segunda-feira, 30 de dezembro de 2002

de maneira prática, muitos dos argumentos utilizados para influenciar alguém que não é acostumado a ler livros a fazer esse sacrifício são fracos quando não distantes de carga racional. diz-se que ao ler o livro o sujeito ganha em conhecimento, que pode vivenciar outras realidades, que se tornará uma pessoa culta.

o problema é que esse tipo de argumento ligado ao crescimento intelectual é deveras relativo, pois não existe nenhuma ligação direta entre a quantidade de livros lida e qualidade de informação depreendida. é bem provável, pode-se dizer sem sombra de muito erro, que pessoas consideradas cultas leiam bastante, mas não é raro, ainda mais hoje em dia, encontrar grandes pessoas com vasta cultura e raciocínio para lá de lógico que têm uma certa - como direi? - aversão aos livros.

não se pode fazer também uma escala de acordo com o número de livros lidos. como algo assim, sujeito leu 5 livros, logo ele é mais culto e inteligente do que aquele que leu apenas 4. existem muitas outras variáveis que intereferem de maneira direta nesse jogo para que seja resumido assim.

ou seja, de todos os argumentos, por mais que sejam de ótimas intenções, não convencem ninguém que não queira ser convencido. ainda mais se falarmos que vivemos numa geração em que, para prender a atenção dos espectadores, deve-se propor novas idéias e motivações a cada 4 segundos. a televisão, mtv, e propagandas em geral estão ai que não me fazem mentir. é uma estética em que nós, a garotada, não estamos acostumados. se não existir nada que fale a língua exata, a gente muda de canal. fácil como um zapping.

para citar um leitor dos mais gananciosos, se eu não estiver enganado (o que eu duvido), borges disse certa vez que há duas maneiras de reter conhecimento, através dos livros e vivendo o que os livros contam. mas, mesmo a frase definitiva do argentino é relativa. como poderemos afirmar que ele está certo, tirando o fato do escritor ser um dos homens mais inteligentes do século xx (pausa para dizer que o próprio conceito de inteligente é relativo, principalmente ao considerarmos o objeto de estudo que nunca teve uma família das tradicionais, com filhos e uma esposa que viveu durante anos etc etc etc)

o que me chamou a atenção no último final de semana, e é apenas um chute no escuro, é que, como já foi afirmado por diversos pensadores, dentre eles o divisor de águas da psicanálise carl jung, o humano só consegue produzir pouquíssimas variações de temas. ele - jung - chamou de arquétipos humanos. o próprio borges dizia-se um amontoado de referências, numa ligação direta com a falta de originalidade do mundo e dos humanos. porém, o escritor argentino também afirma ao longo de sua extensa obra que é impossível haver alguma cópia de qualquer coisa que seja. por mais que se fotocopie um documento, o final não será exatamente igual ao primeiro, pois estará em outro local no mesmo espaço de tempo, logo sendo outra coisa. um outro exemplo tátil é tentar copiar um arquivo ou pasta dentro do sistema windows. é impossível colocar o mesmo nome do primeiro, no máximo o chamará como cópia do arquivo original.

bem, com isso, para voltar ao tema inicial, basta entender que se o ser humano é finito nas suas invenções, e que poderemos conhecer todas essas variações sobre o mesmo tema, basta lermos sobre essas variações, que povoam a cabeça de todos os ficcionistas, e poderemos aprender em segunda-mão sobre o próprio ser-humano, assim sendo, vc mesmo.

é claro que para acreditar nisso tudo, deve-se ter fé em algo impalpável, como a teoria do jung dos arquétipos. quem me provará que ela é verdadeira senão eu mesmo? mas, com isso em mente, basta seguir um raciocínio lógico para chegar a uma conclusão óbvia, livros trazem conhecimento.

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li em mais de um jornal hoje que a ciência nada mais é do que uma religião disfarçada. acredita-se cegamente na razão. interessante isso.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2002

Não é novidade nenhuma que “a grande tendência” sempre se aproveita das inovações propostas pela juventude – ou qualquer outro grupo representativo – para transforma-la em moda, ou como melhor se encaixa, em modismo.

O processo é simples. Inova-se e espanta-se. Entende-se e assimila-se. Destrói-se o genuíno e se produz em série. Com bonecos numerados em tamanho natural.

O movimento rock, coitado, é um alvo da “grande tendência” desde que foi inventado. Era muita energia sendo canalizada para algo, digamos, improdutível, no conceitual medíocre da sociedade. Visivelmente alguém iria se aproveitar disso. Usemos o punk como estudo de caso, por estar mais à mão.

Foi criado a partir de uma tendência que se fazia necessária dentro de uma Londres atormentada por greves e problemas com as “reformas” trabalhistas propostas pelo partido conservador britânico. Pode-se até dizer que era uma onda que assolava o mundo inteiro à época, como se todos quisessem, ao mesmo tempo, dizer que não era bem assim que eles acreditavam que o mundo deveria seguir, que o “flower power” não tinha a energia que eles precisavam gastar, que simplesmente detestavam o estabilishment por ser estabilishment. Mas a essência do movimento, não é possível negar, foi fomentada por uma boutique que necessitava modificar o seu portfólio.

Vivemos numa ressaca que dura quase uma década à procura de um novo messias depois que o Nirvana acabou. Milhares de pseudo-Kurt Cobain se apresentam diariamente se oferecendo em sacrifício pela obra, uns menos outros mais interessados, mas todos pecam por um simples detalhe, excesso de desejo pelo resultado final.

Como se todos quisessem se transformar em mártires sem ter que passar pelas provas e privações a que todos os mártires devem passar. Ou que querem colher os resultados sem antes plantar nada substantivo.

Alguns menos medíocres, mas apresentando resultados da mesma forma infrutíferos, tentam viver a mesma, exatamente a mesma vida que já foi de outro. Assim, além de não ter nada de genuíno, pecam pela falta de originalidade, que são duas coisas parecidas, mas diferentes.

O que torna espinhenta a luta pelo caminho é que, mais dia, menos dia, a “grande tendência” o alcançará. Como acontece com o lobo mau para as crianças, a “grande tendência” vai te pegar.

A “grande tendência” não inventa. Ela copia a invenção e massifica para o acesso de todos. E qualquer produto em série pode vir com erro de fabricação. E não podemos ligar para um procon da vida para reclamar se não gostarmos ou se percebemos que fomos enganados a cada cd que abrimos.

Vivemos num mundo de genuinidade falsa. Produz-se o novo em máquinas, seguindo padrões internacionais de segurança, de risco e perigo calculados. O verdadeiro genuíno é perigoso, mortífero e venenoso. É o limite, faz-se porque é necessário. A inovação é assumir riscos desnecessários, apenas pelo prazer.

Talvez, e isso é que é o mais interessante, o próximo genuíno venha de outra fonte. Como o Dapieve disse há mais de um ano atrás, “o rock morreu”. Kurt Cobain só nos forneceu a data para colocarmos na lápide. Como acontecera com o jazz em era passadas, o rock se transforma num segmento para maduros.

O que não deixa de ser uma ironia do destino. O movimento que desde seu surgimento pregou para viver o máximo possível e morrer jovem (talvez para evitar a vergonha de se encontrar com sua obra inacabada e descobrir que não, você não mudou o mundo) será ministrado, daqui para frente, por senhores respeitosos, barrigudos e carecas, com suas roupas, cuidadosamente rasgadas e rebeldia perfeitamente ensaiada.

Já o genuíno, a invenção, o novo, o jovem, vem da eletrônica. E por mais que existam sinais que a “grande tendência” já sabe disso, ainda há terreno para manobras virgens. E como estamos falando da música eletrônica, o número de combinações é próximo do infinito.

A e-music é o exemplo perfeito para a contemporaneidade. É uma música de colagens, referências, sobreposições, e, principalmente, de tecnologia. Faz-se músicas com computadores e só com computadores. Os instrumentos, como o conhecemos, também morreram. Faz-se música da sua casa, onde quer que você more. Faz-se músicas sem saber fazer música. Basta o interesse e um programinha de computador que é possível baixar de sites especializados. Nunca o legado punk, do “do it yourself”, foi levado tão ao pé da letra.

Dentro da própria música eletrônica já nasce divisões, sub-divisões e tendências. Alguns defendem o retorno a uma eletrônica mais crua, sem uso excessivo de tantos recursos informáticos, outros apostam no experimentalismo com tudo o que puder ser usado, outros usam a mesma batida para produzir músicas parecidas, ainda há os que mesclam tudo isso num mesmo caldeirão, os que produzem músicas de outros gêneros só com recursos eletrônicos, os que misturam gêneros já conhecidos para produzir outra coisa, os que destroem os gêneros e as barreiras... Ou seja, tudo dentro dos conformes.

E se hoje inova-se, se assusta, amanhã se consolida, se acostuma, depois de amanhã, se repete, se assimila e se produz em série. Haverá os Lennons, os Mcartneys, os Sid Vicious, os Roger Waters, grupos, no caso, produtores e djs, do peso de Clash, ou The Smith, Led Zeppelin, movimentos que abalaram estruturas como Seattle, Woodstock, ou o próprio Punk. Nada da forma como estamos acostumados, tudo completamente diferente, mas com um gostinho de “já ouvi essa música antes. Onde é que foi mesmo?”

sexta-feira, 20 de dezembro de 2002

A arte de escrever crônicas deve-se muito da capacidade do cronista em conseguir tergiversar de maneira altamente agradável sobre a falta de assunto, muitas vezes visto com menos importância do que os ditos grandes assuntos da humanidade, como política, artes, relações interpessoais e, principalmente, etc.

Muitas vezes, o cronista, esse artista que consegue tirar água de pedra, sempre renegado a um segundo plano, faz um junção de um assunto dito popular para elucidar uma grande questão. Outras vezes não. Apenas esvazia a cabeça de uma pauta que martela durante semanas nos neurônios. Nessas horas, nós leitores, somos brindados com uma excepcional capacidade dos cronistas em narrar o nada, ou apenas o nada cotidiano de maneira a completar o espaço vazio. Já até ouvi de um cronista renomado que a maior musa dele era o papel em branco.

E lemos crônicas belíssimas sobre nenhum assunto específico, ou sobre o branco, ou sobre a necessidade de escrever uma crônica. Muitos cronistas sofrem de um complexo de culpa enorme, quando não utilizam os recursos dos ditos grandes assuntos. Outros são especialistas em dialogar sobre o nosso dia-a-dia.

Essa mea culpa serve de introdução para um assunto que me acompanha há alguns meses já. Como a tecnologia influencia a nossa comunicação. Não me refiro agora a uma mudança de modos de viver, e de trocar informações à distância, por mais que isso comprovadamente aconteça. Mas de uma transformação da nossa linguagem mesmo, do nosso modo de falar ao entrar no elevador, ao nos relacionar no trabalho, ao conversar no bar.

É fato mais que batido que a língua é um organismo vivo muito parecido com aqueles polvos de filmes de terror antigo os quais se alimentam de todas as formas de comunicação que seus tentáculos podem alcançar. O próprio português é uma maneira mais aberta de falar o espanhol, quase um castelhano do Porto, que por sua vez já foi uma mudança do original latim. E são incontáveis as palavras que adaptamos e utilizamos provenientes de outras línguas. De cabeça lembro algumas: bidê, garagem, garçom, arroz, souvenir e mais uma porção que se começasse a listar, o texto ficaria só com a palavras soltas.

Mas a influência da tecnologia é uma situação nova. Por mais que o processo seja o mesmo, do englobamento de palavras de idiomas estrangeiras pelo português, há uma modificação de certos comportamentos e de, principalmente, de alguns ditados populares. (aqui começa o caráter de “texto sobre o nada” que foi alertado no início).

Quando alguém dizia “Vingança é um prato que se come pelas beiradas”, referia-se ao fato de que, quando uma comida qualquer é colocada dentro de uma recipiente qualquer, o seu centro fica muito mais quente do que as beiradas. Logo, quem comia pelas beiradas é mais esperto, pois não queima a boca, e tem mais paciência por não pegar o centro (objetivo de todo mundo que se alimenta, logo todo mundo mesmo) no início. Para fechar o raciocínio, quem quisesse ser vingativo devia ter paciência e ser esperto, de outra forma se daria mal. Com o forno de microondas tudo se modificou.

Ao sair de dentro do forninho, o recipiente com a comida se torna difícil e carregar, tamanha é a quentura do prato. E para contrariar o ditado que aprendemos desde o nascimento, o centro é o lugar menos quente de todo o vasilhame. Se você não quiser queimar a boca, comece pelo centro, que bem provavelmente estará até um pouco gelado. O aconselhável é, na medida do possível para não transformar seu almoço ou janta num samba do crioulo doido, misturar as partes, meio e beiradas, para que assim, os seus calores se equivalham e você não queima a boca nem fique irritado com uma parte da sopa ainda gelada.

Ou seja, a “Vingança” não é mais um prato que se come pelas beiradas. Até pode ser “um prato que se come frio”, e isso é inegável, mas não pelas beiradas. Apenas nos casos que a comida é feita no fogão tradicional. Como quase ninguém tem mais tempo de fazer a comida da maneira “tradicional”, percebemos uma modificação da nossa linguagem através do uso da tecnologia.

Isso sem falar em termos que se não fosse a tecnologia, nós nunca iríamos saber que existem, download, atachar, deletar, (essas duas já aportuguesadas). E sobre a atual onda, ou moda, principalmente no mundo de “negócios” de usar o inglês para tudo. Nada contra, sou um grande usurpador da língua inglesa também, mas “downsizing”, “fyk” e “regards” para mim, já é demais. Nunca pensei em um limite para isso, mas que dever haver, em algum lugar que não sei onde é, deve haver.

Sério agora. Como todas as modas, essa tem as suas vantagens e suas desvantagens. A maior vantagem, a meu ver de preguiçoso, é precisar apenas aprender uma língua para poder se comunicar com todo o mundo. Como se tivessem “inventado” o esperanto.

As partes ruins mais visíveis são, sem ordem, por favor, que o inglês é a língua dos americanos e eles não precisavam de mais essa para se sentirem os donos do mundo. Já bastava bajularmos todos os dias quando falamos “internet”, “e-mail”, “inbox” para alimentarmos a prepotência dele. E a exclusão que a língua única implica. Quem não souber o inglês fará parte de um grupo a parte. (sem contar com a morte prematura das outras línguas. Ou a transformação em apenas dialetos sem a menor importância).

Mas, para demonstrar algum otimismo, e conhecimento das cousas que acontecem ao redor no mundo, me lembro de uma clássica cena do “blade runner”, do Ridlley Scott. Quando o Harrison Ford entra na loja do chinês que se comunica numa mistura de inglês, chinês e espanhol. Se o inglês influencia todas as outras línguas por ser a representante oficial do império, outras línguas infectam já, como vírus, o interior da célula-mater.

É visível que a intensa imigração dos chicanos para os eua constituiu uma comunidade completamente à parte daquela vista como perfeita pelos integrantes da wasp americana. Existem grupos inteiros de pessoas que já se comunicam em dialetos diferentes do inglês, numa corruptela do espanhol misturado à ginga dos negros do harlem (mesmo os que ficam há milhares de quilômetros do bairro novaiorquino).

E isso não acontece somente nos eua, mas em todo país que cresceu, teve colônias e agora quer fechar as portas para a onda de imigrantes dos países colonizados que tentam, ao voltar para o país-sede, um pedaço do quinhão a que, acham, tem direito. Como se fosse uma resposta irônica do destino. Como se dissessem, já que não posso competir com vocês, vou morar na casa de vocês para mostrar todos os dias o meu rosto diferente. Todas as vezes, quando vocês passarem por mim nas ruas, que eu estiver pedindo esmolas, limpando vidros, ou apenas vendendo quinquilharias nas esquinas, não se esqueçam que foram vocês que pediram isso.

Mas por que eu escrevia isso?

sábado, 14 de dezembro de 2002

Comédia da Vida Privada

Um pequeno preâmbulo primeiro: Quem dirá que o ano de 2002 não foi o ano dos documentários? Os motivos podem ser diversos – e eu aposto com mais entusiasmo na necessidade das pessoas de verem a vida real na tela, o que pode ser traduzido também pela moda de programas como shows da realidade na tv. Embora (é necessário admitir) seja difícil considerar qualquer tipo de filme um retrato completo da realidade, pela própria presença da câmera que inibe e ou força aos participantes à encenação. Deve-se lembrar, contudo, que o documentário tem como definição primordial “documentar” o que se passa em determinado assunto, logo retratar o real, o que nos faz voltar ao início. Mas chega de antropologia de botequim, vamos aos fatos.

Como é (ou deveria ser) sabido por todos, “Edifício Master”, do hors-concours Eduardo Coutinho, é uma colheita de depoimentos dentro de um prédio no bairro mais heterogêneo no Brasil, talvez: Copacabana. Por uma série de fatores (Copa já foi um bairro elegante há décadas atrás. Junto a isso, sofreu uma forte especulação imobiliária, que construiu espigões de quitinetes, e mais milhares de pequenos outros fatores que colocam Copa no meio do caminho entre a elite elegante do passado e a suburbanização total, no pior dos sentidos, que talvez só se salvou pela proximidade da praia e a distância do resto do mundo), só em Copacabana podemos encontrar um retrato médio fiel de quem somos nós. Nós que freqüentamos cinemas, que temos contas e mais contas para pagar, que suamos para fazermos um curso de inglês, que enviamos os filhos uma vez na vida para a Disney, que vamos à praia religiosamente aos domingos, que compomos a tal da classe média carioca e brasileira.

Foi como se o Coutinho tivesse substituído a tela de cinema por um imenso espelho e, ao entrarmos na sala de projeção víssemos nós mesmos, com nossos problemas de violência nas ruas, de emigração para os países ricos, ou com brigas em casamentos, medo da solidão, esperança em mudança de cidade para realizar algum sonho. São várias crônicas como as “Comédias da Vida Privada”, do Veríssimo, ou “Os Normais”, na tela, que fazem-nos rir por vermos nós mesmos ali em frente. Só que no caso do Coutinho, todas as histórias contadas são reais. Ou eles me enganaram direitinho.

O documentário é simples. Bastou colocar uma câmera em cima do ombro, fazer uma pesquisa anterior bem detalhada, e ter um entrevistador com voz de deus, como o próprio Eduardo Coutinho. Ao contrário do outro grande documentário do ano – “Bowling for Columbine”, do Michael Moore – “Edifício Master” é um filme simplista, de pequenas histórias, de gente comum. Mas, é ai que reside o seu maior mérito.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2002

O homem sem olfato

por Ronaldo Pelli







SEQÜÊNCIA UM – CENA UM – FARMÁCIA – INT/DIA



ANDRÉ entra numa farmácia com uma receita na mão. Um pouco depois dele, entra uma loira muito atraente. Há dois balconistas: um velho e barrigudo e um magricelo e alto chamado apenas de ZÉ na farmácia. André e a Loura chegam juntos no balcão, e André estica o braço para que um dos balconistas a pegasse. Os dois balconistas ignoram André e vão atender a loura. André observa a cena com uma expressão distante do que acontecia.



Balconista mais velho (para a loura) – Pois não?



André balança a receita.



Balconista mais velho (para o ZÉ) – Zé, atende o moço...



Zé (para o outro balconista) – Por que eu?



Balconista (para o Zé) – Porque EU vou atender a moça. (para a loura) Pois não?



Moça Loura – Vocês têm Ponstan?



Zé (para André, de maneira ríspida) – o que é?



André entrega o papel para o balconista que o atendeu.



Zé (olha desdenhando para o papel) – Tu tá com algum problema no nariz?



Zé (fala baixo por vergonha) – o médico disse que pode melhorar com os remédios... é horrível não sentir mais os cheiros...



No mesmo momento, a Loura sai do balcão agradecendo.



Loura – Obrigada.



Balconista mais velho (fala olhando para ela se afastando) – de nada, volte sempre. (Quando ela está longe) Nossa, que gostosa, você viu Zé?



Zé (para o balconista apontando para André) – e que cheiro. Esse aqui é que não sentiu nada...





SEQÜÊNCIA DOIS - CENA UM - QUARTO DE JOANA - INT/DIA



JOANA, vestida apenas com calcinha e sutiã e a toalha na cabeça, coloca um vestido preto curto na frente do corpo e se olha no espelho, enquanto segura um outro azul com a outra mão. Podemos ver no quarto de Joana algumas fotos antigas dela com André, dela com a família, de uma viagem que fizera para fora do país. Em cima da cama jogada, encontram-se algumas revistas de moda com dicas de cuidados com o corpo. Ela troca de vestido, olha para o preto e depois para o azul, olha para a cama, onde há um par de sandálias marrons, escolhe o azul.





SEQÜÊNCIA DOIS - CENA DOIS - QUARTO DE JOANA - INTERIOR / DIA



Joana dá os últimos retoques na maquiagem, com o rímel nos cílios. Acaba de passar, guarda o pincel e pega uma caixa de dentro do armário. Tira o perfume de dentro e pulveriza. Dá um sorriso para o espelho, limpa um dente sujo de batom e sai do quarto.





SEQÜÊNCIA DOIS - CENA TRÊS - SALA DE JOANA - INTERIOR / DIA



Joana atravessa a sala e antes de chegar à porta, a maçaneta vira e a porta se abre. MÁRCIA vestida com roupa de ginástica chega em casa. Márcia abre a porta, observa Joana e antes de fechar a porta, fala:



Márcia - Nossa! Aonde nós vamos hoje?



Joana (simpática, faz pose) - Estou bonita?



Márcia - Linda e (fecha os olhos) cheirosíssima. Que perfume é esse?



Joana - O André que me deu. Márcia,tenho que ir. Não me espere para jantar, vou encontrar o André num restaurante perto da casa dele. Nós vamos conversar.



Márcia - Conversar? Sei... Sabia que vocês acabariam voltando. Vocês foram feitos um para o outro.



Joana - Tomara. Tenho mesmo que ir. Depois a gente conversa melhor.



Márcia - Depois você me conta tudo o que aconteceu, ta?



Joana - Pode deixar que eu conto. O elevador chegou. Tchau, Márcia.



Joana sai de casa com pressa para pegar o elevador.



Márcia - Tchau, Joana.





SEQÜÊNCIA TRÊS – CENA UM – RUA PERTO DO RESTAURANTE – EXT/NOITE



Anoitece, André anda na rua, com as mãos nos bolsos, observando todo o movimento, e displicente com o chão que pisa. Observa na esquina da rua um quiosque que vende flores e artigos botânicos. André caminha um pouco mais devagar ao se aproximar do quiosque. Em frente ao quiosque, há cocô de cachorro. André, distraído, não repara. Pára de andar, pisando bem em cima do cocô de cachorro. Pega uma flor de um vermelho forte, esfrega os dedos nas pétalas e depois aproxima a mão do nariz. Decepcionado, balança a cabeça, olha para o relógio e arregala os olhos. Sai pela rua apressadamente.



SEQÜÊNCIA QUATRO - CENA UM - SALÃO DO RESTAURANTE - INT/NOITE



André entra correndo no restaurante. O restaurante não é caro, mas preza pelos serviços de qualidade. Joana tem uma cestinha com algum pão e duas garrafas de água vazias na sua frente, mas abre um sorriso quando o vê. Um garçom vem oferecer uma mesa para ele, mas ele dispensa e aponta para Joana, ela se encosta à cadeira com um sorriso. Ele se aproxima da mesa dela, abaixa, dá um beijo no seu rosto demorado.



André (fala em voz baixa por causa do atraso)- Oi.



No instante em que André se senta, Joana funga uma, duas vezes, sente um cheiro estranho, mas ignora.



Joana (com um sorriso)- Oi.



Ele se senta na frente dela.



André - Desculpe o atraso...



Joana (ainda com o sorriso) - Não faz mal...



André (se desculpando)- É que tive que passar no médico antes de vir para cá e me atrapalhei todo com isso...



Joana - Médico? O que houve?



André (envergonhado)- Nada não. Fui apenas pegar uns resultados de exame.



Joana - Mas, o que ele falou?



André - Nada, nada importante...



Garçom (pigarreia e interrompe) - Desculpe, mas você gostaria de beber algo?



André (olha para o garçom) - Um chope, por favor. (olha para Joana) Você quer também um chope?



Joana - Sim, claro.



André (olha para o garçom) - então, me vê dois chopes, por favor. (André se vira para Joana, e como se lembrasse, volta-se para o garçom) Sem colarinho, por favor.



Garçom - sim, senhor. Pode deixar.



Joana - Mas fala o que você tava falando.



André - O que eu tava falando?



Joana - Sobre o médico e tal...



André (envergonhado) - Ah, sim. Sei. Ah, não foi nada demais. Fiz uns exames e não deu nada importante. Só que eu...



No mesmo instante, Joana funga e sente novamente o cheiro ruim novamente. O garçom chega com os chopes e coloca na mesa.



André - Um brinde.



Joana - Um brinde.



André - A nós. A uma segunda chance.





SEQÜÊNCIA QUATRO - CENA DOIS - SALÃO DO RESTAURANTE - INT/NOITE



Na mesa onde estão sentados, há algumas tulipas vazias. André está com a mão levantada pedindo mais dois chopes para o garçom.



Joana - Eu vou ao banheiro.



André - Você se importa de eu pedir alguma coisa para beliscar?



Joana (sorri) - Claro que não.



Joana caminha para o banheiro e André a acompanha. O garçom chega com mais duas tulipas e coloca em cima da mesa. Funga duas vezes e disfarça. André está com o cardápio aberto.



André - Esse repolho recheado vem com uma porção caprichada?



Garçom - Sim, senhor.



André - Dá para nós dois?



Garçom - Vem num prato grande assim (e faz com as mãos o tamanho aproximado).



André - Então traz para a gente.



Garçom - Sim, senhor.





SEQÜÊNCIA QUATRO - CENA TRÊS - BANHEIRO DO RESTAURANTE - INT/NOITE



Joana se olha no espelho. Molha um pouco o rosto e seca com uma toalha de papel. Pega o batom para retocar. Cheira os próprios pulsos, uma, duas vezes.



Joana - E o puto nem reparou.



Sai do banheiro.



SEQÜÊNCIA QUATRO - CENA QUATRO - SALÃO DO RESTAURANTE - INTERIOR / NOITE



Joana se senta. André está com um prato de repolho com péssimo aspecto na sua frente.



André - Estava esperando você voltar para comer.



Ele corta um pedaço e coloca na boca. Começa a mastigar com vontade, depois diminui a velocidade.



Joana (com ar de repugnância) - Você pediu só repolho?



André com o repolho azedo na boca, não pode cuspir de volta e não consegue engolir. Joana fica olhando para ele esperando uma resposta. Ele pega a tulipa e vira um bom gole para limpar a boca.

Coloca o copo quase vazio de volta na mesa e com vergonha de ter comido o repolho azedo, fala:



André - Vamos pedir outra coisa.



Joana (pega o cardápio) - Olha, a batata-frita daqui vem com alho frito.



André percebe que o repolho não fez muito bem para ele. Coloca a mão esquerda no estômago e levanta a direita para chamar o garçom.



André - Você pode me ver essa (não se segura e solta um arroto, abafado pela mão direita que estava próxima, e olha para Joana), desculpa. Você pode me ver essa batata-frita com alho.



Joana sente o cheiro de azedo do arroto de André misturado com o cheiro ruim que já estava e se encosta à cadeira, com uma cara de nojo. Pega a bolsa e saca de dentro duas balas. Abre uma e coloca na boca.



Joana - Quer?



André - Não, obrigado.



Joana - Quer sim, pode querer.



André - Não, eu não gosto de balas.



Joana - Toma uma balinha...



Ela se levanta e tenta colocar a bala na boca dele. O pulso dela fica perto do nariz dele. Ele vira o rosto. Ela se senta. Fica um silêncio entre os dois. Ambos olhando para lado opostos no restaurante.



Joana - Poxa, você nem falou do perfume que eu estou usando...



André - Perfume?



Joana - É.



André - Sim. É que...



Joana (interrompe) - O perfume que você me deu.



André - Exatamente. Eu não queria dizer que era o perfume que eu tinha te dado. Porque, porque, porque poderia parecer que eu estava me gabando por saber qual o perfume que você está usando... Mas você está cheirosíssima (ele se levanta e cheira o pescoço dela), combina muito com você...



Joana - Você sentiu esse cheiro?



André - claro, o seu perfume. Ótimo perfume. É forte como você...



Joana - Não, o cheiro ruim.



André - Cheiro ruim?



Joana - Isso, o cheiro ruim. Você não sentiu não?



André - Eu só senti o seu cheiro que é maravilhoso...



Joana - Foi quando você chegou perto de mim.



André - Quando eu cheguei perto de você?



Joana - Vem cá. (ela se levanta para cheirar o pescoço dele, depois se senta em seguida) Não, o cheiro não vem de você, mas é mais forte quando você está mais próximo.



André (com um sorriso meio nervoso) - Eu tomei banho de tarde, antes de ir ao médico...



Joana - Que estranho, parece co...



O garçom chega com a batata e coloca na mesa e ela não completa a frase. Ele pega um palito de batata cheio de alho e coloca na boca. Logo que o alho chega no estômago, se sente mal e vai para o banheiro correndo. Joana começa a comer a batata e observa André correndo para o banheiro.





SEQÜÊNCIA QUATRO - CENA QUATRO - BANHEIRO DO RESTAURANTE - INT/NOITE



André entra no banheiro direto para o sanitário, que estava ocupado. Olha para o outro lado, tem o mictório de alumínio, cheio de gelo e limão. Abaixa a cabeça para tentar vomitar e nada. A porta do sanitário se abre e sai um senhor que olha para o André de cabeça baixa no mictório. Ele se levanta e finge estar fechando a braguilha. Quando o homem sai do banheiro, André entra no sanitário.

Ajoelha-se no chão e olha para a água do sanitário. Não consegue vomitar. Tenta aspirar o ar dali para se enjoar ainda mais, mas, obviamente, não sente cheiro nenhum. Fica um tempo parado, mas se levanta e sai do sanitário sem conseguir vomitar. Vai para a pia, abre a água, fica se olhando no espelho e sente a barriga fazer barulho. Não passa bem. Acaba de lavar as mãos, pega um papel para secar e percebe que a barriga faz mais barulho. Se concentra e solta alguns gases. Sai do banheiro em seguida.



SEQÜÊNCIA QUATRO - CENA QUATRO - SALÃO DO RESTAURANTE - INTERIOR / NOITE



Ele passa por ela, se abaixa e dá um beijo na sua bochecha. Ela sente um cheiro ruim na hora, tenta se desvencilhar dele.



Joana - Nossa! Que cheiro ruim é esse?



Ele fica em pé, ao lado dela, meio surpreso.



Joana - Não é possível que você tenha feito isso na minha frente?



André - Feito o quê?



Joana (indignada) - Esse fedor! Você tem soltado desde que chegamos aqui, não é?



André (se sentando) - Não. Foi só agora que...



Joana - Desde que você chegou, eu senti esse cheiro horrível...



André - Mas, foi só...



Joana - Você realmente não muda. E, eu que pensei (como se estivesse conversando consigo mesma) “Joana, você tem que dar uma chance para ele...”.



André (em tom baixo) - Foi a comida...



Joana (já sem escutar o que ele falava) - Mas você não muda, né André? (se levanta) Você continua o mesmo. Logo hoje, logo hoje, você tinha que fazer isso?



André - Mas, mas...



Joana se encaminha para a porta, André se levanta e a acompanha com os olhos apenas.



André (grita de onde estava para a porta) - Ah, vai dizer então que você nunca peidou?



Joana (parada na porta de saída se vira e responde meio assustada)-Eu posso até ter (baixa o tom de voz, olha rapidamente para um lado e para o outro) peidado. (volta o tom normal) Mas, eu sempre fiz isso num lugar mais, mais, mais (procura a palavra) privado.



Joana sai do restaurante batendo a porta, André se senta na cadeira. Algumas pessoas nas mesas próximas olham para ele. Ele abaixa um pouco na cadeira e pede a conta ao garçom que também olhava para ele. Não demora muito e o garçom traz a conta para ele.



André - É... Posso te fazer uma pergunta?



Garçom - Sim, claro.



André - Eu estou fedendo mesmo?



