segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Os cínicos

Ontem assisti novamente a "Casablanca" e fiquei me perguntando por que todo mundo acha Rick "o cara". Mesmo sendo mostrado como o homem que "não arrisca o pescoço por ninguém", que não se senta nas mesas com os clientes de seu bar, não dá trela para gente desconhecida, barra estranhos no seu estabelecimento, ele é visto como um homem charmoso e até irresistível.


Ugarte, o homem que tem os passes-livre e os deixa com Rick, diz inclusive que só confia nele porque ele o despreza. E não é só ele que fica hipnotizado pelo novaiorquino que tem respostas para tudo, sempre afiado numa ironia desconcertante. Ele é "apresentado", por exemplo, para Ilsa pelo capitão Renault como o homem por quem, se o policial fosse mulher, seria apaixonada. Também vemos, ainda bem no início do filme, outra mulher, Yvonne, que nitidamente ama o dono do bar-cassino. Além da própria Ilsa, que é casada com um líder da resistência aos alemães, um herói de guerra, mas, mesmo assim, se confessa caída pelo sujeito.

Rick, como todo mundo sabe, foi imortalizado na pele de Humphrey Bogart, um ator cujos papéis - se não todos, pelos menos uma boa parte - eram uma mistura de homens cínicos, irônicos, durões, inteligente, com tiradas incríveis e um senso de humor que não perdoava ninguém. Era um perfil, um arquétipo masculino, bastante valorizado até metade do século passado, antes dos homens descobrirem que as mulheres também gostam de sensibilidade do outro lado.

Mas o curioso sobre Rick é que Renault, que vai se tornar uma espécie de amigo para Rick, fica, durante todo o filme, tentando entender que tipo de personalidade é aquela. Se por um lado, o dono do bar não gostava de se envolver com outras pessoas, ele tinha um histórico de apoiar em guerras o lado "dos mocinhos", ou seja, contrário aos fascistas. O que demonstrava que, se ele não se importava agora, ele já tinha se importado em outros tempos.

Renault acredita que esse cinismo de Rick é apenas uma fachada para o seu "eu-verdadeiro", alguém sentimental. Rick se fechou dentro de uma carapaça após ter sido abandonado por Ilsa, em Paris, logo que os alemães entram na cidade. A partir daí, decide viver sozinho. Ilsa, por sua vez, acredita que ele, apenas, sente pena de si mesmo, e prefere sofrer a enfrentar o mundo. Assim, evita o primeiro contato, para não ter mais nenhum outro.

Acredito que Rick desperta essa admiração por onde passa por uma combinação de fatores. Em primeiro lugar pelo ar de mistério. Já que ele não se envolve, ninguém sabe ao certo quem ele é. Depois, vem o fato de ele ser inteligente e irônico, o que alimenta a vontade dos outros em ouvir sua próxima tirada. Mas o principal, talvez, seja esse sentimento que Renault consegue exteriorizar. É como se todos soubessem que ele não é assim, que não é possível haver um sujeito apenas irônico, cínico, que isso é um disfarce para algo mais profundo, e esse outro ser não vem à luz facilmente. As pessoas, talvez, queiram escavar esse exterior para encontrar a verdade que está lá dentro e por isso ficam encantadas. Como se esses personagens tivessem uma segunda dimensão a mostrar, enquanto os demais são mais simples de entender. Os cínicos somos assim.

ps. a cena em que os alemães começam a cantar no bar e os demais começam a responder com a Marselhesa é, talvez, a melhor de todo o filme.

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