segunda-feira, 24 de fevereiro de 2003

diálogos

O que mais me incomodou no início, desde o dia da mudança, foi a janela. O sol entrava de manhã e me fazia acordar todo dia bem mais cedo que o que estava acostumado. Minha mãe prometeu comprar um black out para tornar o quarto mais escuro, mas sabia que iria demorar um pouco por causa de toda a confusão propicia ao período.

Que, excetuando a óbvia mudança de locação, tinha sido até, pode se considerar, tranqüila. Contudo me senti um pouco sozinho assim que cheguei. Na casa antiga, cresci com um grupo de amigos bastante unidos. Agora, nessa cidadezinha, eu tinha apenas o quarto, meu pai e minha mãe e só, nada mais.

Ainda no primeiro dia, minha mãe mandou que eu arrumasse as roupas no armário. Então, para ajudar, liguei o som e coloquei o primeiro cd do “Nirvana” que comprara, “Nevermind”. Em seguida, comprei todos os outros. A primeira música, “Smell like teen spirit”, e eu pulava, saltava, gritava. Minha mãe estava acostumada, mas pediu que maneirasse, para que os novos vizinhos não reclamassem logo assim de início. Fingi que diminui o volume e, quando minha mãe saiu, aumentei ainda mais. Ao terminar de arrumar o quarto, desliguei o som para sair. Ao apertar o botão, percebi que alguém havia colocado alguma coisa do “Stone Temple Pilots” que não identifiquei na hora. Parei um pouco para prestar atenção, escutei e sai em seguida.

Tivemos que nos mudar para a cidade pequena porque meu pai fora promovido a coordenador geral de uma das filiais da empresa de produtos químicos que ele trabalha. Meu pai escolheu as férias do meio do ano para fazer a mudança para que eu perdesse o menos possível o contato com as aulas. Sabiam que o ano letivo seria complicado, mas era ainda mais complicado adiar por mais seis meses a mudança da família. Meu pai já morava sozinho havia seis meses, e só agora tinha se firmado realmente, por isso só agora decidimos nos mudar mesmo. Antes o visitávamos quase todos as semanas.

Logo as aulas começaram e me senti um pouco isolado no meio daquelas pessoas que, no mínimo, se conheciam desde o início do ano. Um dia tive que estudar alguma coisa. Então, coloquei um som mais calmo, para poder me concentrar, um som que gostava há muito tempo, mas que era de certa forma desconhecida. “Pavement”, “Wowee Zowee”.

A escrivaninha ficava perto da janela para aproveitar a luz que tanto odiava nas manhãs dos finais de semana. Num determinado momento observava a paisagem que enxergava dali, um morro com vasta vegetação intacta. E, logo assim, percebeu que de algum lugar perto vinha um som conhecido. Também era “Pavement”, mas “Terror Twilight”, um outro cd que eu também tinha. Levantei-me e, primeiro, fui à janela tentar achar de onde vinha o som. Botei a cabeça para fora e olhei. Parecia que o som vinha do alto. Fiquei intrigado, voltei para o próprio aparelho de som, tirei o disco que tocava e coloquei o mesmo do outro apartamento, esperei uma das faixas para sincronizar. Era a minha preferida “The Hexx”. Acabou a música, resolvi guinar, o primeiro do “Rage Against the Machine”, disco homônimo, e aumentei. O som que vinha do outro apartamento cessou. Quando acabou a faixa escolhida, “Bullet in your head”, percebi que veio outra música só que de outro cd da banda, “The ghost of Tom Joad”. Preferia o primeiro do “Rage against”, mas aquela música era muito boa, não podia negar, era a melhor do disco de regravações. Troquei ao final da faixa e coloquei “Audioslave”, para fazer uma ponte direta. Teve como resposta “Sistem of a Down”. Pensei que o sujeito era ousado, então resolvi virar para “Smashing Pumpking” para surpreendê-lo. Ele me respondeu com “Sonic Youth” e “Pixies”, “The Cure”, “The Police” e minha mãe me chamou para fazer alguma coisa.

Me lembro que sai com um sorriso no rosto e minha mãe me perguntou o motivo daquilo, daquela forma que só mães sabem fazer, “Viu uma passarinho verde, filho?”. Contei para ela o que tinha acontecido e ela falou, “Que bom filho. Viu, não disse para você que em pouco tempo você já ia fazer amizade por aqui?”, mas como toda mãe, aproveitou para ajustar uns parafusos, “Mas, filhinho, vê se coloca um pouquinho mais baixo, o som estava nas alturas”. Ri um pouco e respondi, “Mas mãe não tem como escutar ‘Audioslave’ baixo. É imoral, quase”, ela fez uma careta simpática.