O garçom se aproxima um pouco dele.



Garçom - Sim, senhor.



André deixa algumas notas em cima da mesa.



André (bate no ombro do garçom de saída) - obrigado, hein.



E sai do restaurante, escutando algumas risadas das pessoas do restaurante.



Na porta, do lado de fora, ele olha para a sola de sapato e vê que está suja. Começa a andar e pensa em voz alta.



André - Eu tenho que escolher melhor onde piso.

sexta-feira, 29 de novembro de 2002

Ele me esticou uma garrafa de água e por um momento esteve na frente do sol. Quando se mexeu, coloquei um braço na altura do rosto para me proteger da claridade, mas continuei no mesmo lugar. “Você não quer deitar lá dentro, não?”, me sentei e olhei para o lado onde ele estava. Luiz segurava o timão dentro da cabine com os seus óculos e um cigarro que queimava. Me levantei e percebi que só havia mar por todos os lados. Estávamos longe da costa de Nova Esperança e de qualquer costa. Andei na direção dele, “Onde nós estamos?”, “Queria navegar um pouco, mas saímos tão cedo que achei que não deveria te acordar”, “Mas eu tenho que trabalhar hoje...”, “Não se preocupe, voltaremos com tempo suficiente para você ir no New Hope”, “Mas...”, “Aproveita e pega para mim gelo lá embaixo. Tenho um uísque muito bom, mas sem gelo, nesse calor, não passa na garganta”. Fiquei parado, olhando para ele, do lado de fora da cabine, ele nos dirigindo para algum lugar qualquer. Decidi, então, pegar o gelo, já que não mudaria nada. “Onde está o uísque?”, perguntei ao voltar. “Ali”, e me apontou um pequeno conjunto de garrafas que ficava debaixo de uma mesa. Apanhei uma a uma, todas escocesas, duas estavam vazias, duas cheias e uma pela metade, “Essa foi a de ontem”, ele me olhava e apontava para a garrafa na minha mão, “Vamos acabar com ela”.

O barco parou de repente. “O que foi?”, perguntei, ele desligou o motor, saiu da cabine, jogou uma escada de cordas para fora do barco, “Eu gosto de parar no meio do nada. Parece que sou o primeiro homem em todos os tempos a pular nesse exato lugar”, tirou a camisa, a bermuda e pulou de sunga na água. Nadou um pouco no meio das ondas, parou e virou-se para mim, “Cara, faz um favor para mim”, eu me aproximei da borda do barco, “Você está vendo uma alavanca no popa?”, confirmei com a cabeça, “Vê se você consegue solta-la para colocar a âncora. Eu me esqueci de fazer isso”. Eu, meio cambaleante, me dirigi para lá, “Depois pula na água. Está maravilhosa”.

Ficamos pouco tempo nadando porque a fome apertou e decidimos ver se havia algo para comer. Comemos, bebemos, tomamos um banho e decidimos que já era hora de voltar. “Onde você mora?”, perguntei para o Luiz, “Aqui”, e não se moveu. “Por que você andava sozinho no píer ontem?”, foi a vez dele de argüir. Olhei para ele, com o meu copo de uísque e gelo na mão, balançava, balançava, “Há quanto tempo você está aqui?”, ele recuou um pouco, eu olhei para ele, o cara que havia me resumido sua vida no dia anterior, provavelmente nunca mais iria encontrar com ele novamente, o cara que morava no meio do oceano, que esbarrei sem querer, por coincidência, “Menos de uma semana”, “A sua vida deve ter mudado muito, depois que você veio para cá, não?”, olhei lá para fora e confirmei, ele se aproximou, tocou com a mão no meu joelho e disse em tom fraternal, “Acontece com todo mundo”. Ele se levantou, e foi para a cabine. Ficamos em silêncio por um longo trecho até avistarmos a costa. “Carlos, eu gostei de você”, eu, que olhava para fora do barco, para o pôr-do-sol, voltei para ele, “Eu tenho um colírio aqui”, e se virou para mexer na sua bolsa. Eu fiquei pensando se tinha escutado direito. Colírio, será isso que ele dissera?, “Quase ninguém em New Hope conhece esse colírio. Acho que você vai gostar...”, sim, ele dissera colírio. Mas, por que eu iria gostar de um colírio?, “Aqui”, ele tirou de uma bolsa um frasco comum, azul, igual ao que podemos comprar em qualquer farmácia, “Me parece comum”, Ele deu uma meia risada, “Ele pode ser qualquer coisa, menos um colírio comum”, levantou a cabeça e pingou uma gota em cada olho, “Tome”, e me ofereceu, “O que isso faz?”, “Bem, você gosta desse pôr-do-sol, você acha esse pôr-do-sol bonito?”, olhei para fora, o céu estava avermelhado, o mar escuro e parado, nenhum ar circulava, ele se aproximou de mim, “Você acha isso bonito?”, acenei com a cabeça, ele disse com uma voz grave e baixa, “Isso pode tornar essas cores, essa vista, esse pôr-do-sol eterno”, olhei para ele rapidamente, ele segurava o colírio na mão, “Basta pingar um gota em cada glóbulo e escolher uma vista, qualquer coisa”, me estendeu o colírio, “Tome”, peguei o colírio, olhei para o teto e pinguei uma gota em cada. Abaixei a cabeça direto para o sol que sumia, “Nada, não aconteceu nada”, ele arrastava uma cadeira para a beira do barco que navegava vagarosamente em direção ao porto,“Calma”.

O laranja do sol se quebrou em azul escuro, azul tempestade, azul marinho, vermelho sangue, néon, rosa pálido, amarelo claro, amarelo giz, laranja escuro, claro, o mar verde abacate, oliva, fosco, marciano, azul pastel, bebê, marinho, elétrico, amarelo pálido, vermelho sangue, o barco branco, creme, amarelo banana, oliva, vermelho verdadeiro me olhei, minha pele vermelha tijolo, rosa-tropical, amarelo pálido, areia, pêssego, salmão, laranja outono, com traços violetas que andavam, minhas roupas tinham cores que se misturavam a medida que me mexia, olhei para o Luiz, ele parecia ter sido pintado em aquarela, com pinceis largos, que borram, “O que é isso?”, eu disse um pouco assustado, “Calma, Carlos. Sente-se aqui, ao meu lado, e aproveite esse pôr-do-sol único, que você nunca mais vai encontrar um igual”. Fui para a beira do barco olhar a água que batia no casco, e se misturava, como se escorresse um pedaço do barco junto, e descesse na maré, levantei a cabeça e eu podia perceber o sol pegando fogo, queimando, escutava os estalos das chamas, não sentia o calor, mas podia ver o sol ardendo. Percebi uma brisa do mar, bem de leve, fechei meus olhos e senti uma sensação agradável de conforto, como se a brisa me envolvesse num abraço, um abraço úmido e delicado. Olhei para o Luiz, um borrão de tintas sentado, virado para o sol, “Luiz, eu posso ver o sol pegando fogo”, “É sensacional, não é?”, “Olha o mar, cara, olha o mar”, cada onda parecia uma mistura de várias cores que eu podia perceber cada detalhe, cada nuance, cada pigmento. Me deu vontade de rir de felicidade por poder enxergar cada pedaço das coisas em detalhe, como se eu quebrasse a onda de cor e enxergasse mais cores que o normal. Fiquei olhando para o sol que entrava no mar, e comecei a reparar no barulho do mar que batia no barco, um barulho ritmado, como se pudesse entender cada entrelinha, como se eu tivesse o código para desvendar os detalhes. Olhei para o píer que se aproximava, os barcos subiam e desciam ritmados, todos pintados a mão em detalhes por pinceis de pontas largas, cada barco com cores diferentes. A Ponta do Diabo com seus letreiros luminosos apagados, as suas casas com a mesma arquitetura, dava para enxergar um pedaço da rua principal. A praia de Nova Esperança com pontos que eram pessoas, que se moviam vagarosamente, entravam no mar, misturavam suas cores com as do mar, os quiosques marrom, marrom avermelhados, cor de noz, areia, a areia que brilhava com as primeiras luzes acesas da praia, o sol agora que já foi, já tinha sido abduzido pela água, tinha sumido, eu queria rir, gargalhar, nunca fui tão lúcido quanto naquele momento, eu queria que nunca acabasse, poderia viver a minha vida inteira assim, enxergando mais que todo mundo, olhei para o Luiz, ele havia se levantado, guardado a cadeira e ido para a proa. Estávamos bem perto do píer e o marinheiro aguardava a corda. Andei na direção dele, a cada passo sentia o piso duro da madeira de encontro com o meu sapato, que passava a pressão para o meu pé, olhei para o meu pé, que sustentava o meu corpo inteiro, a minha perna que segurava tudo, olhei para frente, o Luiz, “Luiz, quando é que isso acaba?”, ele me olhou, riu um pouco, os dentes apareceram, a mancha amarelo-areia-branco-creme saiu da boca e foi até a testa dele que tinha punhados de cores misturadas como se dançassem, “Aguarde um pouco que tudo volta ao normal”, “Luiz, você está sem rosto”, “Você também, cara, você também”. Luiz jogou a corda para o marinheiro que não pude enxergar o rosto, uma mistura de marrom, cinza, preto, azul, creme, com o uniforme creme, com muitos detalhes, tanta informação, tantas cores, tantos detalhes que não pude guardar nenhum deles. Todas as coisas tinham detalhes demais, cores demais, comecei a reparar apenas em algumas, saímos do barco pela prancha que ligava ao píer, “Consegue chegar lá?”, Luiz me perguntou com uma voz altíssima, parecia que gritava, “Acho que sim”. Ele estava virado para mim, pude perceber os dois olhos em cima de mim, o nariz estava ali, era como se ele tivesse ficado gasoso, mas estivesse condensando, dava para reconhecer a boca, “Eu acho que vou dar uma passada no New Hope”, e me esticou a mão, avistei a mão e os dedos que se mexiam na horizontal, contei um, dois, três, cinco dedos, apertei sua mão, “Será uma honra”, a minha voz saiu tremida, ondulada. Me virei e andei na direção do New Hope, olhava para o chão de paralelepípedo que parecia muito próximo a mim, eu andava num andar mais alto que os outros. Havia poucas pessoas na rua, dei uma corrida para chegar no New Hope, mas ele parecia se distanciar, corria e não saia do lugar, até que tropecei e cai com as mãos no chão. Senti uma dor aguda de corte, olhei para a palma da minha mão, consegui perceber as linhas da vida, do amor, de dinheiro e um arranhado em ambas, olhei para frente, a porta do New Hope. Fui direto para a minha sala sem falar com ninguém.

terça-feira, 26 de novembro de 2002

Nova esperança



1



“Como todas as novas cidades planejadas, Nova Esperança não tem problemas. Não é necessário se preocupar com nada. Tudo já foi pensado para deixar qualquer um se sentindo em casa. As ruas são limpas, seguras, infinitas. Olhe essa foto”, e colocou um papel na minha frente, “As pessoas são belas, felizes. Aonde você vai encontrar um povo tão bonito assim?”.



Não acreditava no que aquele homem dizia. Um velho barrigudo, meio careca, óculos pendurados no nariz, camisa um pouco aberta, “Aqui, qualquer um pode ter o que sempre sonhou: carros, casa, paz”, aproximou-se pela primeira vez de mim e continuou, “somos uma cidade próspera e de gente muito honesta”. Encostou-se na cadeira e cruzou as mãos acima da barriga. Ele olhava para mim como um político olha para os seus eleitores.

“Você acredita que os sonhos podem ser realizados?”. O homem era uma espécie de secretário municipal de Orçamento, pelo que pude entender. Ele autorizava a entrada de todo tipo de material na cidade, controlava as compras e dívidas da cidade. Não tinha entendido muito bem o porquê de eu ir ter falado com ele. Levantou-se e perguntou se eu estava com calor. “Essa cidade foi construída para dar prazer às pessoas”, ele me disse logo no início, aos sentar-se novamente.



O prédio da administração da cidade fica nos limites da estrada que liga à Montana, a única cidade que faz divisa com Nova Esperança. Eu tinha marcado hora para chegar, agendado a entrevista com uma secretária que tinha uma voz bastante sensual. Ela me disse para não me atrasar. Achei estranho o lembrete. O atraso é quase uma instituição nacional.



Com as mãos em cima da própria barriga, encostado na cadeira de maneira bem relaxada, ele recitava um sermão, “A cidade tenta ficar isolada do mundo, dos problemas do mundo. Nós tentamos evitar todos os entraves que afligem as cidades que você conhece”, deu uma pausa, aproximou-se de mim e perguntou com uma voz extremamente calma e baixa, “você sabe que aqui não há desemprego. Todos aqui trabalham, e foi por isso você veio até aqui”, apontava o dedo para mim, o que me obrigava a confirmar tudo com um aceno de cabeça. “Aqui nós acomodamos as pessoas da melhor forma que há”, abriu uma gaveta e pegou um caderno com fotos e me entregou, “moradias próximas do trabalho ou aonde você quiser”. Levantou a voz como num discurso oficial, “O importante é a qualidade de vida”. Olhou diretamente para mim e disse quase como se confessasse algo, “por exemplo: o que você queria ser quando era pequeno?”.

O que queria ser quando pequeno? Me assustei com a mudança repentina do assunto. Não me lembrava o que queria ser quando criança. Talvez piloto de avião, talvez policial, talvez qualquer coisa que envolvesse ação. Hoje, nada disso. Quero apenas distância da confusão que existe no mundo. “Não me lembro direito, mas queria ter alguma coisa minha”, menti. “Hum, entendo. Dono do próprio estabelecimento, não se reportar a ninguém, não ter patrão, liberdade, essas coisas, não é? Muitas pessoas procuram por isso quando vem para cá. Querem mudar suas vidas. Juntam umas economias e tentam uma vida nova aqui”. Colocou os óculos no lugar. “Você sabe que a minha responsabilidade é dar passagem para o que entra e o que sai, não sabe?”.



2



Quando entrei no prédio grandioso, fiquei um pouco assustado. Parecia de um outro país. O prédio tinha uns dez, doze andares, de vidros escuros, longos corredores acarpetados com janelas enormes. Na frente, um belo jardim de grama chinesa e segurança reforçada. Me identifiquei para a recepcionista que conferiu meu nome e apontou o caminho que deveria tomar. Tudo no horário.



O homem barrigudo pareceu na porta de sua sala apenas, imaginei, com o intuito de dar um ar de informalidade ao ambiente. Ele destoava daquele ar incólume, como se ele fosse conhecido, como se já o tivesse visto. “O meu trabalho é fazer a contabilidade da cidade. Eu sei o que entra e o que sai”. As palavras dele eram pausadas, sem pressa. Ele pronunciava todas as sílabas e esperava que reverberassem. Falava e pausava e passava a mão no rosto, como um cacoete. Me encostei na cadeira, ele continuava no seu sermão, “Tentamos fazer com que nada aqui sobre ou falte. O pior mal da humanidade é o desperdício, e você sabe disso, não sabe?”, eu apenas assenti com a cabeça na tentativa de encurtar o que ele falava. “Tentamos que não haja excessos e também que não haja falta. Tudo aqui é planejado. E tudo passa pela minha mão. Se entrar algo de mais, ou faltar qualquer coisa, eu sou o culpado”. Ele abriu um sorriso. “Você sabe que Nova Esperança é um conceito pioneiro em desenvolvimento sustentável, e eu não gosto de me sentir culpado quando alguma coisa dá errada aqui”.



O primeiro anúncio do jornal que vi, dizia apenas, Um recomeço, Uma nova vida, Uma Nova Esperança. Tinha uma foto de uma praia de areias brancas e águas claras. O texto embaixo da foto dizia que não era necessário ir tão longe para fugir dos problemas da cidade grande, e explicava que a apenas duas horas de carro do turbilhão da cidade grande, havia Nova Esperança. No outro dia, mais um anúncio, dessa vez explicitava, além do slogan, Esqueça tudo o que você conhece em matéria de conforto, esqueça tudo em matéria de comodidade, Nova Esperança aponta para o futuro. E não havia nada que explicasse direito, apenas uma foto de um grande hotel. Parecia uma cidade de veraneio. No terceiro dia, encontrei um pequeno mapa que mostrava como chegar na cidade. Vinha com o tradicional slogan e o mapa apenas. Ficava para o norte do estado, tinha apenas uma estrada que chegava lá, uma espécie de highway, uma única ligação com o resto do mundo. A única coisa que identificava os anúncios era o slogan. Fora isso, toda a estética mudava de dia para dia. Eram anúncios pequenos, vinham em partes distintas do jornal e eram muito discretos. Recortei e liguei para o número dado. Disseram que eu poderia marcar um horário para uma entrevista. E foi exatamente o que fiz.



Os óculos caíram pelo nariz do barrigudo novamente. “E você, posso perceber, é um cara de sorte”. Esperou que a frase fizesse efeito. O que ele queria dizer com isso? “Há algumas semanas, morreu o seu Castro. Morreu de velho, como quase todo mundo aqui em Nova Esperança. Quem não conheceu o querido Henrique Castro? Um dos primeiros habitantes da cidade. Um dos que mais tempo viveram aqui”. Olhou para mim, encostado na poltrona. “Um senhor de reputação intocável. Um homem que era um exemplo para todas as gerações”. Parou novamente e olhou fixamente para mim. “E você sabe o que o seu Castro fazia aqui?”. Eu balancei a cabeça. Ele colocou os cotovelos em cima da mesa, “Ele era dono do melhor bar aqui de Nova Esperança”.



Não pude conter o entusiasmo e abri um sorriso. Tentei disfarçar, mas ele percebeu. “Você sabe que uma boa parte da renda de Nova Esperança provém de turismo. De um turismo de alto nível. O bar do seu Castro, o New Hope, foi o primeiro da cidade. É tradicionalíssimo. Algumas pessoas vinham para Nova Esperança só para encontrar a hospitalidade do Seu Castro e do New Hope. Vinham pessoas de todos os lugares, até gringos”. Reparei na sua camisa aberta com um pequeno cordão e crucifixo que despencava pelo peito com poucos fios de cabelo. “Alguns funcionários estão tocando o negócio nessas semanas, mas, você sabe, não foram feitos para isso”. Parou, respirou um pouco, “Você quer alguma coisa?”. Não queria, mas aceitei água. Ele ligou para a secretária e pediu uma água e um café duplo para ele. “Talvez por isso que Nova Esperança seja tão boa. Todos aqui sabem para o que foram feitos. Ninguém quer ser diferente do que é”.



A água e o café chegaram. A secretária era uma loira muito alta de cabelos lisos que andava como num desfile em cima do sapato-alto. Não pude deixar de acompanhar todo o trajeto dela. Ela sorriu e perguntou, “Mais alguma coisa, seu Nogueira?”. Ele olhou para ela e respondeu grosseiramente, “Pode sair, se quiser, te chamo, não se preocupe”. Observei toda a cena e fiquei um pouco intrigado. Ele me ignorou completamente.



“O que eu quero dizer, sendo direto, você me permite ser direto?”, eu consenti com a cabeça e ele continuou, “O que eu quero dizer é que o senhor é um homem de muita sorte”. E parou para olhar para mim e perceber alguma reação. Eu abri os olhos, percebi minhas mãos com suor, “Nós temos uma vaga para o senhor”. Sorri. Entrelacei meus dedos apoiando meus braços sobre os da cadeira. “E, sabe como somos, tentamos sempre fazer o que o nosso cidadão quer”, ele sempre pontuava a sua frase de maneira exemplar. Pegou um lenço e passou na testa. “O senhor quer ter uma casa aqui, em Nova Esperança, não é”, e antes de responder ele continuou, “Podemos arranjar uma ótima casa para você. Podemos arranjar a melhor das casas. E você ainda trabalhará no que você quer”. Ele se levantou e falou lentamente, vindo na minha direção, “Nós sempre damos um jeito em tudo. O importante, para nós, é que você esteja satisfeito”, deu umas palmadas no meu ombro, “Você gostaria de ter um bar, o melhor bar de Nova Esperança, onde você fosse conhecido por todos, faria amigos, teria uma função importante na sociedade?”. “Sim”, disse timidamente, “Não se importe com nada agora. Daremos um jeito em tudo. E sairá menos do que você imagina”. Balancei a cabeça em sinal de dúvida. Pensei em um valor, mas fiquei quieto. Não queria propor nada. Ele sorriu, deu mais uns tapas no meu ombro, “Faço todo o pacote, para você, a casa mais o bar por apenas 750”. Eu sorri ironicamente. “E, então, satisfeito?”, não dá para fazer um preço mais camarada, perguntei para ele. “Pelo que Nova Esperança fornece para seus moradores, aqui você nunca precisará pagar por médicos, caso você venha a ter filhos, eles nunca pagarão colégio”, pausou, olhou para os meus olhos, “Caso você queira, você terá direito a um empréstimo a juros baixíssimos no banco da cidade, apenas por ser morador”. Fiquei em silêncio, ele deu um pequeno sorriso de negociante, “E, então, ficou satisfeito?”.



3



Eu queria muito sair do meu cotidiano. Queria fugir da vida que levava. Pedi alguns dias para pensar na proposta. Ele me disse que não poderia segurar tal proposta para mim, nem quem quer que fosse. Sabia que era aquilo que eu queria. Eu deveria pagar a primeira parcela agora, ele me daria um recibo que serviria como troca no dia em que eu viesse pegar as chaves e toda a papelada. Olhei para ele em silêncio, ele soube esperar como se minasse minha resistência apenas com os olhos, toda a mudança, toda a tranqüilidade, todo o poder que eu teria preenchia os meus pensamentos. Até que concordei. Ele sentou na minha frente e olhava para mim enquanto preenchia o cheque. “Senhor Carlos Carvalho”, ele disse, “só lhe peço um pequeno favor”, novamente a pausa para olhar para o meu rosto curioso, “nunca diga nada a ninguém do que você conseguiu”, deu um pequeno sorriso satírico de canto de boca, “Você sabe como é a burocracia. Até aqui, eles impedem as pessoas de conseguirem as coisas que querem na hora que querem”, esperou um pouco, “Depois você vai dizer ‘o seu Nogueira me arrumou um negócio’. Nada disso. Nós nos arrumamos uma situação. Você e eu, digamos que assim. Nesse país, sabe como é não é, qualquer cidade nesse país tem dessas coisas. No final ganha todo mundo, ganho eu, ganha você e a cidade toda. Porque eu sei que você vai trabalhar bem pra ela, afinal não é todo dia que você pode ser dono de um bar tão legal, com as meninas simpáticas, com a música boa, com um o chope estupidamente gelado, que chope gelado”, exclamou num tom um pouco mais alto, “esse era o segredo do seu Castro, nunca se esqueça disso”. E parou novamente de falar. Com a demora, abaixei a cabeça para voltar a preencher o cheque. “Mas, me diga, é ou não é uma pechincha?”. Eu dei apenas um sorriso.



4



O meu carro percorria as ruas da cidade em duas semanas. Não tinham esquinas e as casas eram recuadas com jardins na frente. “Tudo perfeitinho”, me disse o Nogueira. Não há cruzamentos com sinais de trânsitos, não há atropelamentos, não há acidentes de carros, não há discussões nas ruas, “Todos aqui são civilizados”.



Existe o centro da cidade, onde fica o hospital, os colégios, o pequeno comércio, as igrejas. A praça central, os bancos da praça, o jardinzinho da praça. Parecia realmente seguro, “tudo perfeitinho”. Existe um lado comercial e residencial e outro da parte de turismo. Meu bar fica do lado turístico, mas, mesmo assim, apenas 20 minutos de carro da minha casa. Vou morar na Rua 4d Oeste. Isso quer dizer que eu morarei a quatro quadras na horizontal e 4 quadras na vertical de distância do centro comercial da cidade. Nova Esperança é dividida por um meridiano. As duas metades são completamente simétricas. O centro de tudo é a igreja, a linha imaginária a dividia ao meio.



Antes de entrar na minha rua, parei num cruzamento e deixei uma senhora passar com o seu poodle pela minha frente. Atrás dela tinham duas meninas lindas, que aparentavam no máximo 17 anos, de saias Jeans e bolsa jogada pelo corpo.



A garagem ficava ao lado da minha casa. Para o carro não estragar a grama, ela foi calçada com pedra São Tomé. Tive que saltar do carro antes de entrar em casa, pois não me deram o controle do portão, mas a casa já estava toda mobiliada. A sala tem duas grandes janelas que permitem a entrada de toda claridade. Do lado direito da porta, ficava a cozinha e a copa. Em frente, a escada para o segundo andar. Depois da cozinha, havia uma porta que chegava na garagem.



Seu Nogueira, antes de eu sair da sala, me disse que se quisesse ou precisasse trocar de carro, poderia utilizar a concessionária local de carros, novos e usados, de todas as marcas e montadoras no centro da cidade, logo ao lado da igreja. Os donos fazem planos especiais para os moradores, porque recebem subsídios, dizia o panfleto, tanto das próprias montadoras quanto da prefeitura da cidade. Basta me identificar como morador para conseguir esses descontos.



Dizia o folheto, na parte de Aspectos Comportamentais, que há anos a população de Nova Esperança se mantém praticamente inalterada. Desde a sua fundação, ela só apresentou crescimentos acima dos 5%, duas vezes, nos dois primeiros anos de criação.



No segundo andar da minha casa ficavam os quartos. Eram quatro suítes. No andar de baixo ainda tem um escritório e uma pequena biblioteca onde encontrei livros de banca de jornal, nenhum outro autor. Achei o detalhe curioso. A minha casa nunca foi habitada, sou o seu primeiro morador, me disse o Nogueira. O que não deixa de ser inusitado. A cidade recicla tudo. Todo o lixo que é produzido aqui vai para uma usina, no limite do lado Leste. Na parte Leste fica o único supermercado da cidade. De resto são pequenas mercearias e lojas de conveniência.



Sai de casa para comer algo. No livro explicativo vinha uma relação de restaurantes com as devidas especialidades e os preços. E o nome de todos os donos com o endereço. Em Nova Esperança, o folheto afirmava, todo mundo se conhece pelo nome e sobrenome.



Entrei em uma lanchonete tipicamente americana. Sentei numa mesa do fundo e logo veio uma garçonete, em cima de patins, me atender. “Olá”, disse a pequena de franjinha ao me entregar o cardápio, “Você é novo aqui, posso perceber”. Como ela é esperta. “O que você vai querer, senhor... senhor, se o senhor preferir, nós personalizamos o seu pedido e todas as vezes que voltar aqui poderá pedir um especial com o seu nome. O que o senhor acha?” Uma coisa de cada vez. “Qual o nome do senhor?”, “Carlos”, “Carlos, que nome forte, Seu Carlos, qual será o seu pedido?”. O sorriso não saia do rosto dela. Parecia colado. Pedi um americano. “Completo?”. Sim, óbvio. Apenas balancei a cabeça. “Alguma coisa para beber?”, “Um suco”, “Alguma preferência?”, e o sorriso não saia. Quase plastificado. “Qualquer um”. “Qualquer um não tem”, e riu com a piada. “Me dê de graviola”, “Mais alguma coisa?”. Apenas neguei com a cabeça novamente. “O senhor gostaria de personalizar esse pedido agora? Temos disponíveis o carlos77, o Carlos 2000, e até o Solrac? Gostaria? Assim todas as vezes que viesse aqui Lanchonete do Parque poderia fazer o pedido com o seu nome. Gostaria?”, com os olhos lá fora, neguei sem abrir a boca. Ela bateu a caneta vermelha no bloco, “Não vai demorar nem cinco minutos” e saiu com um sorriso ainda maior do que quando ela chegou.



Olhava para o lado de fora da lanchonete, para a calçada. Passou uma senhora com uma menina de nove, dez anos no máximo, levando dois cachorros para passear. Do outro lado da rua, ficava a praça central, com a igreja e algumas mesas onde alguns bares servem na noite, imaginei. Agora, eles estavam fechados e vazios. Na altura da esquina, um senhor de terno e gravata atravessava a rua na faixa de pedestres seguido de dois jovens com mochilas imensas nas costas. Olhei para longe, depois das casas, das construções e vi alguns morros de pequena estatura. Não avistei nenhum prédio com mais do que quatro andares. Numa calçada do lado direito da igreja, distante de onde estava, vi uma menina de cabelos longos rebeldes e pretos. Ela caminhava de maneira diferente de todas as pessoas por ali. Olhava para o chão demais, parecia assustada, se apoiou no poste de luz antes de atravessar a rua. Acompanhava toda a progressão da menina quando a menina de franjinha sobre os patins me interrompeu com o meu americano em uma das mãos num prato, na outra, outro prato com alguns condimentos e guardanapos. “Bom apetite”, me disse e saiu com seu sorriso.

