegue conquistar cabeças e mentes de um povo acostumado a ser seduzido por tramas açucaradas de Hollywood, músicas pops e modas, culinária e costumes europeizados.
Talvez uma narrativa (palavra do momento, mas que pode ser traduzida para “caô”, como sugeriu L. A. Simas) mais simpática, como a do budismo, e a sua agricultura orgânica, sua preservação histórica, sua mitologia aguada em que basta a fé para mover montanhas, pode ter uma boa entrada o outro lado do globo.
Por último, mas nem por isso menos importante: Tibete. Em vários momentos os meus verdadeiramente simpáticos cicerones insistiam o quão importante é o venerável mestre Xuecheng, como ele é a maior autoridade na China sobre o budismo. Como ele é o presidente da Associação Budista da China. Como ele é quase uma figura mítica. A maneira como todos eles tratavam qualquer monge, com uma veneração (não é à toa a alcunha de venerável para todos eles) me faz crer a intenção de sacralizar essas figuras.
Dragões, fênix... os animais chineses são bem legais, hein |
Se não dá para usar a força, como, então, combatê-lo? Criando outra figura, que seja tão importante e simpática quanto o concorrente. Jogando todo o foco nessa outra figura. Modernizando (em vários sentidos) um ensinamento milenar. Diluindo uma discussão complicada. Traduzindo suas palavras para todas as línguas importantes, inclusive o português.
De tudo isso, o que mais me incomodou, entretanto, foi o uso da fé alheia para fins nem sempre muito claros. São inúmeros voluntários trabalhando de graça nos fins de semana, além de um grupo fixo de um grupo que eles chamam de “leigos”, que moram lá e ajudam a administração desse enorme complexo religioso. Pessoas que dão todas as suas forças para uma organização, com o intuito de ajudar o budismo.
Em muitas vezes, me pareceu que eles estavam sendo enganados. Em outras, pensei que o importante para eles, mais que o simples processo religioso, da crença em si, era criar uma comunidade da qual eles se sentissem parte. Isso aparentemente acontece. Há uma conexão forte no grupo. Mas não sei o quanto é válido ser usado como massa de manobra para fins escusos. Participar de uma instituição que escorrega várias vezes na hipocrisia. Não sei o quanto há nessas práticas cotidianas do monastério do chamado “caminho virtuoso” – como a inscrição no morro ali atrás do monastério não nos deixa esquecer. Parece que pouco.
BOX - Bolinhos dos céus
Meti a mão na massa |
O bolinho em si é gostoso e simples: uma massa comum com recheios variados, do doce ao salgado. O do monastério tinha uma mistura de castanhas, gergelim, amendoim. Era doce, mas não muito doce. Minha função foi enrolar a massa no recheio e entregar para a formatação. Eu era o único homem na minha área. Os homens cuidavam de colocar a massa dentro de uma forma, tipo um espremedor de batata, para que todos eles saiam iguais. O monastério vende caixas desses bolinhos. Liuwen comprou três caixas e me deu uma tortinha. O reverendo responsável pela cozinha me autorizou, porque eu os ajudei, a comê-los quentinhos, recém-saídos do forno.
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