quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Uma interpretação para 'O homem desvairado', de Nietzsche

[Se não conhece a passagem do filósofo alemão, abra aqui em outra janela para acompanhar - e procure a tradução no meio do texto todo - ou aqui, numa outra tradução.]

O homem desvairado, de lanterna em punho, procura deus e, ante a percepção de que ele tinha desaparecido, acusa os homens de o terem assassinado. Os homens no meio da praça pública e ele, o homem desvairado, teriam matado deus. Os homens da praça e ele, eles, nós. Os homens da praça: praça – o símbolo do centro da cidade, da urbe, da aglomeração, o lugar para onde as pessoas vão saber o que acontece, quais são as novidades. “Markt”, a palavra no original alemão, que quer dizer ainda mercado, feira – lugares de comércio, das trocas, da compra e venda, do mercador, da burguesia, do mundo calculado pela matemática, dos valores, dos preços, do dinheiro. “Der tolle Mensch”: também traduzido como “o louco”, talvez uma relação com o bobo da corte, que era autorizado pelo rei a falar as “verdades” para a corte, sem por isso correr risco de vida. Provavelmente uma antecipação do Zaratustra, do personagem marginalizado, que Nietzsche gostava tanto de usar, que também dizia “verdades”, mas que raramente merecia a credibilidade dos interlocutores, jamais daqueles considerados comuns, seguidores do rebanho. O louco, o homem desvairado, com o candeeiro em punho, procurando não um homem, como Diógenes de Sínope que também andava no meio do povo segurando uma mesma lanterna mesmo durante o dia, mas deus. Os homens da praça, do mercado, caçoam do louco e ele lhes responde a frase: deus está morto. Nós o matamos. Em seguida, parece tomar consciência do alcance do que acabara de falar e se assusta: como foi possível? Como conseguimos? O desvairado, então, enumera metáforas para deus numa tentativa de captá-lo: é o mar, agora esvaziado; o horizonte, agora apagado; o sol, agora sem ligação com a terra. Em seguida, percebe a primeira reação ante a catástrofe que ele tinha percebido: sem o horizonte, sem o sol, para onde devemos ir? Após anos respeitando um caminho pré-determinado, Para que lado ir sem qualquer indicação? Não entraríamos em declínio sem um farol, sem um líder? Mas o que é exatamente declínio? Se não soubermos para onde devemos ir, o que é aclive e o que declive? Qual é a régua? Sem régua, o primeiro medo: estamos no vazio completo? Ficaremos parados à espera de morrermos nós também? Novamente se dá conta do tamanho da atitude, do momento que viviam: como sobreviver após esse ato? Como os homens, como nós conseguimos matá-lo? Como os homens tivemos força, altura, poder, para cometer o mais inacreditável dos atos? Por fim, sente que esse ato, apesar de todas as suas consequências problemáticas, também poderia ser, enfim, uma libertação. Ao olhar novamente para a sua, agora, plateia – os homens da praça, os homens comuns, os homens do rebanho – o homem desvairado percebe o óbvio. Tal ato até poderia ser uma libertação para os homens que haviam sofrido sob o manto dos autoproclamados intérpretes deste mesmo deus, mas tais homens da praça aparentemente não estão preparados para viver com essa pretensa liberdade completa. Esses homens da praça ainda não perceberam o que tinham feito, mas tinham feito. E nessa hora o homem desvairado se descola dos homens da praça por ter percebido as consequências do ato que praticaram, enquanto os demais apenas ficaram impressionados. Atordoado, o homem desvairado vai prestar homenagens ao deus morto em igrejas, como forma de demonstrar como eram anacrônicas esses templos em um tempo em que todos sabiam – mesmo que não admitissem para si – que deus estava morto.

terça-feira, 24 de novembro de 2015

A mesma Torre de Babel

Uma das formas de se interpretar a parábola da Torre de Babel é a dificuldade do entendimento mútuo, a incomunicabilidade intrínseca a essa estranha espécie que é a humana. Na curta passagem bíblica, lemos que os homens sobre a terra se uniram para construir o mais alto dos edifícios, com a intenção, interpretam alguns sábios, de se igualarem a Ele. Deus, não querendo muito ter competidores, resolveu descer do paraíso e zás!, trocou os idiomas falados pelos homens. Como eles não se entenderam mais, a construção foi abortada. Perdidos em linguagens diferentes, os homens se espalharam pelo mundo.

Num primeiro olhar, parece que a sociedade ocidental, aquela que exerce sua hegemonia em quase todos os cantos do mundo nos dias de hoje, conseguiu finalmente retornar a um estado pré-babélico: fala a mesmíssima língua. Todos os povos sobre a terra que participam do jogo sistemático econômico em atuação se expressam no mesmo idioma da eficiência, do lucro, da produtividade. Seja rico ou seja pobre, ou muito pelo contrário, o dinheiro sempre vem em primeiro lugar. Claro que essa linguagem vem travestida de uma outra roupagem. Todos professamos o mesmo discurso de liberdade, de independência, de defesa do comportamento do indivíduo: "Laissez faire, laissez passer", lembra? Está tudo conectado. Todos acordamos que temos direitos e deveres - mas nos esquecemos que alguns com mais direitos que deveres, e vice-versa.

Para as classes-médias globais-liberais é fácil ver essa conexão mundial. No cotidiano, procrastinamos na mesma rede social, bradamos contra os mesmos preconceitos, participamos das mesmas campanhas de conscientização. Em inglês, discutimos as mesmas músicas, reclamamos dos mesmos spoilers das mesmas séries, compramos os mesmos gadgets nas mesmas lojas. Nas férias, viajamos para os mesmos lugares, descobrimos os mesmos destinos, frequentamos os mesmos bares secretos. Nos fins de semana, cozinhamos as mesmas receitas, bebemos as mesmas cervejas artesanais, visitamos as casas de amigos com as mesmas decorações. Reclamamos das mesmas grandes corporações, optamos pelas mesmas ações solidárias, dormimos o mesmo sono dos justos. Riqueza é riqueza, em qualquer canto.

Para conseguir essa hegemonia homogênea, claro, não é assim tão indolor. Sempre há exploração e destruição da terra, da água, do ar, do subsolo, das matas, dos seres viventes. É um jogo que jogamos cotidianamente, tentando fechar os olhos para as suas consequências, nos agarrando na ideia de que temos uma dieta mais balanceada que a de monarcas do período feudal. Mas nos esquecemos que não dá para o planeta aguentar a globalização do padrão de consumo médio de um norte-americano. Não dá nem para ter o padrão de um carioca da Zona Sul.

Os mais pobres, periféricos, menos escolarizados, independentes do sistema, ou simplesmente mais tacanhos de espírito, todos, enfim, neófitos nesse livre circular de capitais sem fronteiras, são obrigados a participar dessa partida global, mesmo que não queiram. Vide os casos dos índios expulsos das suas aldeias para a construção das feias Belos Montes e congêneres que ganharam versões modernas dos espelhinhos, como geladeiras e caminhonetes. Estes são expulsos dos seus modos de viver e viram presas fáceis para as propagandas internacionalizantes, bancadas pela elite sem-fronteiras, que torna tudo a mesma receita de um bolo anódino, cheio de corante, açúcar refinado, farinha branca e gordura hidrogenada. Assim, aumenta(m)-se a venda de carros, o lucro dos bancos, o empreendedorismo "social", o gasto de energia, as obras faraônicas, a ingestão de carne, a construção de enormes condomínios, o desmatamento de florestas, a preocupação sócio-ambiental, as monoculturas de exportação, e, novamente, a exploração, a devastação, a destruição. Tudo parte do mesmo jogo.

Só que no meio da partida, quando nós, os liberais que usamos sacola retornável, nos enganávamos de que essa não era a sociedade perfeita, mas era o melhor que já tivemos - olhe a nossa ciência! olhe a nossa tecnologia! -, zás!, acontece novamente. Voltamos para a Torre de Babel. Descobrimos que o mito da linguagem única era isso: um mito. Pobres periféricos, classes-médias globais, elites sem-fronteiras, percebemo-nos todos no mesmo prédio, temos, em tese, a mesma intenção [nos mantermos aqui, não?] mas descobrimos que não falamos a mesma língua. Temos planos completamente diversos, às vezes antagônicos, para alcançar objetivos nem sempre muito claros para ninguém. Não nos entendemos sobre nada. Não temos um fundamento em comum, aparentemente. Nada que possa servir de corrimão.