5 Ao sair da lanchonete, peguei o carro na direção do bar, do meu bar, do New Hope. Devia sair do Downtown e pegar uma pequena estrada que passa pela praia, a praia de Nova Esperança, e alcançar a área turística, chamada de Ponta do Diabo. Era um caminho muito estranho. Parece que estamos numa pequena serra onde de um lado vemos o morro com uma vegetação intocada, com fontes de água natural brotando e com cachoeiras. Do outro, vemos toda a praia, numa área que só tem pedras e o mar que bate. Nova Esperança fica no meio de dois morros, num vale onde pode se observar todo o oceano. A estrada era macia, quase hipnotizante. Com o mar no meu lado esquerdo e a mata no lado direito. O meu vidro estava baixo, o vento entrava com velocidade e eu apertava mais o acelerador. Coloquei o braço para fora para sentir o vento, o vento gelado e úmido que vinha do mar. Dirigia com apenas uma mão no volante e escutava “Summer Time”. O sol havia aparecido durante o dia, mas não foi o suficiente para esquentar. Agora, ele se punha, atrás do morro, eu pensei na hora. O céu de um azulado claro tornava a temperatura mais agradável. O som balançava “Summer time / an’ the livin’ is easy”, cem, cento e vinte quilômetros por hora, “Fish are jumping / and the catton is high”, uma curva fechada na minha frente, “Oh, yo’ daddy’s rich / an’ yo’ma is good looking”, o volante vira com ambas as mãos, “So Hush, little baby / don’ you cry”, uma reta enorme, no final o mar, acima o sol e o azul claro do céu, “One of these mornin’s you goin’ to rise up singin’”, sem as mãos no volante, abri os braços, “Then you’ll spread yo’ wings an’ you’ll take to the sky”, as cores que se misturam, o carro na velocidade da descida, “But till that mornin’”, o velocímetro aumenta, cento e trinta, cento e quarenta, “There’s a nothin’ can harm you”, cento e quarenta e cinco, cento e cinqüenta, o final da reta, “With daddy an’ mammy standin’ by”, faço a curva?, me pergunto, faço a curva?, vale a pena?, claro. Claro. Por que não vim para cá antes? A reta desembocava no final da serra. Depois tinha uma espécie de avenida beira-mar, onde, de um lado ficava a praia, com toda a sua extensão de areia, com os quiosques de palha, com os coqueiros que balançam com o vento, a praia vazia de um final de tarde de segunda-feira. E do outro, a lagoa que era a fonte de sustento para várias pessoas de Nova Esperança. Muita gente que se mudou para a cidade para viver da pesca apenas. As ondas batiam na areia e soprava alto o vapor da água para misturar com o céu já um pouco escuro. Começava a escurecer. Na minha frente já podia ver algumas luzes que se acendiam. Continuei acelerando para sentir melhor o vento que soprava do mar. Na entrada da Ponta do Diabo há um grande portal onde fica uma guarita com dois guardas. Na praia, pude contar cinco barcos, entre veleiros e lanchas, ancorados num mini píer. Tive que parar na entrada. Os policiais vestidos com uniformes castanhos claros e armados de pistolas automáticas e mini-metralhadoras pediram para que eu abaixasse os vidros. “Boa noite”, eu respondi baixo, “Você poderia mostrar a documentação, por favor?”, Peguei meu cartão de identificação provisório e entreguei para ele. “Ah, você é novo aqui. Seja bem-vindo. Meu nome é Tenente Satamini e o dele”, apontou para o companheiro, “é Cabo Marcondes”. “Posso perguntar o que faz aqui, numa segunda-feira?”, ele me perguntou num tom mais próximo da curiosidade do que da inquisição. Peguei o papel do meu bar e entreguei para ele. “Ah, o New Hope, o melhor bar daqui. Estamos ainda muito chocados pela morte do Seu Castro. Todos nós gostávamos muito dele”. E se virou para o companheiro, “Marcondes, este aqui é o novo dono do New Hope”, pude ver o guarda que estava na frente do meu carro abrir um sorriso e se aproximar da minha janela, “Seja bem-vindo, Senhor”, “Carlos”, disse o primeiro guarda, “Sim, seja bem-vindo, Senhor Carlos. Estamos aqui para manter tudo em ordem aqui” e saiu com um sorriso de satisfação. Nessa hora percebi já um farol atrás de mim e o policial ao meu lado balançou o braço para que eu entrasse na Ponta do Diabo, “Esperamos ver o senhor muitas vezes ainda, senhor Carlos”. Sorri de volta e passei pelo portal de entrada. As ruas da Ponta do Diabo eram estreitas e de paralelepípedo. Era proibido andar de carro por todo o lugar. Devíamos estacionar logo no início, numa área próxima a entrada e caminhar todo o trajeto. Coloquei minha carteira no bolso de trás e sai balançado o chaveiro que tinha as chaves para abrir o New Hope. As ruas estavam vazias. Nas segundas e terças, os estabelecimentos não abriam. Apenas alguns bares e restaurantes. Toda a arquitetura da cidade seguia a linha praiana, mas com bastante sofisticação. New Hope ficava na rua principal, que era logo a terceira após o estacionamento. Era uma espécie de bar com espaço para se dançar e para shows de pequeno porte. Cheguei na frente dele e olhei para o letreiro que estampava o nome, mas nada. Liguei as luzes e todas as cadeiras estavam viradas em cima das respectivas mesas. Tudo vazio e silencioso. Olhei para o bar, dezenas de garrafas enfileiradas. Voltei para trás, ao lado da entrada principal, o palco com três pedestais e uma bateria. Vi também dois mastros que iam até o teto numa espécie de pequenos palcos onde só caberiam uma pessoa por vez. Ao lado do bar, a escada para o segundo andar ao ar livre. Entrei no bar e olhei para todas as garrafas, uma a uma. Peguei uma de uísque importado e um copo que enchi com gelo. Subi para ver o varandão. Podia-se ver toda a praia de Nova Esperança, toda a estrada beira-mar, a pequena serra e, lá no alto, a curva que desemboca na reta final da estrada de Nova Esperança. Levantei o copo na minha frente e olhei para ele por uns instantes. Não pensava no momento, mas um sorriso escapou no meu rosto. Virei de uma vez só todo a bebida. 6 Só quando voltei para a casa, já bem noite, é que entendi como a cidade era bonita. O Downtown ficava todo iluminado. As lojas enfeitavam as janelas, as portas, as calçadas. As casas pareciam num constante fim-de-ano. No Downtown havia alguns casais que andavam de mãos dadas nas calçadas na direção à praça central. Alguns paravam nas mesas da praça e pediam sorvete num dos únicos lugares abertos a essa hora. Dei a volta na rua e encontrei mais adolescentes sentados em grupos pequenos, debaixo de árvores, atrás das sombras, escondidos. Avistei um bar atrás da igreja onde algumas pessoas, na maioria homens, bebiam e conversavam nas mesas. Resolvi parar para tomar alguma coisa. Pedi uma mesa na parte de fora, para observar melhor a rua, e uma cerveja. “Você é novo aqui?”, disse o homem que me atendeu, com um sorriso no rosto. Olhei para ele um pouco intrigado e fiz que sim. “Seja bem vindo à nossa bela cidade”, ele dizia as palavras como se acreditasse friamente em cada uma delas. “Você não quer aproveitar a temperatura amena e pedir um vinho?”. Arregalei os olhos e acho que ele percebeu. “Ás vezes as pessoas aqui tomam vinhos. Temos ótimos vinhos. Você quer ver a nossa carta?”. O lugar parecia um boteco, mas tinha carta de vinhos. Olhei para os lados e percebi que havia, também, algumas mulheres que acompanhavam os homens. Parecia um bar de casais, com a exceção de um sujeito de cabelos grisalhos e barba por fazer visivelmente bêbado que falava alto no balcão. Os casais bebiam, na sua maioria, vinho. Apontei para um da mesa ao lado e pedi igual. O velho do balcão havia se virado e começado a cantar, “De noite, eu rondo a cidade / a te procurar /sem te encontrar”. Um dos garçons foi falar com ele, e ele continuava, “De noite eu rondo a cidade”, e repetia a mesma estrofe. Quando o garçom falou algo bem próximo ao velho, ele se levantou, tirou algumas notas amassadas do bolso, jogou em cima do balcão e saiu. Cantava e o som diminuía a medida que se distanciava. Eu olhava para ele quando chegou o meu vinho tinto que descobri, pelo nome, ser francês. “Belíssima escolha”, disse o garçom de cara branca e bigode preto. A temperatura havia caído bastante. Observei que todas os garotos na praça usavam casacos. Bebia e pensava que em plena segunda-feira havia muitas pessoas na rua. Lembrei que era temporada de férias escolares. O vinho era leve e desceu direto. Logo havia acabado uma garrafa. Pedi outra e procurei no bar se havia alguma mulher sozinha, mas não encontrei nenhuma. Senti a bexiga apertar e fui para o banheiro. Uma porta vai-e-vem, uma pia com espelho, um mictório de alumínio com gelo e limão e duas privadas compunham o visual do toalete masculino. Urinava quando escutei o som de alguém que fungava algo com força. Terminei ao mesmo tempo em que o homem que cheirava saía do privativo. Ele me olhou e deixei que ele fosse na minha frente para a pia. Ao se virar nossos olhos se cruzaram e percebi suas pupilas dilatadas e o nervosismo na fala, “O que foi?”. Abri a pia e lavei minhas mãos enquanto ele ainda me olhava e saia do banheiro. Voltei para a minha mesa e não precisei procurar o homem do banheiro para acha-lo. Era um sujeito que beirava os quarenta anos, meio careca, de bigode espesso e óculos, com uma mulher que aparentava a mesma idade. Eles bebiam uma garrafa de vinho, que estava mergulhada em um balde com gelo. Na mesa tinha um petisco, parecido com um biscoito, que eles comiam com uma espécie de queijo cremoso. Os dois pareciam bem a vontade, ele olhava para a televisão que passava um jogo de futebol sem som, ela comia os biscoitos, ele batia a mão na perna dela, ela sorria, ele sorria de volta, ela encostava-se à cadeira, ele tirava os óculos e esfregava os olhos. O homem não reparou em mim e eu o ignorei também. Fim da segunda garrafa e pedi a conta. Peguei o carro e sai dali na direção de casa. Mas não lembrava direito onde era a minha casa. Comecei a andar sem rumo pelas ruas de Nova Esperança, na tentativa de achar, na sorte, a minha rua. As casas se pareciam, as ruas estavam vazias e a maioria das luzes apagadas. Uma após a outra e todas pareciam a mesma. Andava devagar, mas não conseguia achar nenhum detalhe que denunciasse as diferenças. As ruas se enfeitavam da mesma maneira, eram dispostas de forma similar, e o silêncio acompanhava todo o trajeto. De repente, enxerguei um vulto na rua, numa esquina. Parei o carro, dei marcha a ré até chegar no cruzamento. Olhei para o meu lado esquerdo e não havia nada, olhei para o outro lado e também nada. Pensei que tivesse sido apenas uma visão. Passei a primeira marcha e fui para frente. No cruzamento seguinte, parei novamente e olhei para ambos os lados. Avistei um sujeito deitado o chão, na esquina, no gramado. Fui na direção dele a pé. Era um homem que roncava com um olho semi-aberto. O olho era de um azul impressionante que contrastava com todo o rosto sujo e barbado. No canto da boca tinha um pouco de baba ainda molhada. No braço esquerdo, colado ao corpo, uma garrafa num papel pardo. Ele estava um pouco encolhido por causa da temperatura baixa. Voltei no carro, catei um casaco que estava jogado e o cobri. Ele abriu o olho e parou de roncar, mas não se moveu nem falou nada. Apenas me observava, talvez na expectativa de que eu dissesse algo. Voltei para o meu carro e sai dali. Sabia que o homem me acompanhava com os seus olhos azuis. 7 Acordei com o sol de céu azul que batia na janela do meu carro. E com uma ressaca de vinho que me latejava a minha cabeça. Precisava de água urgente e talvez alguma coisa doce. Havia desistido de procurar a minha casa ontem. Só abaixei o banco e fechei meus olhos. No instante seguinte, já era hoje de manhã. Sai com o carro e descobri que estava na rua de trás da minha. Era ainda bem cedo e pude ver algumas pessoas que saiam de casa nessa hora. Eu, com a mesma roupa de ontem, cumprimentei o meu vizinho do lado esquerdo, um senhor de cabelos grisalhos e bigode espesso. Usava uns óculos de sol antigo, daqueles de aros metálicos e lentes grandes e grossas. Ele parou atrás do seu carro e me olhou enquanto caminhava pelo caminho das pedras até a porta da minha casa. Reparei nele, dei um sorriso artificial para o lado e levantei o braço amistosamente. Depois me bastou procurar, descobrir e lembrar qual era a minha chave, e entrar em casa. Deixei o meu carro na rua para procurar o controle do portão, mas me esqueci. Ao entrar em casa, escutei alguns gemidos que foram aumentando de volume conforme eu subia as escadas, com a garrafa de água que havia pego. Não imaginava da onde vinha o som. Estava cansado e voltei a dormir no primeiro quarto que encontrei. Acordei próximo do meio-dia com fome. Ao me encaminhar para a minha geladeira, na vã esperança de encontrar alguma comida, achei alguns imãs com telefones de lojas de entrega de comida em casa. Apanhei um aleatoriamente e pedi uma comida italiana com molho vermelho simples. O entregador foi simpático e perguntou se queríamos entrar para o programa de descontos da loja. Bastava que me cadastrasse. Fechei a porta. Nessa terça-feira, fiquei em casa na tentativa de organizar a minha casa. Apanhei o controle da garagem e deixei dentro do carro. Escolhi o quarto que dormiria, o mais próximo da escada. Arrumei os móveis da sala de maneira a aproveitar melhor a luz que vinha da rua. Só sai para comprar cerveja e algumas outras coisas do supermercado, como pão, café, antiácido. Liguei a televisão e fiquei o resto do dia em frente a ela com uma lata na mão. Eles tinham uma rede de informações própria de Nova Esperança. Um telejornal era produzido lá, com repórteres locais e informação da comunidade. À noite, sai para passear a pé. Escrevi o número da minha rua num pedaço de papel e coloquei no meu bolso. Fui apenas à praça e pedi um sorvete com licor, na sorveteria. O lugar era freqüentado por pessoas mais jovens, casais de 20 a 30 anos, onde me senti mais constrangido, apesar da idade parecida. Quando me levantava, escutei alguém chamando, “Hei, hei”, me virei. Era um homem alto e louro, de sobrancelhas louras e olhos azuis. Aponte para o meu peito para que ele confirmasse, “Sim”, aproximou-se e vi que não estava sozinho. Junto a ele estava uma loura de cabelos até o meio das costas quase do tamanho dele, olhos extremamente azuis e pele muito clara. “Você não é o novo morador da 4d Oeste?”, afirmei com a cabeça e ele continuou, “Nós também moramos lá”, abraçou a mulher, “Eu sou André Kohler e ela é a Cris, Cristina Kohler”, ele olhou para a mulher por alguns segundos como que a admirando e voltou-se para mim, “Você quer uma carona?”, olhei para ele, depois para ela, os dois, modelos de propaganda de creme dental, e eu, aqui, acabado. Agradeci e neguei. Preferia voltar a pé, “Tudo bem, então” sorriu mais uma vez para mim, “Seja bem-vindo a Nova Esperança”, a mulher olhou para ele e depois para mim, “Acho que você vai gostar”, deu um sorriso, “Todo mundo gosta daqui, não há como não gostar”, ele completou, “Aqui tudo é perfeito”. Voltei para casa a pé e senti uma leve brisa muito agradável. Cheguei em casa e liguei a tv. Passava um filme em preto e branco que comecei a assistir. Acabei pegando no sono leve, mas fui acordado com a chegada de um carro próximo a minha casa. Levantei e fui para a janela observar. O casal de louros se agarrava, ela enrolada a ele, com as pernas em volta do corpo, miava, gritava, ele rosnava sem camisa, abriu a camisa de botões dela, o soutien ficou a mostra, ele enfiou o rosto no meio dos peitos dela, ela levantou a cabeça e uivou, pararam na escada de subida para a casa, deitaram ali mesmo, ele abriu o soutien dela, os peitos explodiram, enormes, ele abriu a calça, ela segurava a cabeça dele e a afundava mais nos próprios peitos, as pernas enroscadas no corpo dele, rolaram para cima da escada, atrás das pequenas grades, comecei a escutar os gemidos dela, os gritos, ritmados, ela gritava, pedia para não parar, cada vez mais alto, mais alto, gritava mais alto, até que parou. A porta se abriu, os dois entraram na casa ainda se agarrando e os gritos foram um pouco abafados. Voltei-me para a tv, fora do ar. Aproximei e mudei de canal, passava um documentário sobre insetos. Sentei no sofá, dormi no sofá. Na quarta, levantei empolgado com a idéia de que começaria a trabalhar. Desde muito tempo não tinha algo para fazer logo de manhã, não tinha alguma coisa para fazer no dia. Apenas acordava e esperava o dia acabar para dormir novamente. Escutei ao fundo alguns gemidos. Fui para a janela e observei que as luzes da casa ao lado ainda estavam acesas. Voltei para a cozinha, comi algo de manhã, telefonei novamente para o almoço, num chinês dessa vez, e lembrei que poderia ter comida no New Hope. Será que a comida de lá era boa?, desliguei na cara de quem atendeu. Peguei a estrada da serra que ligava Downtown à Ponta do Diabo e me deu uma vontade louca de fumar. Eu não fumo todos os dias, mas quando passei pela estrada e vi, lá de cima, o mar que bate nas rochas, vi do outro lado a montanha encapada pelo verde, vi aquela estrada macia, convidativa, pensei em fumar um cigarro. Não sei o porquê, apenas abri o porta-luva, apanhei um maço jogado, puxei um cigarro e acendi. Como da primeira vez, dirigia com uma das mãos no volante e a outra, com o cigarro entre os dedos, do lado de fora furando o vento. Desci dessa maneira toda a estrada. Na Avenida Beira-Mar, pude observar que, ao contrário do que presenciei na segunda, o mar estava calmo e a praia bastante cheia. Não estava lotada, mas com vários garotos e garotas adolescentes, provavelmente os mesmos que a noite ficam na praça. Cheguei em menos de meia hora na entrada da Ponta do Diabo. Vi o Cabo Marcondes, mas não avistei o Tenente que estava na segunda. Ao me ver, ele me acenou com a mão, deu um sorriso que cobriu todo o rosto e se aproximou da minha janela. Eu a abri e ele se apoiou, “É o dia da folga de Satamini. Estou com o Major Gilles Cantuel, que saiu agora para o almoço”. Apenas fiz que sim com a cabeça. “Vi que chegou cedo, como Seu Castro fazia. O Senhor é bom para quem trabalha desde cedo”. Sorri, ele se levantou e indicou a entrada, “Sabe o caminho?”, respondi que sabia e entrei em direção ao estacionamento. Parei em frente ao New Hope e observei toda a rua. Havia pessoas que limpavam todos os estabelecimentos da rua, com baldes de água, vassouras, esfregões. Havia alguns restaurantes e lojinhas de souvenir e lembranças abertas, com uns sujeitos queimados e de cabelos vermelhos e louros, com crianças pequenas ou com mulheres voluptuosas. Meti a chave na porta, girei a maçaneta e vi todo o interior da casa. Não pude conter o sorriso que brotou. Fui direto para a cabine do dj da casa conhecer o equipamento. Era um som moderno, com quatro canais de som e um de imagem. Abaixei para ver para que o canal de imagem e escutei alguém na entrada. Ao perceber que o New Hope não estava vazio, ele falou da porta, “Olá, há alguém ai?”. Eu me levantei e esperei que ele ficasse mais próximo da luz. “Oi, eu sou Marco Antônio Brandt, o responsável pela limpeza da casa”, era um homem baixo dos seus sessenta anos de cabelos ralos, com a pele queimada pelo sol, “você deve ser o novo dono do New Hope”, assenti com a cabeça, “Thiago disse que você deveria chegar hoje mesmo”. Quem é Thiago?, “Desde que o seu Castro saiu daqui, Thiago é quem toma conta do lugar, mas, apesar de não termos tido problema com o New Hope, muito pelo contrário até, ele diz que não se sente capaz de tocar a casa”. Ele andou até próximo de mim, esticou a mão para mim, eu retribui. A mão dele era fina apesar do trabalho pesado que fazia, “Ele diz que é muita responsabilidade para ele, que ele é muito novo para isso”, ele abriu uma porta que havia ao lado do bar onde ficava a cozinha e a sala da gerência, eu fui atrás dele. “Thiago deve chegar a qualquer momento também. Ele mora na minha rua, na 5b Leste, duas casas mais para baixo da rua, mas deve vir direto da praia. Ele leva os dois filhos para a escolinha de surfe todos os dias de manhã, e de vez em quando, aproveita e fica até a hora de vir para cá”. O homem catou duas vassouras e um balde, “Se o senhor me der licença, sabe como é, tenho muito trabalho pela frente”, e saiu pela porta para o salão principal. Eu entrei na cozinha e percebi que jamais haveria almoço àquela hora. O New Hope era um bar noturno, apenas por curiosidade, peguei o cardápio. Havia lulas a dorê, polvo gratinado, camarão empanado, tudo tira-gosto. Havia outro cardápio que se lia na capa, Refeições, e dentro havia vários pratos de frutos do mar, paella, lagosta com molho de camarão, risoto de mexilhão, ostras com limão. Marquei um prato qualquer e subi as escadas para a sala do gerente. Na porta estava escrito “Entrada apenas para pessoas autorizadas”. Saquei o molho das chaves e abri a porta. Antes de entrar, reparei na câmera que havia logo acima da entrada. Tinha um pequeno hall com um sofá de couro castanho escuro e duas portas, numa escrito V.I.P. e outra, no canto, sem nenhuma identificação. Abri a porta dos selecionados para conhecer o salão. Era uma outra pista de dança, com mesas em volta e um sofá de parede que circundava todo o ambiente, de couro escuro também. A iluminação era toda artificial e não havia entrada de ar, sem ser a do ar condicionado. Abri a porta da gerência e havia uma pequena mesa para a secretária e duas portas para duas salas. Entrei na minha sala e liguei a luz. Era uma sala enorme, com uma mesa de madeira pesada com um computador de tela 16 polegadas e cadeiras pesadas, uma parede de monitores, um frigobar, um banheiro no canto, uma estante com alguns livros, e um pequeno banco de madeira acolchoado. Liguei os seis monitores e eles ficaram sem nenhuma imagem. Fui para o computador e procurei algo que pudesse mostrar as imagens. Cliquei no ícone que dizia “monitores” e me pediram senha. Não haviam me dado nenhum código, para nada. Sai da sala quase na corrida, passei por todas as portas e, quando abri a porta do espaço reservado, dei de cara com um sujeito de pele morena e cabelos negros e lisos de no máximo 25 anos. Ele também se assustou comigo, “Você deve ser Carlos, certo?”, respondi que precisava apenas da senha para os monitores e de todas as outras senhas que fossem necessárias para qualquer coisa, “Sim, claro”. Fui na frente e ele me acompanhava de perto. Ele ligou os monitores e me mostrou o arquivo onde ficavam todas as senhas. Agradeci e ele saiu da sala, “Caso precisa de mais algo, basta falar comigo”, disse na soleira da porta. Levantei-me da cadeira e observei as telas na minha frente. Havia uma câmera na entrada da casa, outras duas no salão principal, no palco, no bar, na escada, na varanda tinham três, em posições diferentes, na porta para acesso ao restrito, dentro do salão V.I.P. e no hall de passagem. Todos os lugares vazios. Só o Seu Marco Antônio com o rodo e o balde apareciam na tela do salão principal. Chamei o Thiago na minha sala para começar a conhecer o direito o negócio. Queria que ele me passasse toda a contabilidade, todo o planejamento, todo o funcionamento da casa. Thiago veio com o laptop dele e com um cabo de rede, chegou na minha sala, pediu com licença, sentou na minha frente e conectou-se numa saída de rede que havia na minha frente, atrás do monitor. Ele falou que iria interligar as duas máquinas para passar, mais rapidamente, todas as informações do computador dele para o meu. Eu apenas observava os movimentos dele. Dentro em poucos minutos de silêncio, ele me pediu para apertar o “OK” e começou a passar um monte de números e relatórios na minha frente. Quantidade de pessoas que visitam todos os dias, Quantidade de bebida que é consumida, Quanto é o gasto diário, Qual é a receita mensal, Quem são os clientes mais conhecidos, Quais são os planos para a próxima temporada, Quantas pessoas trabalham na casa, Qual é o principal concorrente, Qual é o horário que a casa fica mais cheia, Qual é o dia que a casa é mais procurada, Quanto dinheiro em caixa temos, Quais são as especialidades da casa, Quais são as atrações da casa, Qual é o procedimento para pagamento de pessoal e taxas, e tudo o mais que ele pôde passar para mim naquele momento. Ficamos horas com ele na minha frente, mas sem que eu pudesse enxerga-lo. A secretaria, Cláudia, chegou e nem vimos. Ela bateu à porta e abriu a porta em seguida para avisar que já estava lá, mas nós não demos atenção. Ela era uma senhora de mais ou menos 55 anos que pintava o cabelo de louro e queria parecer mais jovem do que realmente era. Basicamente New Hope dava lucro, mas este minguava desde a morte do Seu Castro. A casa abria os dias que todas as outras casa abriam, e apresentava shows de bandas conhecidas e locais que tocavam covers. Havia também um show feminino, e todas as garçonetes eram mulheres. Havia apenas um barman. Eram 15 funcionários contratados de carteira assinada, mais uma variável de 7 a 10 flutuantes, que eram basicamente integrantes e produtores das bandas. Quinta, para a minha surpresa, era o dia que a casa apresentava o maior fluxo de pessoas. A resposta era que sempre tínhamos um show melhor que o das outras casas. Não havia uma concorrência direta, pois não existia nenhuma casa igual ao New Hope, mas todas as que abriam à noite disputavam o mesmo mercado. Os clientes eram basicamente formados por turistas que ficavam alguns dias em Ponta do Diabo. E os clientes V.I.P. eram formados pelos mais antigos freqüentadores da casa, independente de dinheiro ou não. Tinham o direito de entrar apenas com a consumação, sem entrada, e ficar na sala reservada. Quando ele acabou, já era bem tarde da noite e só conseguia pensar em números. Ele se encostou à cadeira e falou, “A grande vantagem de trabalhar aqui é que não precisamos sair para nos divertir”, e apertou o botão do interfone na minha frente e esperou que a Cláudia atendesse. “Sim?”, ela disse com a voz gasta de quem já viveu muito, “Cláudia, você poderia trazer uma garrafa de uísque”, e olhou para mim para saber se eu aprovava, eu balancei a cabeça para frente bem vagarosamente, “com dois copos e gelo, para a gente, por favor”, no mesmo instante ela respondeu, “Sim, senhor”. Quis saber se ele ficava todas as noites no New Hope. “Desde que o Seu Castro nos deixou, eu fico”, acompanhava tudo o que ele fazia. Os movimentos dele pareciam em câmera lenta, como se fossem calculados. “Nós gostávamos muito do Seu Castro. Na época dele, ele ficava a maioria das noites aqui também. Eu o rendia em apenas duas por semana”. Cláudia entrou, após bater na porta, com uma bandeja de prata, dois copos, um balde de gelo, com pegador e uma garrafa de uísque. Ele nos serviu e me deu vontade de fumar mais um cigarro. Perguntei a ele se fumava. Ele sorriu e disse que não tinha cigarro nenhum com ele. Levantei-me e fui em direção à porta. Mandei Cláudia ir pegar um maço de cigarros para mim, “Sim, senhor”, ela respondeu imediatamente. Bebíamos como num monólogo. Ele falava dos dois filhos de 8 e 10 anos, falou da mulher, me mostrou a foto deles juntos, a mulher de óculos escuros que tapavam metade do rosto, pele bronzeada, prancha de surfe debaixo do braço, os meninos com bermudas floridas, ele sem camisa, porte atlético, ele falava da vizinhança que era tranqüila, da facilidade de chegar à praia, do colégio para os moleques, de como foi surpreendente a gravidez do primeiro filho, ele ainda com 18 anos, a mulher com 17, de como gostavam de ir para a praça, de acordar cedo, nos dias que podia, e ir surfar com toda a família, de comer no restaurante natural que havia em um dos quiosques, afirmou que eu deveria conhecer, que eu iria adorar, perguntou se eu gostava de praia, e não esperou pela resposta, continuou a fala dele sobre o Seu Castro que tinha sido uma espécie de pai e todos gostavam muito dele, quando eu o interrompi. Olhei para a tela da entrada e vi algumas pessoas que chegavam. Perguntei que horas começava a noite no New Hope. Ele se virou para os monitores, “Esses são Alexandre, o barman e Tiana, uma das garçonetes. Eles começam a chegar agora...”, ele iria recomeçar a falar, mas eu interrompi. Pedi para ele fazer uma pequena reunião para eu me apresentar. “Tudo bem, não á problema” e saiu da sala. Olhei para todos os funcionários que chegavam. Três homens chegaram juntos e suspeitei que fossem os seguranças. As mulheres todas eram as garçonetes. Havia ainda os porteiros, o mensageiro e o cozinheiro, que, descobri depois, chamavam de Baiano. O DJ e os integrantes das bandas só chegavam mais tarde. Logo que todos ficaram sentados no grande salão, o Thiago olhou para uma das câmeras e fez sinal positivo. Ao me deparar com todos, disse que não iria me estender muito. Apenas queria me apresentar, saber o nome de todos, mas que não iria gravar o nome de ninguém naquele momento, e afirmar que eu iria conhecer a fundo New Hope para saber se deveríamos mudar o rumo ou apenas continuar. Por enquanto, seria apenas um espectador de todos os acontecimentos. Algumas meninas sorriram, os seguranças balançavam concordando, o barman se levantou na direção do bar, mas eu pedi que ele aguardasse que eu acabasse. E, finalizei, não se esqueçam de quem manda agora sou eu. 8 Acendi um cigarro de trás da minha mesa e enchi meu copo de uísque com os olhos fixos nas telas. Cláudia abriu a porta para avisar que iria embora e eu não me mexi. Reparava em cada pessoa que entrava na casa, tentava imaginar o motivo que levava cada um ir para lá. O careca gordo com a mulher de peitos enormes. Chegaram e cumprimentaram o segurança da porta, o Edson, um baixote com nariz de italiano, mas com a fama de bom de briga. Foram para o bar e o cara apertou a mão do barman. O DJ havia chegado há meia hora, mas não conseguia imaginar o que tocava no momento. Apareceu um negro alto e forte, com óculos escuros e enorme cordão. Passou pelo Edson e tirou os óculos. Procurou uma mesa num canto e esperou que uma das meninas fosse atende-lo. Apesar de ser uma casa noturna que vivia cheia, em New Hope não havia brigas. Segundo Thiago, a última aconteceu quando Seu Castro ainda era vivo. Por isso apenas a opção por apenas três seguranças. Chegou um coroa com um charuto na boca e roupa engomada, com duas mulheres e mais um companheiro. Chegou de conversa com o homem e deixou as mulheres para trás. Levantou a mão e foi direto para a área reservada. Na quarta uma banda toca música lounge. É a noite que acaba mais cedo. Três mulheres em ternos e saias chegaram na hora que acendia outro cigarro. Havia uma fila para entrar. Várias pessoas, homens acompanhados, mulheres sozinhas, mulheres em grupos, homens com apenas homens, negros, baixos, de olhos puxados, cabelos crespos, ruivos, mulheres de corpos esculturais, homens gordos, cigarros, charutos, mulheres com mulheres, um homem querendo entrar bêbado. Vários personagens de uma mesma peça. Apaguei meu cigarro e decidi descer para ver com os meus próprios olhos o que acontecia nos salões do New Hope. Primeiro passei no reservado, estava quase vazio, apenas dois casais que chegaram juntos. Eles se sentaram no canto e vi o homem mais gordo, de terno e gravata, falando algo no pé do ouvido da mulher. O outro estava de costas e tapava minha visão da mulher. Ela parecia estar com o rosto próximo da mesa. Os quatro nem repararam na minha presença, principalmente porque a música cobria o meu barulho. Cheguei no balcão e pedi um uísque com soda e fogo para acender meu cigarro. Alexandre, o barman, me serviu. Um homem, que estava sentado num banco no balcão, olhou para mim, pois não tinha cartela. “Quem é ele?”, pude escutar ele perguntar para o Alexandre, “É o senhor Carlos Carvalho, o novo dono do bar”. O homem, um negro com rosto cansado e colarinho desabotoado, se aproximou de mim e esticou a mão para que apertasse, “Roberto Santos, às suas ordens”. Apertei sua mão e continuei com os olhos no salão. “Eu trabalho no hospital, sou o responsável pelas compras”, olhei para ele de lado, traguei mais um pouco, “eu sempre quis cuidar de pessoas”, vi nesse momento uma morena de cabelos desgrenhados sozinha numa das mesas laterais. Já havia visto essa mulher antes. Quando foi? Forcei a cabeça para tentar lembrar de onde lembrava dela, começou a passar um pequeno filme com todas as minhas lembranças desde que eu cheguei em Nova Esperança, “mas só aqui pude trabalhar nisso”, olhei para o homem, ele continuava a falar, tomei mais um trago e pedi licença para sair. Fiquei na frente dela, a uma distância que pudesse ver melhor seu rosto, encostado ao lado de uma das caixas de som. A banda ficava na minha frente à direita, ela, à esquerda. Tomava mais um gole e olhava para ela e voltava para o palco e tragava o cigarro e olhava para ela e tomava mais um gole e tragava o cigarro. Minha