Após o assassinato de Marielle, o que o épico episódio da prisão de Lula me ensinou foi que a política - em qualquer uma das suas acepções e, talvez, por consequência, toda a vida [Spinoza sorri] - é feita de afetos. Não foi incomum escutar de críticos de todos os tipos ao ex-presidente que eles choraram com todo o processo fúnebre, arrebatados com a missa [mesmo ateus!], com a aglomeração de pessoas, com o memorável discurso.
Já aqueles que o odeiam abertamente não conseguiram disfarçar muito bem como estavam afetados: tentaram de todas as formas minimizar ou desdenhar do evento - numa tática tão banal que já foi imortalizada até em ditados populares. Apenas alguns poucos se disseram indiferentes, mas mesmo assim fizeram questão de se colocarem numa posição de racionalidade que beirava a superioridade, como se somente estes tivessem acesso a uma espécie de verdade anterior. Foi difícil passar incólume dessa semana.
Esse é um dos motivos pelos quais não se chega a qualquer conclusão tentando "convencer" racionalmente um sujeito do outro lado do espectro político que você. Seus argumentos são completamente inócuos para ele. Ele é afetado por motivos absolutamente diferentes dos seus. Ele enxerga a mesma cena de um ângulo totalmente outro. E se fecha para discursos que não confirmem o seu ponto, porque seus afetos estão direcionados muito concretamente para si próprio.
Outro motivo, derivado do primeiro, é o ressentimento [alô, Nietzsche!]: lutar contra o outro sempre coloca sua força numa espécie de inferioridade em relação a quem está dando as cartas. Em vez disso, se continuássemos a pensar junto com o bigode, o melhor seria se manter firme nos seus próprios projetos, reafirmando a própria potência, seguindo em frente, tentando aumentar o alcance do seu próprio poder, e deixar que esse poder seduza os demais, talvez, quem sabe, como uma lâmpada faz com insetos no verão.
[Numa História utópica, poderíamos pensar em territórios em que os afetos parecidos se encontrassem, numa materialização das bolhas de afinidades, e fôssemos obrigados a nos mover para lá e para cá, de acordo com o formato das nossas convicções. Assim, a cidade seria reorganizada, de acordo com as nossas opções políticas. Seria uma maneira de aceitar a fragmentação dessas megacidades, cada vez mais ingovernáveis. No fundo, portanto, estaríamos pensando apenas em uma guerra territorial: quem vai ter melhores benefícios, mais confortos, em suma, quem vai morar perto da praia.]
Voltando para a realidade em que devemos votar nas próximas eleições: considerando a alta carga emocional do momento, não me espanta que diversos candidatos estejam engrossando a voz para tentar gritar mais alto que o adversário. Uma das maneiras de aparecer mais é aumentar o volume. Lembrar de um determinado governador com gosto de chuchu que tentou apimentar seu discurso sugerindo que Lula era o culpado pelo atentado a si mesmo - e depois, percebendo que isso podia estragar sua postura de bom-moço cristão, mudou de opinião. Também não é de espantar que vários intelectuais que opinam sobre a política tentem resfriar o jogo, apelando para um ideal de racionalidade. Funciona como se eles estivessem puxando a corda desesperadamente para o outro lado, numa tentativa de diminuir o fogo [suspeito que não dá mais].
Não é também coincidência que o principal ponto da agenda para a próxima eleição majoritária seja exatamente a segurança pública. Para comprovar isso, basta pensar que o único candidato, além de Lula, que emergiu do bolo intermediário nas pesquisas de opinião foi aquele, à extrema-direita, que se vende como o salvador da pátria em relação à violência urbana. Não deve ser visto como um movimento despretensioso, portanto, a intervenção militar no Rio [área de influência do tal candidato], e os recente elogios do atual ocupante da cadeira de presidente ao golpe de 1964. Foi uma maneira do ex-vice-presidente-golpista tentar vampirizar a agenda do falso messias, golpear o poder de persuasão do dito-cujo, e angariar capital político para si mesmo, já que sua aprovação está nos calcanhares.
A violência (urbana, rural, em ambientes mistos ou inclassificáveis) mexe diretamente com os afetos porque, primeiro e óbvio, tem a ver com a própria sobrevivência, a própria integridade física. A própria e a dos próximos. É comum ter vivido ou ser testemunha de crimes bizarros. Segundo, porque os números de violência das grandes cidades brasileiras são, comparativamente com cidades do Norte rico, inegavelmente assustadores. Terceiro, porque há uma repercussão imensa, uma reverberação fora do ordinário em diversos meios de comunicação. Há jornais e programas de TV exclusivamente dedicados ao assunto, em todo o território nacional. Isso além dos telejornais tradicionais explorarem o tema à exaustão, quase de maneira a nos anestesiar. Por consequência, os meios de comunicação tendem a aumentar cotidianamente a carga, sobrecarregando nossos órgãos receptores. Funciona. O medo é um combustível muito produtivo para a indústria da ansiedade. Maus afetos ainda são afetos.
Como, então, entrar numa pauta tão espinhosa, sem cair no discurso do recrudescimento - e ainda se fazendo ouvir? Como falar para quem está convivendo diariamente com violências de todas as formas, que é assoberbado de relatos tristes e vê uma banalização de tragédias, que não adianta matar o traficante? Que a violência só tende a aumentar com a liberação das armas? Que a pena de morte vai afetar principalmente criminosos de baixa voltagem, que não tiveram dinheiro para protelar seu julgamento? Que o problema não é a comercialização de drogas, já que há tráfico em todas as cidades do mundo, mas o arcabouço histórico-social - esse nosso barril de pólvora eterno - em que ele está inserido? E, por outro lado: que o policial é apenas uma peça - consciente, autônoma, mas ainda assim uma peça - dessa imensa engrenagem? Que nem o próprio policial quer ser militar? Que há sádicos nas forças, mas que esse comportamento reflete a mentalidade do lado de fora dos quartéis?
A violência é um nó górdio brasileiro, antigo, o mais antigo, talvez, que, acho, poucos estão capacitados para enfrentar. Espero que um destes se apresente para o trabalho, seja eleito e consiga exercer seu mandato até o fim.
Já aqueles que o odeiam abertamente não conseguiram disfarçar muito bem como estavam afetados: tentaram de todas as formas minimizar ou desdenhar do evento - numa tática tão banal que já foi imortalizada até em ditados populares. Apenas alguns poucos se disseram indiferentes, mas mesmo assim fizeram questão de se colocarem numa posição de racionalidade que beirava a superioridade, como se somente estes tivessem acesso a uma espécie de verdade anterior. Foi difícil passar incólume dessa semana.
Esse é um dos motivos pelos quais não se chega a qualquer conclusão tentando "convencer" racionalmente um sujeito do outro lado do espectro político que você. Seus argumentos são completamente inócuos para ele. Ele é afetado por motivos absolutamente diferentes dos seus. Ele enxerga a mesma cena de um ângulo totalmente outro. E se fecha para discursos que não confirmem o seu ponto, porque seus afetos estão direcionados muito concretamente para si próprio.
Outro motivo, derivado do primeiro, é o ressentimento [alô, Nietzsche!]: lutar contra o outro sempre coloca sua força numa espécie de inferioridade em relação a quem está dando as cartas. Em vez disso, se continuássemos a pensar junto com o bigode, o melhor seria se manter firme nos seus próprios projetos, reafirmando a própria potência, seguindo em frente, tentando aumentar o alcance do seu próprio poder, e deixar que esse poder seduza os demais, talvez, quem sabe, como uma lâmpada faz com insetos no verão.
[Numa História utópica, poderíamos pensar em territórios em que os afetos parecidos se encontrassem, numa materialização das bolhas de afinidades, e fôssemos obrigados a nos mover para lá e para cá, de acordo com o formato das nossas convicções. Assim, a cidade seria reorganizada, de acordo com as nossas opções políticas. Seria uma maneira de aceitar a fragmentação dessas megacidades, cada vez mais ingovernáveis. No fundo, portanto, estaríamos pensando apenas em uma guerra territorial: quem vai ter melhores benefícios, mais confortos, em suma, quem vai morar perto da praia.]
