segunda-feira, 24 de julho de 2017

Os melhores vinhos franceses

Os franceses, como todo mundo, gostam de falar sobre os assuntos mais pueris na falta de intimidade. Mas se você consegue - com muito esforço, ao menos com os parisienses - ultrapassar as primeiras barreiras de gelo, pode se arriscar a fazer a fatídica pergunta: Bordeaux ou Bourgogne, qual é o melhor vinho? As respostas são tão variadas quanto há estilos de vinho nas duas mais famosas regiões vinícolas do país que produz os mais famosos vinhos do mundo [que os italianos, espanhóis, portugueses etc. não leiam isso aqui].

Os châteux de Bordeaux são lindos
Como disse Roland Barthes em um despretensioso e saboroso texto sobre o tema no seu Mythologies: "o vinho é sentido pela nação francesa como um bem que lhe é próprio, do mesmo jeito que seus trezentos e sessenta espécies de queijo e sua cultura". Talvez o correspondente para o Brasil seja o futebol. E se o paralelo com o ludopédio [homenagem ao homenageado da Flip, Lima Barreto] funciona, a disputa entre Bordeaux e Bourgogne é o fla x flu deles. Fait divers, mes amis, fait divers.

Numa segunda olhada para essa disputa, porém, dá para ver além da borra da uva. Do alto da pretensão do turista que visitou em dois fins de semana seguidos cada principal cidade de ambas as áreas, vou tecer aqui alguns comentários aleatórios, que me ocorreram para explicar não somente os vinhos franceses, mas a própria França e, quem sabe, alumiar um pouco um certo país tropical.

A região bordelais - que abarca a cidade de Bordeaux e adjacências - fica perto da costa, numa área próxima ao Oceano Atlântico, posição estratégica do ponto de vista logístico. Seu vinho foi, desde mais ou menos a invasão das Américas por europeus, exportado para colônias deste ou do outro lado da grande poça atlântica. Até mesmo sua garrafa cilíndrica, que é o padrão mais comum em supermercados brasileiros, foi pensada para melhorar esse processo comercial - capaz de ser empilhada mais facilmente. Consequentemente, do ponto de vista capitalista, o vinho feito na área, chamado metonimicamente de Bordeaux, virou sinônimo de vinho de qualidade francês.

Os grandes empresários vinicultores bordelais fizeram muito dinheiro, construíram châteaux de boquiabrir até os menos impressionáveis, e criaram uma indústria do vinho que movimenta uma grana alta até hoje. Junto a isso, porém, eles também descuidaram da qualidade do produto com a certeza de que bastava se apresentar como um Bordeaux para que o vinho fosse aceito em qualquer mesa. Além disso, o negócio atraiu muitos aventureiros que também quiseram, para usar uma expressão bem marqueteira, surfar no sucesso da marca.

Para tentar regular um pouco o negócio, Napoleão III [aquele que Marx chamou de "farsa", aquele que veio depois da "tragédia" Napoleão Bonaparte] tratou de criar um selo para proteger os vinhos que já existiam na região em 1855. Isso só existiu por uma coincidência: ele queria exibir os vinhos num grande evento, a exposição mundial da capital francesa. Nascia assim o avô das denominações de origem controlada, exibidas hoje em todos produtos que necessitam provar seu terroir. Ao mesmo tempo, criou uma elite de vinhos que jamais pode ser mexida.

Pelo que se lê por aí, toda e qualquer tentativa de modificar esse ranking inicial não é bem aceita - e tudo por conta de questões que vão além da simples qualidade do vinho [que, aliás, de simples não tem nada; mas isso é uma outra questão]. Foram criadas outras tantas categorizações que hoje em dia, para os simples mortais, nós que não sabemos quase nada de vinho, é quase impossível saber qual é o vinho mais confiável apenas de olhar seu rótulo.

Dijon parece de mentira
Pode parecer um contrassenso para quem sempre escutou que não se deve comprar um livro pela capa, mas o rótulo, assim como o lacre da rolha, carregam trocentas informações que nos dariam pelo menos algum norte no meio do oceano de possibilidades. É o caso, por exemplo, de lacres que exibem "récoltant" ou apenas o "r", e/ou o rótulo que tem a frase "mise en bouteille au château (ou 'au domaine' ou 'à la propriété')", que confirmam que o vinho francês passou por todo o processo de engarrafamento na própria vinícola que ele foi fabricado, dando uma conotação mais artesanal a esse processo que se torna cada vez mais impessoal no mundo todo.