visão começava a ficar turva. De onde eu conhecia essa mulher? Ela tomava algo num pequeno copo. Era tequila, tinha uns pedaços de limão e sal na mesa dela. Os cabelos eram altos, quase despenteados, os olhos fundos. Andei vagarosamente, com cuidado para não esbarrar em nada, até a mesa dela. “Olá”, disse. Ela colocou o sal na boca, virou o copo de tequila e chupou o limão. Olhou para mim de lado com um pedaço verde que escapava, tirou o bagaço e colocou em cima de um pires que contava com mais cinco bagaços de limão. Lembrei de onde a conhecia, do dia que cheguei, ela era a mulher que avistei quando estava na lanchonete em Downtown, que passou se apoiando nas paredes. “Já a vi por aqui”, eu disse, “Azedo”, ela respondeu, “Esse limão está muito azedo”. Me encostei na acolchoado do banco. “Desculpe-me”, ela disse, “mas o limão está muito azedo”. Chamei uma das garçonetes e pedi que trouxesse duas doses de tequila, mas que tomassem cuidado com os limões, para que não viessem azedos. Ela sorriu para mim um sorriso enorme, grande, de dentes branquíssimos, que contrastava com a cabeleira negra. Reparei nos seus olhos, azuis e tristes. Sempre fugiam ao contato direto. Peguei o último cigarro do maço. “Meu nome é Carlos”, disse para ela. Chegou a garçonete com a garrafa, ela segurou o copo com uma das mãos e pediu fogo com o cigarro entre o indicador e o médio, peguei meu isqueiro e acendi o cigarro dela, “Obrigado”, ela olhou para mim. A garçonete encheu nossos copos e colocou um prato cheio com rodelas de limão e outro com um punhado de sal. Pedi para que ela deixasse a garrafa na mesa, a garçonete me olhou com ar de incredulidade e eu perguntei por que ela demorava. “Meu nome é Débora, mas todos me chamam de Dé”. Você vem sempre aqui?, eu perguntei para ela. Ela sorriu com os olhos pequenos em mim, um sorriso maroto, longe da inocência. Bateu a cinza do cigarro no cinzeiro e o deixou parado ali queimando. Pegou o sal e o colocou na mão, com a outra segurou o copo com tequila e eu a acompanhei no ritual, virou o sal depois a tequila e pegou o limão. “Sabe o que eu realmente gostaria de tomar?”, ela me disse e eu com meus pensamentos todos voltados para ela, balancei a cabeça apenas para dizer que não sabia, “Um dia vou tomar aquela mexicana que vem com o vermezinho dentro”, ela levou o cigarro a boca, o vi com a ponta em brasa, abaixou para bater novamente a cinza, olhou para mim, eu sem palavras, completamente envolto no que ela dissesse, “E, ao final da garrafa, eu vou comer o verme”. Eu me encostei novamente no acolchoado, traguei mais uma vez o cigarro, soltei pelas narinas e fiquei olhando para ela. Ela olhava para mim, com um sorriso sem abrir a boca, sem mostrar os dentes. Ficamos em silêncio por alguns instantes que me pareceram não existir. “Você é novo aqui?”, ela me perguntou. “Sim”, disse ao apagar meu cigarro no cinzeiro. No momento dois djs subiram ao palco e toda a casa bateu palmas para eles, “Eles são bons”, ela disse, os melhores da casa, eu olhei os dois, atrás dela e depois para ela. Ela enchia o copo dela e perguntou se eu queria, acenei com a cabeça que sim. Senti minha visão turva, só conseguia enxergar ela, mesmo assim com dificuldade. Lembrei que não havia comido nada durante o dia. A música começou a tocar, era diferente de tudo o que eu já tinha escutado. Era uma música para degustar, que apenas preenchia os espaços vazios, não incomodava. Ela fez o ritual novamente com a tequila e eu a acompanhei com menos empolgação do que da primeira vez. Chamei a garçonete e pedi um cardápio. Dé olhou para mim e riu novamente. Pedi uma casquinha de siri e perguntei para ela se me acompanharia, ela sorriu e agradeceu. Expliquei que não comia desde a manhã, e bebia há horas já. Ela bateu a cinza e disse, “Entendo”. Ficamos em silêncio e comecei a me sentir mal. Quando ela olhou para o palco, peguei um pouco de sal e coloquei na boca. “Usar sal sem a tequila é quase um pecado”, ela me disse ao se virar. “Não estou bem”, falei, “Posso ver”, e o sorriso sem mostrar os dentes estava ali. Chegou a minha casquinha de siri e a comi de uma vez sem nem mastigar direito. “Perdão, eu nem ofereci”, disse para ela. “Não há problema, eu não queria mesmo”. Pedi outra para a garçonete e ela me perguntou, “É a primeira vez que você vem aqui?”, “Para falar a verdade, é a segunda”, “Nunca te vi por aqui”, “Você vem sempre para cá?”, perguntei e ela me respondeu, “Posso dizer que eu bato cartão aqui”, e deu o sorriso dela. Ela sentava de lado, talvez para olhar melhor o palco, talvez para fugir de um contato direto comigo. “O que você acha daqui?”, eu argüi, “Poderia haver mais eventos fora do cotidiano da casa”, “Entendo”, “Desde a época do Seu Castro a casa mantém a mesma programação”, “Sei”, “Imagina, festas temáticas em um sábado qualquer. Isso aqui poderia viver cheio”, ela havia se virado um pouco para a minha frente, e eu tinha melhorado um pouco. Chegou a segunda casquinha e eu a comi com mais calma. Pedi um outro maço de cigarro, “Ë o meu segundo do dia”, “É o meu décimo quinto do dia”, sorrimos. “Mas eu não fumo, normalmente”, ela se debruçou sobre a mesa, chegou perto de mim e disse, “Você vai perceber que Nova Esperança não é uma cidade normal”. Ela olhou para o relógio, arregalou os olhos e levantou-se, “É tarde”. “Quer que eu te leve em casa?”, perguntei, “Não. Não quero te dever mais favores”, tentei me levantar, “Mas eu faria sem nenhum problema”, ela colocou a mão no meu ombro o que me impediu de ficar completamente em pé, “Não se preocupe, nós nos veremos mais vezes com certeza”, “Como eu...”, “Não se preocupe” e me deu um beijo no rosto, perto da boca, e saiu. Pude ver o corpo dela todo. Estava com uma saia preta de couro brilhoso que não disfarçou seu corpo opulento, com botas de cano alto que quase se encostavam à saia e um casaco preto que ela jogou por cima dos ombros. Fiquei em pé, olhando para ela ao sair, na porta ela se virou e apenas riu, apenas o riso da Dé. 9 Fui para o balcão falar com Alexandre. Quem era aquela mulher, perguntei para ele. “Dé é uma mulher maravilhosa”, respondeu apenas. 10 Acordei no sofá da minha sala, com a boca seca, olhei no relógio, já era de tarde. Seu Marco Antônio já limpava a casa. Não tinha a mínima idéia de como vim parar aqui. Perguntei para ele, enquanto enchia um copo de água na cozinha da casa, se havia algum banheiro com chuveiro, ele me respondeu que o banheiro da minha sala tinha chuveiro. “Há roupas limpas aqui, comida?”, roupa não havia, mas os restaurantes da rua eram de conhecidos, poderia pedir algo e não se preocupar. Decidi tomar banho e ir a minha casa para trocar de roupa. Na volta, comeria em algum lugar. Pedi para ele preparar um café e sai do New Hope tomando num copo de papel. Passei pela porteira da Ponta do Diabo, pelos dois guardas, pela avenida beira-mar, pela praia lotada pelo céu azul e sol forte, pela serrinha, entrei na área residencial, cheguei a minha rua, estacionei o carro, avistei o meu vizinho velho, ele me acenou debilmente, eu respondi na corrida para entrar em casa, troquei de roupa, fiz uma mala com algumas outras roupas, caso precisasse, voltei para o meu carro, acelerei, voltei para a serrinha, avenida beira-mar, praia lotada, guarita de entrada e novamente Ponta do Diabo. Guardei minha mala na sala e fui para a rua. Escolhi um restaurante qualquer e pedi o primeiro prato que achei. Quando voltei para New Hope, Thiago já estava lá, na sua sala. “Como foi ontem?”, não me lembrava direito, “Bem”, apenas sabia que existia a Dé e que ela era maravilhosa e que tinha um sorriso diferente e lindo. “Hoje, se quiser, pode ir para casa, eu ficarei”, respondi para ele que nas primeiras semanas ficaria na casa todos os dias, para conhece-la melhor. “Quinta é o dia que mais enche. É o dia do show”, interrompi-o com uma idéia que estava na minha cabeça desde ontem, da minha conversa com Dé, “Nós já tentamos fazer festas temáticas, ou de maior porte, para tentar atrair mais pessoas?”, ele me olhou com os olhos assustados, “Não”, disse após alguns segundos de silêncio, “Conversei com umas pessoas ontem e me sugeriram fazer festas de tempos em tempos, apenas para mexer com a rotina”, ele ainda estava um pouco assustado, parecia que ele não esperava por isso, “Como você pensa em fazer isso?”, como?, ele era louco. Eu tinha o mais difícil, o lugar, o resto é simples. Falei para ele voltar para a sala dele, que, quando eu precisasse, o chamaria novamente. Cláudia chegou e avisou. Pedi um maço de cigarros e café. Comecei a re-visitar todos os documentos que tinha visto no dia anterior. Pedi o caixa da noite anterior e quando menos percebi já estava de noite e as pessoas começavam a chegar na casa. Thiago bateu na minha porta para avisar que desceria, eu, que olhava para os monitores, levantei a mão e falei para ele ir na frente. Fiquei na expectativa de encontrar Dé pela televisão, assim desceria. Algumas pessoas de quarta se repetiam, mas o público era composto na sua grande maioria de homens, nesse dia. Homens mais velhos, que pareciam com mais dinheiro, alguns até acompanhados por mulheres novas, que pareciam putas, mas putas de luxo, que você demora a reconhecer como tal, mas em um detalhe ou outro você percebe. Já havia passado um bom tempo quando desisti de esperar Dé da minha sala e resolvi descer para o salão. O primeiro show de música e strip já havia começado. Era uma loura de cabelos queimados pela tinta, de peitos enormes e extremamente branca. Ela cantava alguma coisa folk, ou country. Parecia uma música do Beck. Apenas ela, o violão e uma batida eletrônica atrás. Passei primeiro no salão reservado, que hoje estava bastante cheio. Grupos se reuniam em torno das mesas com conversas em altos tons, dois casais no canto que os homens olhavam as mulheres que se agarravam, uma outra mesa só com homens na beira dos 50 anos, todos bem vestidos, o garçom entrava e saia com a bandeja lotada de copos, de garrafas de uísque, de gim, vodca, de tequila. Desci as escadas, cumprimentei o Alexandre e encontrei Thiago. Então avistei a Dé. Estava de costas para mim, com uma calça preta e camisa qualquer, e olhava para o palco. “Percebo que você gosta realmente daqui”, “A Cris é ótima cantora”, olhei para o palco a menina cantava baixinho, bem pequenino. Parou de cantar, a batida do fundo aumentou e ela abriu a camisa. “Como eu não a vi chegar?”, ela olhou para mim, deu o seu pequeno sorriso, “É que conheço alguns caminhos para chegar aqui”. A mulher do palco estava com os peitos à mostra e brincava com a saia rodada xadrez. Segurava o poste na frente do palco, “Tenho que ir”, ela me disse, “Espere, você já vai embora”, “Não, você vai me ver daqui a pouco”, ela levantou o dedo indicador e colocou na minha boca. “Onde é que é a entrada para o camarim das meninas?”, perguntei para Thiago que estava apoiado no balcão de conversa com Alexandre. Na hora acabou o show da Cris e entrou a música ambiente. No microfone, o anúncio da próxima atração, da principal atração, em menos de 30 minutos. Não disse o nome da menina, mas o salão começou a encher. Parecia que todo mundo esperava por esse show. O palco desse dia tinha uma espécie de passarela que vinha até a metade, quase, do salão. Thiago respondeu, “A entrada para o camarim fica ali”, e apontou para uma porta ao lado da escada para o varandão. “Esse show que vai entra é realmente bom assim?”, ele olhou para mim, voltou para Alexandre que enxugava um copo e deu uma risada baixa, “Você vai ver”. A música ambiente foi baixando, diminuindo até findar. Apenas uma batida seca de música eletrônica no fundo. Um feixe de luz iluminou o centro do palco, uma perna apareceu entre as cortinas, os assovios e gritos da platéia aumentaram, eu gritei para abafar o som, para Thiago ao meu lado, “Vamos comigo, depois desse show, no camarim. Quero conhecer todas as meninas”, ele concordou com a cabeça sem tirar os olhos do palco. E uma mulher de cabelos negros e volumosos, de pele clara, de meia calça e vestidos pretos, sai de trás das cortinas. A música do fundo a acompanha, a multidão do salão me impedia de enxergar direito, mas, eu a conhecia, era a Dé. Era a Dé que dançava no palco, com a multidão aos delírios, aos urros, aos gritos na tentativa de se aproximar dela. Ela cantava “Bem que se quis”, alternando português com italiano, apenas um foco de luz nela e toda a música atrás. Tirou as luvas e jogou na platéia. A platéia batia palmas a cada modificação do cenário. Eu estava hipnotizado, havia me transformado num zumbi. Ao fim da música, olhei para o Alexandre que já esperava por uma reação minha, e pedi um uísque com gelo. “E, ai?”, me perguntou Thiago. Ela é maravilhosa. Todas as pessoas do salão só conseguiam olhar para ela. “Seu Castro gostava muito dela”, disse Alexandre ao me entregar o copo, “Ela era a preferida dele”, Thiago completou. Ela começou a cantar “Misteryons” do Portishead. “Eclética, ela hein”, brinquei e pela primeira vez voltei a mim mesmo. A música foi em crescente e me conquistou novamente. Ela tirou uma das alças do vestido de uma maneira extremamente natural, nem parecia que estava na presença de 100 pessoas desconhecidas. A platéia ainda estava incendiada, a qualquer movimento dela o público respondia. Acendi outro cigarro e virei o copo com o uísque todo. Ela transmitia uma sensualidade muito distante do vulgar. De uma hora para outra, comecei a me sentir desconfortável com aquela situação. Um bando no canto do palco gritava mais alto, “Vem cá minha putinha, vem cá para eu poder colocar um dinheirinho na sua calcinha”, ela, só de calcinha, foi até o grupo olhando para todos como se olhasse apenas para um e com aquele sorriso que tanto havia admirado. Por que uma mulher dessas precisava fazer isso? Acredito que ela poderia trabalhar em qualquer lugar aqui. Não havia necessidade. Vou oferecer outro cargo para ela. Sai do salão em direção ao camarim sem esperar pelo Thiago nem pelo fim do show. Do lado de dentro da porta, havia um segurança, um negão alto e forte como um boi, com um bigode fino e terno impecável, sentado numa cadeira. Ao perceber alguém que entrava aos empurrões pela porta, saltou da cadeira e fechou o caminho. Quando me reconheceu, pediu desculpas e deixou-me passar. No camarim, onde todas as meninas se aprontavam, duas meninas que aparentavam serem bem novas, só de calcinha e soutien conversavam e tomavam algo numa garrafa escura. Elas me viram e se levantaram, pedi para que sentassem. Eu iria esperar o show da Dé terminar ali. As duas saíram e foram chamar o segurança que explicou quem eu era. As duas voltaram e me ofereceram o que bebiam. Olhei para a garrafa e tomei sem pensar muito. Era um conhaque que desceu queimando a garganta. De lá de dentro podia escutar a multidão que urrava de tempos em tempos. “Quantos anos vocês têm?”, uma apressou-se e respondeu que tinha 18, a outra esperou que eu a olhasse de frente e disse “Dezenove” conjugando cada sílaba. Eu me levantei e fui até a porta. Acendi um cigarro, “Você viu o nosso show?”, a mais velha perguntava. Voltei para as duas e percebi que a mais nova era a menina que cantava country e folk, mas ela aparentava ser bem mais velha no palco. Disse isso para ela, “Deve ser a maquiagem”, ela respondeu. Peguei novamente o conhaque e tomei mais um gole que queimou a garganta, menos do que da primeira vez. Escutei a platéia novamente aos gritos, dessa vez mais alto. Parece que alguma coisa havia acontecido, me aproximei da porta de saída do camarim quando ele é aberto e entra Dé completamente nua, dentro de um roupão de veludo azul marinho. “Você, por aqui, que coincidência?”. Tentei falar alguma coisa, mas as palavras travaram na garganta, “Me espere aqui, que eu tenho que fazer um bis”, ela colocou algumas roupas nos meus braços e voltou, com o roupão, para o palco. Fiquei no corredor, que dava para ver o palco e pude vê-la antes de entrar. Ela olhou para trás, deu um sorriso para mim e adentrou. Ela dançava e se aproximava do público e sentia a vibração de todo mundo, e se empolgava mais, e ria alto, e gargalhava até, e eu voltei para dentro do camarim. Agarrei o conhaque pelo gargalo e tomei outro gole que nem senti passar pela minha garganta. A mais velha das meninas estava se vestindo para entrar no palco. Ela disse que entrar no palco após a Dé era muito difícil, já que ela era a atração principal da casa. Fiquei olhando para as duas, novas e nessa vida. Escutei novamente o público aos gritos e depois Dé entrou, vestida no roupão. Senti todo o seu corpo chegar perto de mim, ela encostou a mão direita no meu ombro, abaixou-se e me deu um beijo na boca, “Vamos embora”, ela falou. 