Pois como explicar para alguém que não tem um bom transporte público perto de casa, que nunca foi servido por qualquer facilidade para exercer o seu direito constitucional de ir e vir, que ter um carro hoje em dia é contribuir para a destruição do planeta? Como defender para os donos de mineradoras, de empresas de petróleo, fábrica de automóveis, que eles estão acelerando o processo dessa mesma destruição? Como contar para alguém que tem como maior forma de socialização o churrasquinho do fim de semana que a criação de gado para o consumo de carne é uma das principais causas da falta d'água [noves fora a podre política dos políticos podres]? Como dialogar com latifundiários que destroem os aquíferos para plantar a soja que vai alimentar este mesmo gado de vários países ao redor do mundo? Como deixar claro que ninguém é a favor do aborto, ao contrário, mas, sim, a favor das mulheres decidirem o que fazer com os seus próprios corpos? Como mostrar para amigos liberais que reciclar o seu lixo não adianta quase nada num mundo em que há crimes ambientais como os praticados pela Samarco no Rio Doce? Como conversar com um indivíduo que acha que sua religião tem o direito de interferir nas decisões individuais de outras pessoas, como no caso de suas "preferências sexuais"? Como convencer a máquina pública moralista que a guerra às drogas é apenas uma forma de exterminar os pretos, pobres e favelados do mundo? Enfim, como aprender a falar a língua do outro?

Não dá mais para se espalhar pelo mundo, como aconteceu lá com o povo de Deus. Mas também não dá para ficar na mesma torre sem entender o que o outro quer dizer.

Uma certeza, ao menos, se tira disso tudo: A linguagem única, da eficiência, do lucro e da produtividade, não está funcionando.

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

A trajetória do sol, por Nietzsche

HISTÓRIA DE UM ERRO

1.
O mundo verdadeiro passível de ser alcançado pelo sábio, pelo devoto, pelo virtuoso. - Ele vive no interior deste mundo, ele mesmo é este mundo.
(Forma mais antiga da ideia, relativamente inteligente, simples, convincente. Transcrição da frase: "eu, Platão, sou a verdade".)

2.
O mundo verdadeiro inatingível por agora, mas prometido ao sábio, ao devoto, ao virtuoso ("ao pecador que cumpre a sua penitência").
(Progresso da ideia: ela se torna mais sutil, mais insidiosa, mais inapreensível - ela torna-se mulher, torna-se cristã...)

3.
O mundo verdadeiro inatingível, indemonstrável, impassível de ser prometido, mas já enquanto pensado um consolo, um compromisso, um imperativo.
(No fundo, o velho sol, só que obscurecido pela névoa e pelo ceticismo; a ideia tornou-se sublime, esvaecida, nórdica, königsberguiana.)

4.
O mundo verdadeiro - inatingível? De qualquer modo, não atingido. E, enquanto não atingido, também desconhecido. Conseqüentemente tampouco consolador, redentor, obrigatório: Ao que é que algo de desconhecido poderia nos obrigar?...
(Manhã cinzenta. Primeiro bocejo da razão. O canto de galo do positivismo.)

5.
O "mundo verdadeiro" - uma ideia que já não serve mais para nada, que não obriga mesmo a mais nada - uma ideia que se tornou inútil, supérflua; conseqüentemente, uma ideia refutada: suprimamo-la!
(Dia claro; café da manhã; retorno do bom senso e da serenidade; rubor de vergonha de Platão; algazarra dos diabos de todos os espíritos livres.)

6.
Suprimimos o mundo verdadeiro: que mundo nos resta? O mundo aparente, talvez?... Mas não! Com o mundo verdadeiro suprimimos também o aparente!
(Meio-dia; instante da sombra mais curta; fim do erro mais longo; ponto culminante da humanidade; INCIPIT ZARATUSTRA*.)

Trecho de "O crepúsculo dos ídolos", de Nietzsche.

* "Começa Zaratustra".