Para piorar o processo, escutei há alguns anos, uma anedota que, se non è vero, è ben trovato. Diz-se por aí que, com o crescimento econômico e a tentativa de os chineses se integrarem rapidamente às regras do mundo ocidental, eles estariam comprando quantidades chinesas de vinhos bordeaux, sem se importar muito com a qualidade do produto. A intenção é apenas exibir o vinho para os demais, como um apetrecho qualquer, como se fosse um celular Apple, uma calça Lee ou um carro Ferrari. O preço dos vinhos, assim, disparou. Pura lei da oferta e da procura. Para piorar a história, a anedota dizia ainda que, porque os chineses não estariam acostumados com o gosto do vinho ocidental, eles decidiram misturá-lo com outro produto tipicamente ocidental: a coca-cola. Como se diz ironia do destino em francês, mesmo?

De qualquer forma, se há uma consequência positiva dessa confusão toda nos bordelais é a mistura de cepas sem qualquer tipo de purismo. É extremamente comum que os vinhos dessa parte da França sejam feitos a partir de dois ou mais tipos uvas. O resultado é uma alquimia extremamente difícil de se acertar. Qual é, por exemplo, a quantidade exata de cabernet sauvignon e de merlot para se fazer um vinho bom? Por conta disso, em geral, os bons vinhos de Bordéus [como os portugueses chamam essa área] são encorpados, densos, licorosos, escuros, a ponto de aguentar acompanhar bem das carnes mais gordurosas aos queijos mais pesados - e fazer desaparecer os gostos mais sutis.

Já em Bourgogne... Bem, a Borgonha, como nós chamamos essa área do centro-oeste francês, é quase o oposto da confusão de Bordeaux. Se nas ruas da principal cidade da região rival, abundam turistas cafonas, restaurantes caça-níquel e pós-adolescentes de carro novo cantando pneu, Dijon, a capital da Borgonha, parece não se importar nem mesmo com aqueles grupos que seguem a guia de guarda-chuva em punho. É elegante e sóbria como o seu vinho. Opa, pera. É quase isso.

Uma área tão grande produz vinhos muito diferentes entre si, mas há, ao menos, três características que se mantêm praticamente inalteradas: 1/ as garrafas são mais arrendondadas, dando um aspecto mais, hum... charmoso. 2/ as cepas são únicas - e o pinot noir é o mais barato e comum de todos no norte [#cholamais]! 3/ há um controle fortíssimo da qualidade dos vinhos produzidos na região. Lá, antiguidade não é posto. É necessário o pessoal correr atrás do prejuízo a cada ano para manter suas denominações intactas. Se não...

Esses controles de qualidade não são uma certeza de que o vinho é bom ou ruim. Há infinitos motivos e outras infinitas razões para se gostar ou não de um vinho. Um vinho é uma líquido vivo [raramente se consegue, por exemplo, duas garrafas exatamente iguais] que foi influenciado por inúmeros fatores, como a condição do solo, a quantidade e a qualidade de sol no ano e, após as reticências e o et cætera, o grande e absurdo acaso. Saber como um vinho foi preparado não garante qualquer certeza sobre sua degustação, apenas que ele é o melhor que poderia ter sido preparado dentro de um mundo que não respeita qualquer CNTP.

Outro detalhe curioso é a presença mais marcante dos bourgognes na culinária. O boeuf bourguignon é onipresente em Dijon. Os ovos en sauce meurette, idem. O coq au vin não aparece sempre nos cardápios, mas também não é bem uma surpresa. É um vinho mais, hum, simples - no sentido de mais leve, mais tranquilo, que pode "compor" melhor, sem querer sobrepujar nada nem ninguém. É aqui que os adjetivos desaparecem para os só amadores do vinho.

O certo é que há um controle e uma organização na Borgonha para um vinho mais, hum, puro. Isso me leva a especular que o processo é uma boa metáfora para o capitalismo. Como se o processo de industrialização na área tivesse se desenvolvido ao custo de muito trabalho e investimento. Agora a intenção é aperfeiçoar o produto para se chegar no mais próximo da perfeição. Enquanto isso, na outra área - Bordeaux -, teria havido uma acumulação a partir da exploração do solo, com a criação de [praticamente] capitanias hereditárias, que se mantêm [praticamente] inalteradas depois de tantos anos. Bem, é isso, ou a minha vontade de ver sempre a nossa herança colonial em todos os lugares.

A "rivalidade" Bordeaux x Borgonha é, de alguma forma, a demonstração da divisão interna desse país que é atravessado por vontades tão conflitantes, tão opostas. São duas maneiras diferentes de produzir vinho, duas histórias quase opostas, e o resultado é claro: duas bebidas incomparáveis. Ou quase. Borgonha é Nova Inglaterra, Bordeaux, Sul dos EUA. Borgonha é Norte da Europa, Bordeaux, o Sul. Borgonha é Flu, Bordeaux, Fla. Apesar de minha preferência pelos gostos mais arrebatadores, não é surpresa, portanto, saber qual é o melhor vinho francês.

quinta-feira, 6 de julho de 2017

A casa [da mãe Joana] França-Brasil

D'accord, dou o braço a torcer. Agora, parece inegável que a relação Brasil-França (ou seria Rio-Paris?) é maior, ou pelo menos de outra natureza, mais íntima, mais profunda, que a do Brasil com outros países ricos. É claro que essa é uma percepção subjetiva, mas é a mesma impressão e método que usei para avaliar outros países. Como forma de contra-prova, ou prova dos 9, eu me defendo dizendo que estava até recentemente tentando evitar essa associação de todas as formas. Mas contra as coincidências quase cotidianas [a última foi a francesa que nasceu no Brasil, o pai é ex-diplomata no Rio e o irmão, produtor de cinema de "Cidade de Deus" e outros blockbusters nacionais] não há muitos argumentos.

Sempre me perguntei, para evitar uma aproximação exagerada entre Brasil e França, que falseasse o real: por que a França - e não outro país - teria essa ligação íntima com o Brasil? O que a França - ou Paris; ou Paris? - tem que outros lugares não têm? A questão é que não consegui fugir das questões com respostas satisfatórias e agora estou me esforçando para levantar alguns possibilidades de caminho.

Minha primeira tentativa é histórica. Os franceses tentaram, diversas vezes, colonizar não somente o Rio, como também outras áreas da costa do que veio a ser o Brasil. Discordando daqueles que reclamam do nosso passado português, imagino que para nós, que somos o resultado de uma colônia europeia com tráfico de escravos africanos tirados a força de suas casas dentro de um território manchado com o sangue do genocídio indígena, não haveria muita diferença. Vide o Haiti. Reze pelo Haiti. Todavia, para os franceses...

Para os franceses houve, suspeito, uma sentimento de perda, de queda de um espécie de paraíso na Terra. Uma terra em que, finalmente, eles cumpririam o destino deles: o de serem os donos da porra-toda. Em outras palavras, a Casa Grande numa terra grande.

[Pausa para dizer que se os jornais ainda poderiam ser usados como forma de entender uma parcela representativa da sociedade, o mais que insuspeito "Le Monde" demonstra como os franceses pensam sobre o restante do Monde. Todo e qualquer assunto internacional é, de uma maneira bem direta, parte das suas políticas internas. Eles devem, de alguma maneira, estar a par de todos os assuntos porque eles teriam, numa imaginação um pouco fantasiosa, influência direta nisso. Dias desses, por exemplo, a capa do site era sobre um drama na sucessão do trono na Arábia Saudita. Noves fora o peso estratégico do reino, o tema é, no mínimo, estranho para olhos brasileiros. Fim da pausa.]

Voltando à França, e à sua relação com o Brasil. Os gauleses, sem o Brasil para explorar, se sentiram naquela famosa relação de quem poderia ter sido e nunca foi. Uma promessa nunca cumprida. Um potencial não explorado, por motivos de: caminhos tomados estranhamente na vida - da vida. Seria possível, com pouco esforço, dizer o mesmo do Brasil, apelidado pelo Stefan Zweig de "O país do futuro". O mesmo Zweig, vale o comentário, que tem uma presença bem mais constante aqui em sebos e livrarias que em outros países que visitei [nunca fui à Áustria, no entanto].

Haveria, daí, uma segunda identificação entre o Brasil e França. Os dois se sentiriam parte do mesmo clube dos corações frustrados. França, como o irmão mais velho e rabugento, Brasil, como o mais novo e festivo. De onde nasce a terceira ligação.

Poder-se-ia [o presidente-intestino ficaria orgulhoso da mesóclise] supor que esse irmão mais velho e ranzinza quer, no fundo, cair na folia do mais novo. Haveria uma inveja... não, não: uma cobiça, uma vontade de ser desse modo descompromissado, desleixado, desse jeito de não se levar a sério, não conseguir se levar a sério - mesmo quando uma dose leve de seriedade seria indicada - do Brasil e dos brasileiros. [Esse modo que não é, claro, mais que uma caricatura em zoom out da maneira de ser que o Brasil exporta para si mesmo e para os outros.]

Isso lembra as maneiras atrapalhadas do franceses de não se deixarem ser tão desleixados, de não deixarem a cultura do jeitinho se espalhar indiscriminadamente: com uma mão pesada da burocracia. Não há ninguém que more aqui mais que um mês que não tenha ido aos correios, La Poste, aqui. Para ter um celular de conta, por exemplo, é necessário mandar uma carta de próprio punho assegurando que você não atrasará o pagamento. Sabe lidar com a sólida e inflexível estrutura de algumas instituições públicas brasileiras, que têm pouco ou nenhum jogo de cintura? Agora multiplique por três. Pronto.


Há, portanto, um aspecto cultural - no sentido mais amplo do termo - em comum entre Brasil e França e o território francês, com sua particularidade geográfica, só vem a confirmar isso. É banhado pelo Mediterrâneo, por baixo, e pelo golfo de Biscaia e pelo canal da Mancha, que é uma saída já do mar do Norte, por cima.

Existem diversas maneiras caricatas de dividir a Europa [ver ao lado], mas uma das mais comuns é entre o Norte [protestante, frio, funcional, moderno...] e o Sul [católico, caloroso, confuso, clássico...], que funciona "bem", até a página 3. No máximo. A França, como os mapas aí do lado mostram, carrega as cicatrizes dos dois lados da fronteira Norte-Sul. Há uma culpa por não ser tão eficiente, quanto os irmãos de cima, nem tão relaxados como os irmãos de baixo. Há sempre um sentimento de não estar confortável com o que se é. Um estar desalojado de si mesmo. Um sentido que o brasileiro e a brasileira de classe média levemente intelectualizada conhecem bem, apostaria.

Ao mesmo tempo, a França é ainda um país extremamente central na Europa, propagadora de vários dos elementos que compõem os alicerces das chamadas democracias liberais. Além disso, é uma das mais consolidadas metonímias da Europa, fruto de governos centralizadores, reis, imperadores e que tais. Essa sua posição histórica-geográfica obrigaria, nessa minha hipótese, a França a ter uma participação mais ativa na política internacional [vide as manchetes do "Le Monde"], quando, na verdade, ela só gostaria de estar relaxada numa praia tropical, tomando caipirinhas [onipresentes] ao som de samba [idem]. Voilá, uma contradição não-ambulante. Uma contradição bem brasileira.

Mas por que a França? Por que não outros países com mais vínculos com o Pa-tropi? Bem, porque Portugal ficou muito pequeno para o Brasil. Talvez eles tenham essa relação mais íntima com Angola e, quiçá, Moçambique, sabe-se lá. Espanha tem suas próprias ex-colônias para se preocupar - e invejar. A Inglaterra é fechada dentro da sua própria Commonwealth de influência, e muito cinza para se alegrar com sombra e água fresca. Alemanha tem a barreira da língua, quase intransponível num primeiro momento. Os EUA são abastecidos por tantos outros estrangeiros e influências externas, que a força brasileira se dilui completamente. A França reúne, talvez por coincidência, os elementos para adorar o Brasil, para ter esse diálogo quase paternalista. Não é responsável por suas mazelas, portanto não carrega uma culpa, e não recebe uma onda massiva de imigrantes. E, principalmente, valoriza os nossos clichês como a utopia a se alcançar. Vai entender.

É, ainda, na França que o emigrante brasileiro que não quer tentar a sorte nos EUA [por qualquer motivo que seja], e não sabe falar outra língua além do português-brasileiro com forte sotaque, se arrisca. É o irmão mais novo pedindo ajuda ao irmão mais velho. E tome bar baiano, restaurante com feijoada, roda de samba, forró misturado até com música dos balcãs [dizem que é divertido].

O La Fontaine é sempre citado nos cursinhos de francês com suas fábulas de moral nível He-Man explicando o episódio. Num de seus versinhos que não bebeu diretamente de Esopo, ele fala de uma formiguinha trabalhadora e acumuladora de capital, e de uma cigarra, que canta a vida, sem se preocupar muito com o dia de amanhã. Parece que de alguma maneira, Brasil e França são da mesma família: a das cigarras que são, no menor ou no maior grau, obrigadas a se comportarem como formigas. Talvez um dia consigamos simplesmente nos sentir bem em nossa própria pele.