11 Entramos no carro, ela me agarrava, eu a puxava, saímos pela Avenida beira-mar em direção a qualquer lugar. Não sabia para onde, apenas tinha que sair. O carro corria, eu apertava o acelerador, ela com a mão dentro da minha camisa, descia para a minha barriga, aproximou o rosto da minha orelha e a mordeu, fechei meus olhos, passei minha mão no cabelo dela e a puxei para beija-la. Acelerava o carro ao sabor de uma música do Moby ao fundo. A estrada era iluminada pelos postes laterais e pela luz da lua que refletia no mar. Virei o volante do carro, fez com que caíssemos na areia, dirigia para mais próximo da água, parei o carro com as ondas nos pneus. Ela abaixou o meu banco e subiu em cima de mim. Beijava, lambia, mordia meu corpo, colocou minhas mãos para cima e abriu meu cinto e minha calça, fiz o mesmo com ela, tirei sua camisa e vi os peitos redondos, brancos, com os bicos vermelhos, que saltaram na minha direção. A maré subia, o mar agitava-se, do lado de fora era possível ouvir não só o barulho das ondas que quebravam perto da areia. O carro ficou com os vidros embaçados até que as janelas foram abaixadas. Nenhuma viva-alma passou por ali durante toda a noite. O céu estava sem nenhuma nuvem e a lua cheia refletia uma luz forte, olhei para ela, ela tinha um sorriso quase eterno, não um sorriso efêmero que acaba de um dia para o outro, ou apenas um sorriso que existe porque tem que existir, era um sorriso que poderia durar dias mesmo se ela ficasse sozinha, e eu deitado, impressionado com ela, impressionado com ela comigo, ela em cima de mim, ela linda, ela com a pele branca da cor da lua, também comecei a sorrir, abraçado a ela, um sorriso de satisfação, de plenitude, estar completo, ser perfeito, entendi o sorriso dela e fiquei sorrindo a noite inteira com ela. Os pneus estavam atolados na areia no dia seguinte. Acordei sozinho, abri a porta e senti o mar na minha canela. Estava sozinho no carro, e não sei como ela foi embora. Pela altura do sol, já era tarde da manhã. Alguns surfistas já estavam na água, algumas mães com seus filhos pequenos na areia. Caminhei para um quiosque que avistei aberto. Estava com minhas calças pretas dobradas até quase o joelho, sem camisa e pedi para usar o telefone. O homem me olhou um pouco ressabiado, disse para ele que pagaria a ligação, mas precisava de um reboque, ele ainda não se mexia, coloquei a mão no bolso a procura da minha carteira, ela não estava no meu bolso. Pedi para ele esperar um pouco e corri para o carro, quase sem esperança de achar algum dinheiro. Abri a porta e comecei a revirar os papéis que achava, levantei meu banco, abaixei até o capacho e, embaixo dele, estava minha carteira intacta, com todos os meus documentos. Sai do carro e senti uma nuvem de água salgada molhando minhas costas. Todas as mães do meu lado me acompanhavam com os olhos. Me identifiquei para o dono do quiosque, ele me sorriu e me entregou o telefone e disse que não me preocupasse. O reboque não demorou a chegar, mas teve muito trabalho para tirar o carro da areia. A água entrou no motor, molhou as velas e até os bancos do motorista e do carona. Tentei fazer o carro pegar e nada. Fui de carona com o caminhão, com o carro na carroceria, até Downtown. Ele nos deixou num shopping car e o mecânico, um branquelo, de macacão cinza-claro impecavelmente limpo, veio me dizer que demoraria no mínimo uns cinco dias para que desse jeito no carro. Ele começou a explicar que tinha que comprar novas velas, trocar algumas peças do motor, mas eu queria ir embora rapidamente dali e perguntei apenas quando deveria buscar o carro, “Terça”, ele me respondeu. Fui para a minha casa a pé, mas não foi problema nenhum. Tinha que ir trabalhar, mesmo sem o carro. Assim liguei para o Alexandre e pedi uma carona. Disse para ele chegar mais cedo que o normal, pois eu precisava trabalhar antes da abertura da casa. “Não há problema”, Alexandre só pediu alguns minutos para que ele se aprontasse, eu sugeri ir para a casa dele, para adiantar, ele me deu o endereço e sai de casa. Alexandre morava a duas ruas da minha numa das maiores casas de Nova Esperança. Era um sujeito quieto de trinta e poucos anos, cabelos pretos e encaracolados bem curtos, e o rosto com muitas marcas, como de sua mãe, a qual conheci quando cheguei a sua casa. Ela estava na piscina, atrás da casa e Alexandre preparava um drinque num bar do lado de fora da casa. “Maravilhoso, Alexandre, você se supera a cada dia”, a mãe debaixo de uma sombrinha, “Mãe, este aqui é o senhor Carlos Carvalho, o novo dono do New Hope”, a mãe se vira primeiro para Alexandre e para mim, “sim, sei”, e depois olha para a piscina, “Amor, venha cá, tome o seu drinque, está maravilhoso”. O sujeito cai na água, nada até a borda onde se apóia e num salto sai da piscina. Chega perto dela, dá um beijo e toma um gole da bebida azul no momento que Alexandre bate no meu braço, “Vamos”. Pude ainda observar o sujeito levantando o copo e agradecendo a bebida. Entramos no carro e perguntei que bebida era aquela, “Uma mistura de vodka, Curaçao e algumas coisas que coloco que eles gostam”, percebi que ele não queria falar nisso, “Entendo”. Ele logo mudou de assunto, e perguntou o que havia acontecido com o meu carro, expliquei que tinha dado alguns problemas no motor e deveria trocar as velas, “Foi a Dé, não?”, assustei-me, não sabia o que responder, “Ela consegue que os homens façam coisas que nunca imaginavam fazer”, começávamos a subir a serra e pela primeira vez pude reparar em toda a extensão da estrada o mar lá em baixo e a mata no meu lado direito. No início as árvores quase se fecham no alto como num túnel verde. Ele me trouxe de volta, “Você sabe que ela era a preferida do Seu Castro, não?”, olhei para ele de novo, “Uma vez, Seu Castro me contou, os dois iam para o New Hope pela serra e ela distraiu tanto o Seu Castro, entende, distraiu, que quase caíram no mar”. Tirou uma das mãos do volante e apontou para frente, “Foi aqui”, era a curva muito fechada antes da descida, “Os dois brigavam muito”, caímos na avenida Beira-mar, “Ele era muito ciumento, não deixava que ela trabalhasse e ganhasse o dinheiro dela”, andamos um bom pedaço em silêncio. Na porteira de entrada da Ponta do Diabo, avistei os barcos parados e ele buzinou para os policiais da entrada, “Ela é muito independente”, disse e me olhava. Estacionamos o carro e seguimos em silêncio para o New Hope. 12 A noite logo chegou junto com os freqüentadores assíduos e algumas caras novas. A sexta era o dia que a Ponta do Diabo mais enchia. Lá para perto da meia-noite, parei no balcão com um copo de uísque e gelo e um cigarro aceso no cinzeiro. Nem sinal da Dé. A casa estava cheia e um homem me cumprimentou quando passou por mim. Hoje era o dia de uma banda de surf music que tocava no terraço, para aproveitar a vista do mar. Catei o copo e fui para os camarins. Andei no corredor sem nenhum destino, só por andar. Na esperança vã de encontrar alguma coisa para fazer o tempo passar. Saí de lá em poucos minutos e fui para o terraço, onde várias pessoas assistiam a banda. Eles tocavam músicas de bandas australianas, como Midnight oil, Spy vs. Spy, Australian Crawl e outras que nunca tinha ouvido falar. Vários casais tomavam coquetéis coloridos e dançavam com a música. O cantor e guitarrista, alguém que parecia ter saído da praia naquele momento, com óculos escuros e a pele bronzeada, no intervalo das músicas se dirigia ao público e apontava para a praia ao dizer frases de efeito à moda surfista, “Sintam a energia que brota do mar, galera”. Uma garçonete passou por mim, e aproveitei para pedir outro uísque. Ela saiu e eu acendi mais um cigarro. Só esperei por ela para sair do terraço, não agüentava mais o céu estrelado, a lua cheia, os drinques coloridos, os sorrisos. Fui direto para o reservado que, nesse dia, tinha um dj só para tocar para eles, o mesmo dj que toca nas quartas para a casa inteira. O lugar também estava lotado. Fui para o canto e tive que passar por todo mundo. Sentei na única mesa vazia e fiquei de frente para duas mulheres com tailleurs que conversavam animadamente. Tinha quase matado meu uísque quando chamei pela garçonete que atendia ao reservado e pedi mais uma dose além de mais uma rodada para as duas moças por minha conta. Eu olhava para as duas, mas elas ainda não tinham percebido a minha presença. Riam alto, pareciam que estavam sozinhas. A garçonete chegou e falei para me avisar se alguma coisa acontecesse. Ela me olhou um pouco sem saber o que eu queria dizer, mas eu a enxotei. Queria saber se a Dé havia chegado, mas não queria que ninguém soubesse disso. As duas olharam para mim quando ela deixou as bebidas e eu levantei o meu copo, como que sugerisse um brinde. Elas riram um pouco assustadas, se entreolharam e abriram mais os sorrisos que logo se transformaram em gargalhadas. Bebia e olhava para a que estava exatamente na minha frente, ela respondia com olhares de quando em quando por cima do ombro de sua companheira. Chamei novamente a garçonete e pedi um papel com uma caneta. Acendi um cigarro e o estacionei entre meus dedos indicador e médio da mão esquerda. Na mão direita eu apoiava minha cabeça junto da caneta. Olhei para as duas no exato momento em que a outra se virava para me olhar de frente. Ela se voltou e as duas riram. Escrevi um bilhete simples no qual perguntava se elas estavam sozinhas. Quando a de frente para mim recebeu o bilhete, eu tragava um pouco mais o meu cigarro, ela riu e mostrou o papel para a outra que também riu. O bilhete não demorou e a resposta foi um simples não. Quando levantei minha cabeça, as duas encaravam-me com as mãos sobrepostas uma da outra. Esperaram por mim e riram olhando uma para a outra. Virei o meu último gole de uísque e sai da sala. Sabia que elas olhavam para mim e riam, mas não me importava. A primeira coisa que avistei quando entrei no salão principal, já meio tonto, foi Débora. Ela estava sentada no mesmo banco da noite anterior sozinha. Cheguei ao lado dela, “Onde você estava?”, tentava não transparecer na voz a minha tensão. Ela me abraçou, me puxou para perto do corpo dela e me deu um beijo vagaroso no rosto. “Como você foi embora ontem?”, ela bateu a cinza do cigarro, no cinzeiro atrás dela, “Eu sempre dou um jeito para ir embora, não se preocupe”. Eu não sabia mais o que dizer, ela olhava para mim, num tom quase superior. Queria que ela saísse comigo dali naquela hora, queria ficar longe de tudo, só tinha pensado nela durante o dia inteiro, só o rosto dela, o sorriso, ela em cima de mim, dentro do carro. Reuni algumas forças e tentei falar algo, “Você...”, mas na hora chegou um grisalho de terno escuro e gravata em cima da barriga que a abraçou e ela me interrompeu, “A gente pode conversar sobre isso depois?”, meus olhos ficaram vazios, “Claro”. Já estava longe dos dois mesmo antes de me mover. Parecia que eles tinham saído. Eu estava paralelo a tudo o que acontecia a minha volta. Acendi mais um cigarro e sai do New Hope, novamente sem destino. A rua estava lotada como ainda não tinha visto. Todos os bares e restaurantes e boates estavam abertas e lotadas. Algumas pessoas circulavam de um lado para outro. A média de idade era a mais baixa de todos os outros dias. Eu era apenas mais um zumbi que perambulava sem nenhum motivo, ninguém reparou em mim. Fui para o pequeno porto da Ponta do Diabo, sem saber o porquê. Joguei a ponta do cigarro fora e fiquei parado de frente para o mar. Eram incontáveis os barcos parados. Vi uma luz se aproximando e um negro vestido de marinheiro passar por mim na direção dela. Ele entrou no píer, na parte de madeira e esperou que o iate jogasse a corda. Ele ajudou primeiro uma mulher loura de vestido prata a saltar, um homem de porte atlético com um blazer azul-marinho de botões dourados, depois outro homem de cabelos lisos repartidos no lado esquerdo jogado para o direito e mais uma morena também de vestido. Os quatro riam muito, se beijavam e falavam alto, pude escutar alguém que falava que ia para o New Hope, porque “lá tinha um espaço muito legal”. O negro voltou e eu o acompanhei sem que ninguém percebesse a minha presença ali. Sozinho no cais, com algumas músicas que se misturavam de longe, mas sem me atrapalhar, pisei no píer de madeira em direção ao mar. Passava pelos barcos e os enxergava vazios. Iates gigantescos, lanchas de 30 pés ou mais, nenhuma traineira ou barco pequeno. A madeira era escura e rangia baixo quando eu pisava. O mar era fraco, mas podia escutar as marolas batendo nos pilares de sustentação e na areia. Cheguei no limite, na minha frente apenas o mar e depois o oceano escuro que lá na frente se confundia com o céu negro e estrelado. Sentia o meu coração batendo forte, nervoso e a minha cabeça queimando. Nenhuma nuvem e a lua grande, amarela e redonda. Uma brisa leve soprava, o que deixava a temperatura agradável, quase como no primeiro dia. A minha têmpora latejava e respirei fundo para ver se acalmava um pouco. Fechei meus olhos e só inspirei. Débora. Por que ela tem que fazer isso comigo? Por que eu penso nela? A conheci anteontem, ontem, sei lá, já estou confuso. Por que pensava nela? “Hei”, escutei alguém falando. “Hei, você ai, parado no píer”, olhei para os lados, dois grandes barcos parados, depois uma lancha menor, um veleiro, o som vinha desse lado, atrás de mim vazio, “Aqui no barco”, em cima de mim aparece um homem com menos de quarenta, mas com uma ligeira calvície e de óculos, “O que você faz aqui?”, respondi que estava apenas de passagem, “Entendo. Estava de passagem pela orla, ai, de repente, deu vontade de vir aqui no píer e olhar o mar mais de perto, certo?”, resolvi ignorar o que ele falava e comecei a caminhar para fora do embarcadouro, “Hei, hei, espere, você não gostaria de tomar um trago comigo”, e balançou uma garrafa do que me parecia uísque para fora do barco. Parei, olhei para o barco, para a garrafa, olhei para o tumulto das ruas da Ponta do Diabo, “Hei, o que eu posso fazer com você?”, nada, eu pensei. Voltei para o barco. Ele jogou uma escadinha para fora, “Meu nome é Luiz”, entrei no convés, “Sou Carlos Carvalho”, ele me passou a garrafa e eu acendi mais um cigarro sentado na proa, ao lado dele. “Diga-me, Carlos Carvalho, você vem sempre aqui no cais?” Virei a garrafa e expliquei que eu era o dono do New Hope. “Ah, o New Hope, o famoso New Hope. A melhor boate da Ponta do Diabo... Eu costumava ir muito lá, na época do seu Castro. Hoje, nem isso”, passei a garrafa para ele, ele virou de uma vez a garrafa e ficou uns quinze segundos com a garrafa despejando a bebida, “Vim para cá, há muito tempo atrás”, me devolveu a garrafa, “Nos conhecemos na faculdade, há quase vinte anos atrás. Ela fazia uma matéria comigo. Na época eu escrevia versos de amor para ela e ela se apaixonou por mim. Ela dizia que eu era poeta”. Ele deu uma pausa, estava quase deitado no barco, falava olhando para frente, para o nada, como se eu não estivesse ali, “Eu a amava, ela me amava, nos casamos. Mas ninguém entendeu. Ninguém entendia nenhuma das minhas poesias, ninguém entendia nada... Ela podia, ela me ajudou no meu primeiro livro, um livro só de poesias minhas para ela... Ninguém entendeu... Só ela... Só ela gostou...”, meus olhos começavam a ratear, mas a voz dele, grave e forte, me prendia acordado, “Depois ela me ajudou num romance. Eu fantasiei a nossa vida num livro, todas as nossas viagens, os nossos momentos mais bonitos, mais íntimos, mais delicados... Chamaram de piegas, de sentimentalista, mas não importava, ela adorava, ela realmente gostava”, ele deu uma pausa para respirar e continuou, “Até os meus melhores amigos... Até eles disseram que eu me aproveitava dela”, sua voz ficou embargada, “Resolvemos mudar... Por isso viemos para cá... Aqui poderíamos começar uma vida nova, fazer tudo de novo... Mas ela morreu”. , começou a chorar baixinho, deitado no chão de bruços, com o rosto tapado. O choro diminuiu até que percebi que ele dormia. Deitei e dormi também.