quinta-feira, 19 de setembro de 2002

Roma

I

Por um bom tempo, a Itália funcionou para mim como um porto seguro. Fui para lá quando minha mulher me deixou, depois de mais de sete anos casados. Tinha entrado num universo paralelo onde só o que eu pensava fazia algum sentido. Fiquei semanas em Roma sem saber o que fazia ali. Mas queria ficar lá. Sentia-me seguro. Sabia que estava longe dos problemas. Longe do Brasil.

Fui levado numa espécie de bar, meio casa de show, com palquinho baixo, e mesas espalhadas por todo o saguão. Reparei na pequena menina de cabelos longos e negros e pele bem branquinha que cantava. Tinha um tamanho domínio da voz que assustava. Ia dos agudos mais doces aos graves quase cavernais. Cantava baixinho, à João Gilberto, ou alto, como uma diva de ópera. De repente, cantou Cartola.

Você a conhece?, perguntei para o meu amigo que me levara. É Maria. Maria. Lindo nome, disse. Brasileira, filha de brasileiros, que viera para a Itália tentar ser cantora.

Ela cantava standard italianos. Todos a aplaudiam. Parecia popular. Tinha carisma. Olhava para a multidão e parecia que era apenas para um. Apenas para mim. