sexta-feira, 28 de junho de 2002

Este é um texto original. Não tem parentesco com nenhum outro. E só existe porque outros existem. Quem escreveu isto não acredita em criações. Mas em adaptações. Ele acredita em “eu”, mas, dessa vez, não dirá nada. Esse texto conta a história de alguém que tinha que escrever algo. Esse algo tinha que ser lido, em voz alta, numa festa. Quem escreveu isto não se sente bem assim. Não gosta de ler nada em voz alta. Muito menos algo seu. Não gosta de aparecer. Gosta das sombras, gosta dos esconderijos, gosta daquelas horas em que, de repente, sem explicação, piscamos e perdemos o lance fundamental. Ele aparece nessas horas. De relance, como se fosse a inclusão de um fotograma em um vinte e quatro avos de segundo. Talvez todos viram, mas ninguém percebeu a diferença. Ou ficaram tão incomodados que preferiram esquecer.

O texto fala sobre um garoto de vinte e poucos anos, um garoto comum, como qualquer um que a gente encontra nos cinemas nos dias de semana, um garoto no qual tropeçamos ao andar pelas ruas com as mãos nos bolsos e que deve escrever algo para ser lido em uma festa. Uma festa que ele não conhecia quase ninguém. Ele aproveitou e escreveu algo sobre um garoto que deveria escrever algo. E por coincidência, o personagem principal, escreveu algo sobre um garoto que deveria escrever algo para ser lido em uma festa. E não acabou. Como se tivessem tirado uma foto de uma televisão vazia e transmitissem diretamente para a televisão. Veríamos o nada absoluto.

Ele imaginava as pessoas na festa. Sentia-se longe de tudo e de todos, não porque quisesse, mas porque não se via capaz de comunicar-se à altura de todos. Essa festa tinha um particular: todos deveriam escrever algo para serem lidos. Como se todos se desnudassem na frente de todos. E se todos estivessem desnudos, ninguém estaria nu. Como se o nu fosse relativo. E como se qualquer coisa seja relativa, bastando querer.

Todos, então, escreveram sobre eles mesmos, sobre a festa e sobre o motivo da festa. O aniversário de alguém que todos prezam, estimam e, principalmente, gostam. Alguém que todos querem ficar juntos, todos querem, no mínimo, sugar alguma coisa, trocar, falar, ouvir. Essas coisas. Meio como a metáfora batida de fonte e beber água. Meio como numa troca por osmose. Ao ficar por perto, o mais concentrado recebe solvente do menos. Tiveram ainda aqueles que escolheram textos antigos sobre qualquer coisa, mas que eles acharam bons. Quem escreve este texto não teve criatividade suficiente. Escreveu uma história sem fim. E como todas as histórias sem fim, sem importância, sem motivo e sem razão. A razão é escrever, e basta. E basta? Para perguntas complicadas o melhor é refugiar-se.

Quem escreve este texto deve estar num canto, se eu o conheço bem. Provavelmente bebendo uma cerveja e observando a diversidade da fauna humana. Com a observação veio o medo, provavelmente. Que, com a procura pela diferença a todo custo se perde a noção do diferente. Que, com a prioridade dos valores de outras gerações, percebe-se uma falha no processo de inovação. Que, com a assimilação de uma cultura que provém das beiradas, de uma terra abaixo do solo, aceita-se estar no foco da luz e longe da originalidade. Quem escreve o texto se olha e fica completamente assustado.

Vocês já devem ter percebido que a história não tem fim. Que tudo depende da vontade de vocês. Que ao mero sinal é interrompida a sentença ou, quiçá, a palavra. Devem ter percebido que a história não há sequer longe de nós mesmos. Nós somos recortes encontrados em páginas. Nós somos retratos em letras. Nós somos descritos, nós somos destrinchados, nós somos desacreditados por qualquer um. Quando todos perceberem o poder que tem ao construírem letras, palavras e sentenças, estaremos perdidos, ou completamente salvos. Mas é mais fácil nos conhecermos do que todos saberem o poder das letras. Quem escreve fica triste com tanto talento desperdiçado. E só.

Então vem a hora de ir embora. Como ir embora sem que ninguém perceba. Como desaparecer, sumir, não existir, entrar debaixo da areia que compõem o solo e ir se esgueirando até um porto seguro. Podem citar a maneira francesa de fazer esse tipo de saída, mas ainda é pouco e arriscado. A melhor maneira de não ser encontrado é nem aparecer. Então, quem escreve este texto não foi na festa. Não quer falar em público e tem medo do que pode acontecer quando isso ocorrer.

Ou ainda quem escreveu esta história deve fazer algo ainda nessa noite, mas mesmo assim tenta enviar o texto que foi pedido e encomendado. Tudo bem que não é nenhuma obra prima. Apenas uma história sem fim. Um exemplo visual: a cobra mordendo o próprio rabo. Nada demais. Ele escreve a história que já foi contada.

Quem escreveu esta história até que não gosta de público, quiçá falar em público. Mas ele não se importaria de ir à festa e dar qualquer tipo de desculpa para que ele não falasse em público. Isso é realmente fácil. O problema é que sempre há problemas que impedem que tudo transcorra na mais absoluta ordem. Os já famosos entraves. Aqueles que ignoram todas as horas marcadas na agenda. E por isso tudo, quem escreveu este texto, provavelmente o atual dono do “eu”, não foi, não está, nem vai à festa na sexta.

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