Noutro dia, ao entrar no quarto escutei logo de cara um som muito calmo, tranqüilo, que eu adorava desde a primeira vez que tinha escutado, mas que não tinha conseguido comprar o cd. “Zero Seven”, uma banda que fazia uma mistura de trip hop com música lounge muito bacana. Deitei na cama, peguei um caderno com minhas poesias e escutei duas ou três músicas assim. Ao final, fiquei com vontade de dialogar um pouco, coloquei o cd ao vivo do “Portishead” que eu adorava, e não tinha ninguém que não gostasse. Um dia, lembro que mostrei para a minha mãe e ela adorou. Disse que era um pouco tristonho, mas lindíssimo. O sujeito tirou na hora o som dele e ficou escutando o meu. Peguei pesado, coloquei “Glory Box”, “Roads”, “Over”, na seqüência. Depois, tirei o som e deixei que ele colocasse alguma coisa, ele escolheu o “Mezaninne” do “Massive Attack”, as três primeiras, as melhores do disco, terminando com “Teardrop”, lindíssima com uma voz feminina de quase chorar. Pensei em colocar alguma coisa diferente de trip hop, mas que fosse tão bom quanto, coloquei “DJ Shadow”, o primeiro cd dele a primeira música, “Best Food Forward”, que é apenas uma introdução para a sensacional, “Buiding Steam with a grain of salt” e a outra perfeita do cd, “Napalm Brain Scalter Brain”. Quando terminou ficou um silêncio, como se ele quisesse mais, então coloquei o cd que o DJ Shadow fez com vocalistas conhecidos, chamado “Unkle”. Um disco sensacional, talvez o melhor cd que já tinha escutado, naquela época. Comecei com “Lonely Soul”, de vocal do Richard Aschcroft, do “Verve” e em seguida a tristíssima, “Rabbit in your Headlights”, com Tom Yorke. Ele não me respondeu. Pensei que talvez tivesse ido embora. Quando já tinha desistido e ia sair do quarto, escutei que ele havia colocado o “Kid A”, do “Radiohead”, fui direto para a janela olhar para cima, talvez ele estivesse ali. O sujeito tinha ótimo gosto musical, tinha que conversar com ele, mas nada acontecia. Voltei para a minha cama, para o meu caderno de poemas e acabei dormindo assim.

No almoço do dia seguinte, perguntei a minha mãe se ela conhecia quem morava no apartamento de cima, “Por que meu filho, algum problema?”, respondi que não havia nenhum, “É que o cara fez de novo, mãe. Ele colocou as músicas de acordo com as que eu colocava. Achei sensacional e...”, “Por que, então, você não chamou ele pela janela, meu filho?”, “É mãe, até que eu pensei nisso, mas, pensei que a senhora podia reclamar, eu tava fazendo barulho e tal”, menti. Coloquei a culpa na minha mãe. Não tinha coragem de puxar assunto assim, com alguém que não conhecia direito. Falaria o quê? “Boa música, hein?”. Ou, “O que você quer escutar?”. Não, devia haver algum jeito. “Mãe, você não gostaria de descobrir isso para mim, não?”, “Filho, a mamãe tá ocupada com um montão de coisas. Não dá tempo para fazer essas coisinhas não”. Tudo bem. “Tudo bem, mãe”, o que haveria de fazer.

Outro dia empolgado, pensei, hoje vou fazer uma sessão de música brasileira, comecei com Tim Maia, um cd duplo coletânea que eu tenho. Coloquei algumas músicas óbvias, e parti para uma raridade o “Tim Maia racional”, tinha os dois volumes. Interrompi uma música para saber se ele estava ali em cima e ele me respondeu colocando o cd do filme “Cidade de Deus”, um filme que eu adorei. Será que o sujeito gostava também de filme, como eu? O cara devia ser muito gente fina. Ele deu a deixa, coloquei Jorge Ben Jor, da época que ele não tinha Jor. Ele voltou com Mutantes, eu devolvi rock anos 80, primeiro Legião Urbana, depois Plebe Rude, ele colocou “Puteiro em João Pessoa”, e depois foi para o Rappa. Coloquei Mundo Livre s.a. e em seguida Chico Science e Nação Zumbi. Quando terminou “A cidade”, dei a deixa para ele colocar alguma coisa, mas veio o silêncio. Conclui que ele deveria ter saído.

Saí do quarto louco para contar para a minha mãe o que tinha acontecido novamente, “Mãe, mãe, hoje o nosso ‘set’ foi brasileiro...”, “Filho, espere um pouquinho, quero te apresentar...”, “Mãe, o cara ai de cima é bom mesmo”, “Meu filho, se acalme. Quero te apresentar...”, “Ah, mãe...”, “Meu filho, seja educado. Tenho que te apresentar o vizinho daqui de cima”, e saiu de trás dela uma menina pequenina, loirinha, de olhos claros, linda, linda, linda. Fiquei sem palavras, mas ainda pude escutar, “Você tem um bom gosto musical” daquela voz doce.

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