Ele me esticou uma garrafa de água e por um momento esteve na frente do sol. Quando se mexeu, coloquei um braço na altura do rosto para me proteger da claridade, mas continuei no mesmo lugar. “Você não quer deitar lá dentro, não?”, me sentei e olhei para o lado onde ele estava. Luiz segurava o timão dentro da cabine com os seus óculos e um cigarro que queimava. Me levantei e percebi que só havia mar por todos os lados. Estávamos longe da costa de Nova Esperança e de qualquer costa. Andei na direção dele, “Onde nós estamos?”, “Queria navegar um pouco, mas saímos tão cedo que achei que não deveria te acordar”, “Mas eu tenho que trabalhar hoje...”, “Não se preocupe, voltaremos com tempo suficiente para você ir no New Hope”, “Mas...”, “Aproveita e pega para mim gelo lá embaixo. Tenho um uísque muito bom, mas sem gelo, nesse calor, não passa na garganta”. Fiquei parado, olhando para ele, do lado de fora da cabine, ele nos dirigindo para algum lugar qualquer. Decidi, então, pegar o gelo, já que não mudaria nada. “Onde está o uísque?”, perguntei ao voltar. “Ali”, e me apontou um pequeno conjunto de garrafas que ficava debaixo de uma mesa. Apanhei uma a uma, todas escocesas, duas estavam vazias, duas cheias e uma pela metade, “Essa foi a de ontem”, ele me olhava e apontava para a garrafa na minha mão, “Vamos acabar com ela”.
O barco parou de repente. “O que foi?”, perguntei, ele desligou o motor, saiu da cabine, jogou uma escada de cordas para fora do barco, “Eu gosto de parar no meio do nada. Parece que sou o primeiro homem em todos os tempos a pular nesse exato lugar”, tirou a camisa, a bermuda e pulou de sunga na água. Nadou um pouco no meio das ondas, parou e virou-se para mim, “Cara, faz um favor para mim”, eu me aproximei da borda do barco, “Você está vendo uma alavanca no popa?”, confirmei com a cabeça, “Vê se você consegue solta-la para colocar a âncora. Eu me esqueci de fazer isso”. Eu, meio cambaleante, me dirigi para lá, “Depois pula na água. Está maravilhosa”.
Ficamos pouco tempo nadando porque a fome apertou e decidimos ver se havia algo para comer. Comemos, bebemos, tomamos um banho e decidimos que já era hora de voltar. “Onde você mora?”, perguntei para o Luiz, “Aqui”, e não se moveu. “Por que você andava sozinho no píer ontem?”, foi a vez dele de argüir. Olhei para ele, com o meu copo de uísque e gelo na mão, balançava, balançava, “Há quanto tempo você está aqui?”, ele recuou um pouco, eu olhei para ele, o cara que havia me resumido sua vida no dia anterior, provavelmente nunca mais iria encontrar com ele novamente, o cara que morava no meio do oceano, que esbarrei sem querer, por coincidência, “Menos de uma semana”, “A sua vida deve ter mudado muito, depois que você veio para cá, não?”, olhei lá para fora e confirmei, ele se aproximou, tocou com a mão no meu joelho e disse em tom fraternal, “Acontece com todo mundo”. Ele se levantou, e foi para a cabine. Ficamos em silêncio por um longo trecho até avistarmos a costa. “Carlos, eu gostei de você”, eu, que olhava para fora do barco, para o pôr-do-sol, voltei para ele, “Eu tenho um colírio aqui”, e se virou para mexer na sua bolsa. Eu fiquei pensando se tinha escutado direito. Colírio, será isso que ele dissera?, “Quase ninguém em New Hope conhece esse colírio. Acho que você vai gostar...”, sim, ele dissera colírio. Mas, por que eu iria gostar de um colírio?, “Aqui”, ele tirou de uma bolsa um frasco comum, azul, igual ao que podemos comprar em qualquer farmácia, “Me parece comum”, Ele deu uma meia risada, “Ele pode ser qualquer coisa, menos um colírio comum”, levantou a cabeça e pingou uma gota em cada olho, “Tome”, e me ofereceu, “O que isso faz?”, “Bem, você gosta desse pôr-do-sol, você acha esse pôr-do-sol bonito?”, olhei para fora, o céu estava avermelhado, o mar escuro e parado, nenhum ar circulava, ele se aproximou de mim, “Você acha isso bonito?”, acenei com a cabeça, ele disse com uma voz grave e baixa, “Isso pode tornar essas cores, essa vista, esse pôr-do-sol eterno”, olhei para ele rapidamente, ele segurava o colírio na mão, “Basta pingar um gota em cada glóbulo e escolher uma vista, qualquer coisa”, me estendeu o colírio, “Tome”, peguei o colírio, olhei para o teto e pinguei uma gota em cada. Abaixei a cabeça direto para o sol que sumia, “Nada, não aconteceu nada”, ele arrastava uma cadeira para a beira do barco que navegava vagarosamente em direção ao porto,“Calma”.
O laranja do sol se quebrou em azul escuro, azul tempestade, azul marinho, vermelho sangue, néon, rosa pálido, amarelo claro, amarelo giz, laranja escuro, claro, o mar verde abacate, oliva, fosco, marciano, azul pastel, bebê, marinho, elétrico, amarelo pálido, vermelho sangue, o barco branco, creme, amarelo banana, oliva, vermelho verdadeiro me olhei, minha pele vermelha tijolo, rosa-tropical, amarelo pálido, areia, pêssego, salmão, laranja outono, com traços violetas que andavam, minhas roupas tinham cores que se misturavam a medida que me mexia, olhei para o Luiz, ele parecia ter sido pintado em aquarela, com pinceis largos, que borram, “O que é isso?”, eu disse um pouco assustado, “Calma, Carlos. Sente-se aqui, ao meu lado, e aproveite esse pôr-do-sol único, que você nunca mais vai encontrar um igual”. Fui para a beira do barco olhar a água que batia no casco, e se misturava, como se escorresse um pedaço do barco junto, e descesse na maré, levantei a cabeça e eu podia perceber o sol pegando fogo, queimando, escutava os estalos das chamas, não sentia o calor, mas podia ver o sol ardendo. Percebi uma brisa do mar, bem de leve, fechei meus olhos e senti uma sensação agradável de conforto, como se a brisa me envolvesse num abraço, um abraço úmido e delicado. Olhei para o Luiz, um borrão de tintas sentado, virado para o sol, “Luiz, eu posso ver o sol pegando fogo”, “É sensacional, não é?”, “Olha o mar, cara, olha o mar”, cada onda parecia uma mistura de várias cores que eu podia perceber cada detalhe, cada nuance, cada pigmento. Me deu vontade de rir de felicidade por poder enxergar cada pedaço das coisas em detalhe, como se eu quebrasse a onda de cor e enxergasse mais cores que o normal. Fiquei olhando para o sol que entrava no mar, e comecei a reparar no barulho do mar que batia no barco, um barulho ritmado, como se pudesse entender cada entrelinha, como se eu tivesse o código para desvendar os detalhes. Olhei para o píer que se aproximava, os barcos subiam e desciam ritmados, todos pintados a mão em detalhes por pinceis de pontas largas, cada barco com cores diferentes. A Ponta do Diabo com seus letreiros luminosos apagados, as suas casas com a mesma arquitetura, dava para enxergar um pedaço da rua principal. A praia de Nova Esperança com pontos que eram pessoas, que se moviam vagarosamente, entravam no mar, misturavam suas cores com as do mar, os quiosques marrom, marrom avermelhados, cor de noz, areia, a areia que brilhava com as primeiras luzes acesas da praia, o sol agora que já foi, já tinha sido abduzido pela água, tinha sumido, eu queria rir, gargalhar, nunca fui tão lúcido quanto naquele momento, eu queria que nunca acabasse, poderia viver a minha vida inteira assim, enxergando mais que todo mundo, olhei para o Luiz, ele havia se levantado, guardado a cadeira e ido para a proa. Estávamos bem perto do píer e o marinheiro aguardava a corda. Andei na direção dele, a cada passo sentia o piso duro da madeira de encontro com o meu sapato, que passava a pressão para o meu pé, olhei para o meu pé, que sustentava o meu corpo inteiro, a minha perna que segurava tudo, olhei para frente, o Luiz, “Luiz, quando é que isso acaba?”, ele me olhou, riu um pouco, os dentes apareceram, a mancha amarelo-areia-branco-creme saiu da boca e foi até a testa dele que tinha punhados de cores misturadas como se dançassem, “Aguarde um pouco que tudo volta ao normal”, “Luiz, você está sem rosto”, “Você também, cara, você também”. Luiz jogou a corda para o marinheiro que não pude enxergar o rosto, uma mistura de marrom, cinza, preto, azul, creme, com o uniforme creme, com muitos detalhes, tanta informação, tantas cores, tantos detalhes que não pude guardar nenhum deles. Todas as coisas tinham detalhes demais, cores demais, comecei a reparar apenas em algumas, saímos do barco pela prancha que ligava ao píer, “Consegue chegar lá?”, Luiz me perguntou com uma voz altíssima, parecia que gritava, “Acho que sim”. Ele estava virado para mim, pude perceber os dois olhos em cima de mim, o nariz estava ali, era como se ele tivesse ficado gasoso, mas estivesse condensando, dava para reconhecer a boca, “Eu acho que vou dar uma passada no New Hope”, e me esticou a mão, avistei a mão e os dedos que se mexiam na horizontal, contei um, dois, três, cinco dedos, apertei sua mão, “Será uma honra”, a minha voz saiu tremida, ondulada. Me virei e andei na direção do New Hope, olhava para o chão de paralelepípedo que parecia muito próximo a mim, eu andava num andar mais alto que os outros. Havia poucas pessoas na rua, dei uma corrida para chegar no New Hope, mas ele parecia se distanciar, corria e não saia do lugar, até que tropecei e cai com as mãos no chão. Senti uma dor aguda de corte, olhei para a palma da minha mão, consegui perceber as linhas da vida, do amor, de dinheiro e um arranhado em ambas, olhei para frente, a porta do New Hope. Fui direto para a minha sala sem falar com ninguém.
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