quinta-feira, 28 de junho de 2012

Homem democrático

Nas últimas semanas, fui abordado por dois amigos de origens diversas que, tendo convivido com brasileiros e anglo-saxões [a nossa famosa divisão norte-sul] vieram me falar que preferiam a maneira como nós tratávamos a vida. Tive que gastar bastante saliva para falar que nossas relações cordiais [salve Sérgio Buarque de Holanda] tinham, como todas as relações, vantagens e desvantagens.

Na verdade, imagino mesmo seríamos melhores humanos se pudéssemos passar por essa dicotomia cordialidade x meritocracia, catolicismo x protestante, sul x norte. Porque o mérito, essa ética praticada pelos anglos-saxões também tem os seus problemas graves, como a competição acirrada, o individualismo, o isolamento, a falta de contato com o outro. Enquanto vivemos em uma sociedade, portanto, dentro de um organismo gregário [que Nietzsche não nos ouça], teríamos que encontrar uma terceira via, que não fosse necessariamente uma média aritmética das duas anteriores, mas que tivesse vida própria, que caminhasse com as próprias pernas.

Sugiro o homem democrático. Aquele em que as relações em que todos são iguais, independentemente das suas relações e dos seus méritos. Iguais, claro, levando em conta as suas desigualdades. Porque poucas coisas são mais desiguais que tratar desiguais igualmente. Democracia não é a ditadura da maioria, mas a possibilidade de cada um ter voz, portanto individualidade, e ser representado, logo, participar da sociedade. E a relação democrática teria essa consciência.

Um exemplo de como isso é mais possível que utópico. A maneira como os pobres são tratados aqui na UK é extremamente mais digna que os do Brasil. Todos, aqui, têm um mínimo de direitos, que são compartilhados por todos. Outro exemplo bobo: os produtos vendidos como básicos, isto é, direcionados para as classes mais pobres, são extremamente justos: eles não são descartáveis como os produtos dessa categoria vendido nos mercados brasileiros. Todos têm direitos de escolher, de acordo com o tamanho do seu bolso e bolsa, algo que possa servir para ele, mesmo que não tenha todas as vantagens dos mais caros. O nível é mais alto.

Mais um exemplo: as assessorias de imprensa tratam a todos de maneira igual, sem desmerecimento em relação ao veículo em que você trabalha. E, mesmo que haja vantagens para os grandes jornais, porque estamos em um país meritocrático por excelência, todos são, ao menos, vistos como parte de um grande e mesmo grupo, com diversas diferenças, mas a maioria de semelhanças.

Não espero vantagens, espero apenas um tratamento honesto, sem preconceitos de origem, sem relação com os seus méritos, e que tenha um mínimo de dignidade - que falta no Brasil, onde a humilhação é moeda cotidiana.

Talvez seja isso, talvez precisemos na verdade apenas de distribuir a dignidade para as pessoas.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

O divertido Tim Burton

Circula pela internet um vídeo creditado a John Lasseter (diretor de, entre outros, os dois primeiros "Toy story") em que um abobalhado Tim Burton aparece em 1980 trabalhando ainda na Disney. Lasseter pergunta para o espectador, diante do futuro diretor de "Edward Mãos de Tesoura", que desenha com um lápis encaixado na ponta do dedo: "Ele não é divertido?" 
O resto da entrevista com Tim Burton pode ser lida aqui. O vídeo, que não é citado na reportagem, pode ser conferido abaixo:

Irlandeses e ingleses

A Irlanda é um país que faz um belo contraponto à Inglaterra. No que a vizinha tem de opulência, riqueza, grandiosidade, a Irlanda tem de delicadeza, intimidade, companheirismo. Dublin e London, as cidades principais, representam bem esse contraste. A primeira tem 500 mil habitantes, a segunda, quase 8 milhões. Londres é a capital do mundo, talvez mais cosmopolita que Nova York, enquanto Dublin é uma cidade pequena, com todas as vantagens e desvantagens que isso pode ter.

Mas se pensarmos com outros critérios, ficamos com algumas dúvidas em relação à superioridade de Londres. Um dos meus favoritos é o literário. É difícil comparar elementos tão qualitativos, tão subjetivos, tão pessoais. Lembro uma vez de o diretor Jorge Furtado chamar um festival de cinema de competição entre elefantes e geladeiras - o que é melhor? Cada um tem uma opinião diversa. Mas, se pegarmos um critério técnico, por assim dizer, algo que se pode comparar, como o prêmio Nobel de literatura, é possível mostrar que a Irlanda pode fazer frente  à Inglaterra.

A lista de escritores que tinham cidadania britânica e ganharam o prêmio é extensa, tem  dez nomes - enquanto os irlandeses têm "apenas" quatro láureas. Mas comparemos os nomes. Os britânicos receberam o prêmio primeiro com Kipling. Apesar de grande defensor das ideias do império britânico, inclusive tendo sofrido por isso, Rudyard Kipling nasceu na Índia, na então Bombaim. Sua primeira língua, inclusive, foi o hindi. Mesmo que seja apenas um cidadão britânico com tudo o que nós associamos a ele, não podemos esquecer que ele é filho de uma política expansionista da Inglaterra - que é onde eu quero chegar, daqui a pouco.


Em seguida, vem  Galsworthy, cuja principal obra é a saga Forsyte - não muito conhecida do outro lado do Atlântico. Depois, é a vez de  T.S. Eliot, americano de nascimento que assumiu a cidadania britânica - que também explica muita coisa. Após, vem Bertrand Russel, grande filósofo e inglês até o último ancestral, que fez um trabalho monumental escrevendo "Uma história da filosofia ocidental" - mas nenhum trabalho literário ficcional. Em seguida é a vez de  Winston Churchill, e eu fico pensando se o prêmio foi literário ou político. De qualquer forma, Churchill também escreveu um trabalho gigantesco sobre a História do povo inglês - e, novamente, nenhum trabalho literário ficcional.

O próximo da lista é Elias Canetti, um búlgaro que escrevia em alemão, e eu me pergunto se ele deveria entrar nessa lista. O seguinte era inglês e bastante literário-ficcional, para compensar:  William Golding. Depois vem  V. S. Naipaul, e lembramos novamente do império colonial, de Trinidad Tobago e da Índia.  Harold Pinter é o seguinte. Além de inglês, londrino, de Hackney. Mas com ancestrais judeus. A lista se encerra com  Doris Lessing que, adivinhem, nasceu na então Pérsia, e viveu boa parte da vida no Zimbábue.

Já a lista dos irlandeses quase dispensa apresentações: W. B. Yeats, G. B. Shaw, Beckett e  Seamus Heaney - talvez o único menos conhecido da lista.

O que isso prova? Nada, mas podemos especular algumas coisas. A Inglaterra conseguiu tanta divulgação por conta do seu poderia bélico, da sua expansão econômica, do seu grande vício em colonizar e exportar o seu ponto-de-vista para outros. A Irlanda, por sua vez, sofreu com esse expansionismo britânico - tanto é que só conseguiu sua independência em 1921 - e hoje é, nitidamente, um país na periferia do capitalismo - para citar uma expressão conhecida por nós brasileiros.

Os ingleses se aproveitaram de sua força dominadora e sugaram talentos de todos os cantos por onde passaram, Índia, Caribe, Oriente Médio, África. Ou se impuseram, se fizeram importantes, apenas por historiar o mundo [ocidental] ou eles próprios. Ou foram tão imponentes que serviram de chamariz para povos do mundo inteiro.

Mesmo os irlandeses tinham dificuldades de viver na sua ilha, consideradas por alguns provincial. Beckett nega até a língua inglesa e escreve basicamente em francês [fazendo ele próprio a tradução para o inglês]. Shaw vive durante boa parte da sua vida em Londres.

É outro irlandês, porém, que escreve, talvez, a melhor definição sobre a relação entre os dois povos. James Joyce, cujo "Ulysses" é considerado por muitos [principalmente os norte-americanos] o melhor livro escrito em língua inglesa do século XX, fala, via seu possível alter ego Stephen Dedalus, logo no início da sua obra monumental :

"--It is a symbol of Irish art. The cracked looking-glass of a servant ".

Acho que resume tudo.

ps. Sobre Irlanda, Irlanda x Inglaterra e Joyce, leia também:
- "Retrato de Dublin quando Bloomsday "
- "Dublinenses "
- Irlandeses e eleição em Londres
- "'Once': uma vez é impossível "

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Jorge Amado e invejado


A presidente da ABL, Ana Maria Machado, defendeu em evento na última sexta-feira (8) da British Library sobre Jorge Amado, leia reportagem publicada no “Prosa Online”, que a nossa literatura tem dois exemplos fundamentais de triângulos amoroso: “Dom Casmurro” e “Dona Flor e seus dois maridos”.

“O primeiro tem suspeitas, sofrimento e agonia, numa relação que faz homenagem a 'Otelo', de Shakespeare, com os papeis de Otelo, Desdemona e Iago sendo 'interpretados' por Bentinho, Capitu e Escobar, demonstrando que esse caso só pode ser resolvido com um tragédia; o segundo livro é calmo, feliz, estável, levantando questões sobre a monogamia e sobre o público e o privado, tudo numa linguagem falada pelo povo”, discursou Ana Maria para a plateia de maioria brasileira, mas com a minoria britânica curiosa.

A presidente da ABL falou ainda sobre como “Gabriela, cravo e canela” foi importante para mostrar um ponto-de-vista feminino em que a mulher conhece seu próprio corpo e desejo e escolhe se quer ou não ter marido, além de como Jorge Amado sofreu por ser comunista e popular.

Após a sua palestra, em que participou de três mesas, ela falou com exclusividade sobre os motivos pelo qual Jorge Amado é mal visto por parte das universidades brasileiras, que repete um conceito sem revisitar a obra do escritor: “Eu quero que eles o leiam. Se depois achar que é um horror, que achem”. Confira os trechos:

Preconceito do 'Sul':
As universidades do 'Sul' reagiram a certas frouxidões de estilo, principalmente pelo fato de que os modernistas estavam com dificuldades de chegar ao público, com o falar brasileiro, que o Jorge estava fazendo na prática. E não era só o Jorge, o Jorge e o Érico Veríssimo – [a reação] é em cima dos dois, de uma maneira muito forte. Eles compacturam na proposta e sofreram o mesmo destino.

Portugal
Em seguida, o Jorge caiu em desgraça nos meios lusófonos. Porque ele era comunista e o Salazar estava no governo militar, porque amigos do governo português começaram a se queixar da atitude antiportuguesa dele e em seguida porque ele foi logo publicado em Paris e foi a primeira vez na História que um livro veio escrito 'traduzido do brasileiro'. Isso jogou toda a universidade e os meios institucionais contra ele. Isso deixou uma má-vontade muito grande.

História repetida
Um dos principais críticos do país nessa ocasião era o Álvaro Lins, que escrevia no 'Correio da Manhã'. Ele foi embaixador em Portugal e era amigo de setores oficiais da cultura portuguesa. E ele escreveu muito forte contra Jorge na ocasião. Alguns anos depois, ele reuniu esses artigos em livros e teve o cuidado de atualizar as impressões da hora sobre outros autores, mas não atualizou sobre Jorge. Então ficou como uma obra de referência que o aluno, que está estudando na faculdade, tem acesso e repete. Então temos professores respeitados que escreveram obras de referência depois de Álvaro Lins, que não se deram ao trabalho de reler o Jorge nem fazer uma revisão. Repete que é superficial, cheio de clichês. Ele vai sendo desprezado porque um copia do outro. Isso está mudando ultimamente.”

Eu quero que eles leiam. Se depois achar que é um horror, que achem”

Ostracismo
Tem sempre uma temporada de ostracismo, de dez 15 anos, após a morte do escritor, porque hoje o escritor precisa de entrevista para divulgar o seu livro.

Sem contexto literário
Esse período coincidiu com um momento que a moda dos estudos literários nas universidades americanas, que está chegando aqui. Primeiro houve a moda do politicamente correto. E depois, antes de ela acabar, o que acabou foram os estudos literários. Muitas fecharam cadeiras e se passou para Cultural Studies ou post-colonial studies. Se aborda um autor dentro de um contexto puramente histórico mas tirando o contexto literário – e muitas vezes sem ler o autor. Se seleciona trechos e aqueles trechos vão provar o que eles estão falando. E, assim, para um contador de história, que é o Jorge, que fisga o leitor, o leitor não chega a ser fisgado.”

Contador de histórias
“Em torno dos anos 1970, e eu fui formada nisso, quando as universidades foram formadas pela primazia do texto literário, pela análise estruturalista, então toda a abordagem passou a ser em cima de algo muito sofisticado. A proposta do Jorge não é sofisticada. Ele não tem meandros intertextuais como Clarice Lispector, como Sérgio Sant'Anna. A Clarice foi descoberta pelos feministas e estruturalistas franceses como exemplo máximo do tipo de texto bom de abordar. E o Jorge é o anti-isso. Ele tem uma primazia do enredo, não da intertextualidade. A universidade se desinteressou dele. O pacto que ele estabelece com o leitor não é o de ficar procurando entrelinhas, o pacto é: siga a minha história e abandone se for capaz. E ninguém é.”

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