Voltando para a realidade em que devemos votar nas próximas eleições: considerando a alta carga emocional do momento, não me espanta que diversos candidatos estejam engrossando a voz para tentar gritar mais alto que o adversário. Uma das maneiras de aparecer mais é aumentar o volume. Lembrar de um determinado governador com gosto de chuchu que tentou apimentar seu discurso sugerindo que Lula era o culpado pelo atentado a si mesmo - e depois, percebendo que isso podia estragar sua postura de bom-moço cristão, mudou de opinião. Também não é de espantar que vários intelectuais que opinam sobre a política tentem resfriar o jogo, apelando para um ideal de racionalidade. Funciona como se eles estivessem puxando a corda desesperadamente para o outro lado, numa tentativa de diminuir o fogo [suspeito que não dá mais].
Não é também coincidência que o principal ponto da agenda para a próxima eleição majoritária seja exatamente a segurança pública. Para comprovar isso, basta pensar que o único candidato, além de Lula, que emergiu do bolo intermediário nas pesquisas de opinião foi aquele, à extrema-direita, que se vende como o salvador da pátria em relação à violência urbana. Não deve ser visto como um movimento despretensioso, portanto, a intervenção militar no Rio [área de influência do tal candidato], e os recente elogios do atual ocupante da cadeira de presidente ao golpe de 1964. Foi uma maneira do ex-vice-presidente-golpista tentar vampirizar a agenda do falso messias, golpear o poder de persuasão do dito-cujo, e angariar capital político para si mesmo, já que sua aprovação está nos calcanhares.
A violência (urbana, rural, em ambientes mistos ou inclassificáveis) mexe diretamente com os afetos porque, primeiro e óbvio, tem a ver com a própria sobrevivência, a própria integridade física. A própria e a dos próximos. É comum ter vivido ou ser testemunha de crimes bizarros. Segundo, porque os números de violência das grandes cidades brasileiras são, comparativamente com cidades do Norte rico, inegavelmente assustadores. Terceiro, porque há uma repercussão imensa, uma reverberação fora do ordinário em diversos meios de comunicação. Há jornais e programas de TV exclusivamente dedicados ao assunto, em todo o território nacional. Isso além dos telejornais tradicionais explorarem o tema à exaustão, quase de maneira a nos anestesiar. Por consequência, os meios de comunicação tendem a aumentar cotidianamente a carga, sobrecarregando nossos órgãos receptores. Funciona. O medo é um combustível muito produtivo para a indústria da ansiedade. Maus afetos ainda são afetos.
Como, então, entrar numa pauta tão espinhosa, sem cair no discurso do recrudescimento - e ainda se fazendo ouvir? Como falar para quem está convivendo diariamente com violências de todas as formas, que é assoberbado de relatos tristes e vê uma banalização de tragédias, que não adianta matar o traficante? Que a violência só tende a aumentar com a liberação das armas? Que a pena de morte vai afetar principalmente criminosos de baixa voltagem, que não tiveram dinheiro para protelar seu julgamento? Que o problema não é a comercialização de drogas, já que há tráfico em todas as cidades do mundo, mas o arcabouço histórico-social - esse nosso barril de pólvora eterno - em que ele está inserido? E, por outro lado: que o policial é apenas uma peça - consciente, autônoma, mas ainda assim uma peça - dessa imensa engrenagem? Que nem o próprio policial quer ser militar? Que há sádicos nas forças, mas que esse comportamento reflete a mentalidade do lado de fora dos quartéis?
A violência é um nó górdio brasileiro, antigo, o mais antigo, talvez, que, acho, poucos estão capacitados para enfrentar. Espero que um destes se apresente para o trabalho, seja eleito e consiga exercer seu mandato até o fim.
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