segunda-feira, 22 de julho de 2002

escritores II

Eu queria escrever uma história sobre um escritor, ou apenas um escrevinhador, que descrevesse a obra de um outro escritor que escreveu a vida inteira sobre escritores das mais variadas linhagens, mas perdeu todos os textos num incêndio antes de morrer também queimado.

Este escritor, que poderia se chamar Roberto (ou qualquer outro nome como Carlos, Jorge, Fernando ou Luiz) dividiu todos os escritores em dois grandes filos. Nunca deu nome nenhum a eles. Apenas apelidos que só faziam algum sentido para os seus mais íntimos.

Um dos retratados por Roberto era um escritor de rua, como ele chamava. Vivia na cidade. Era um ser urbano que se alimentava de tudo que uma cidade pode produzir. Digeria todo o lixo e devolvia em forma de literatura. Escrevia longos romances ou pequenos contos. Ou ainda poesias das mais diferentes formas e tamanhos sobre todo o nosso cotidiano, sem esconder ou maquiar nada. E conseguia empregar beleza nisso.

Outro era um desesperado pela vida e ficava inconformado como, nós, os seres humanos, a tratavam. Canalizava toda a sua angústia e o seu desespero para o papel. Só conseguia sobreviver a base desse tipo vício. Quando tiraram isso dele, após ser preso por imoralidade, morreu louco.

Na beira da praia, de frente para o mar, vivia um romancista, muito conhecido e já citado outras vezes. Tinha duas filhas pequenas. Gêmeas e louras. Gostava de andar na areia de bermudas brancas com o cachorro e as filhas no cair da tarde.

Havia o erudito. Morava num apartamento espaçoso numa metrópole no meio de várias estantes de madeira de cor escura preenchidas com livros. Quase não saia de casa e, se o fizesse, era para ir numa das muitas livrarias e bibliotecas da cidade. Dizia que podia descrever de cinqüenta e sete formas diferentes um focinho de tigre, mesmo sem nunca ter visto um na vida. Esse escritor dizia que tudo que ele precisava na vida estava ali, e apontava, nos livros. Nunca se envolveu com nenhuma mulher ou teve um amigo de longa data.

O erudito, depois de muito tempo lendo, resolveu escrever. Experimentou formas, tipos e personagens. Um deles foi um músico, um maestro, também erudito, que pedia sempre para a sua orquestra tocar em seqüências, uma nota diferente da anterior. Pedia para modificar a música de ensaio para ensaio, assim sempre teria uma música inédita, apesar de não acreditar no ineditismo.

Uma das óperas desse maestro remetia a outros séculos, aos cantadores de estrada que compunham os cenários de peças teatrais. Daqueles que andavam com um bandolim a tira-colo e compunham textos rimados, muitos poéticos, para narrar a cena que transcorria. Nessa ópera especificamente, o cantador era a personagem principal. Todas as suas falas eram rimadas e davam o ritmo de toda a encenação.

Um dos personagens dessa ópera era um poeta, que também usava versos rimados por causa da época retratada, e que gostava de escrever sobre o futuro. Ele antecipava para todos quais seriam as modificações que ocorreriam no mundo, mas ninguém acreditava nele.

Ele cita, por exemplo, homens que escreviam diariamente em pedaços de papéis e que seriam distribuídos a todos. Como se contassem a história na hora e a mostrassem. Como uma forma de compartilhar a informação imediatamente.

Nesses pedaços de papel que seriam distribuídos diariamente, alguns escritores montariam as suas histórias, capítulo a capítulo. Haverá muitos, sugeriu o poeta visionário, que escreverão, mas somente algumas obras sobreviverão.

Uma das personagens dessas obras diárias será um escritor jovem também já citado outrora. Um garoto atormentado pela idéia de escrever. Não consegue dormir, alimenta-se mal e vive a base de estimulantes para poder colocar toda a sua obra para fora. Dizia que cem anos sem dormir não seriam suficientes para expressar tudo o que passava na sua cabeça.

Esse garoto freqüentava a noite, os bares e as tavernas da sua cidade a procura da vida que ele pudesse aspirar. Conheceu vários artistas, dos que não admitem ser e dos que repetem várias vezes mesmo sem nunca terem percebido o quão grave é esse erro.

Um desses artistas que não se dizia artista era um pintor que cresceu retratando a maioria das pessoas que viviam nessas noites. Logo depois de completar um quarto de século, disse que deveria mudar de vida drasticamente. Começou a estudar todas as obras tradicionais e as desconstruiu. Toda a ordem que se conhecia virou pó. Sua obra, a partir daí, remava contrária a idéia acadêmica e clássica. Todos os quadros que produziu não foram entendidos por ninguém, ou quase ninguém. Morreu pobre e desamparado. Algumas décadas (ou séculos depois) foi reverenciado e transformado no expoente máximo da sua era.

Outro artista contemporâneo do garoto era já um senhor idoso na época. Viveu a vida inteira com a sua esposa e dedicava todos os seus livros, que ultrapassaram fronteiras, que destruíram antigas convenções, a ela. Seus livros eram naturais, mas cerebrais, psicológicos, mas com certeza, mágicos. Nunca descreveu o rosto de ninguém, mas toda a sua linha de raciocínio. Morreu logo depois da mulher, já com sessenta e poucos anos.

O garoto viveu apenas vinte e seis anos e também morreu. De tuberculose ou pneumonia. Junto com ele foi encontrada, intacta, uma obra completa sobre um outro autor de terras distantes que dizia que todas as coisas do mundo já tinham sido desvendadas ou criadas. Ele apostava em mudanças de tons, em misturas de texturas, brincava com a linha narrativa, destruía toda a seqüência e a reconstruía de maneira completamente diferente e diversa.

Os personagens, para ele, poderiam mudar de atitude no meio do livro sem explicar, ou com apenas uma sugestão. Ou, a força da narrativa vinha condensada no início, no meio ou no fim do texto. O resto servia apenas para interligar as atitudes.

Um dos seus textos mais conhecidos fazia referência ao infinito. Ele dizia que poderia retrata-lo. Dizia que poderia escrever infinitamente sobre o infinito. Dizia que poderia representa-lo colocando um espelho diante de outro sem que houvesse a entrada de luz para nada. Não poderíamos olhar, não haveria como observar a representação, mas estaria ali. Em cada camada, sairiam outras camadas. A cada reflexão da imagem, poderia ser desenvolvida outra imagem. Aquilo seria infinito.

Nenhum comentário: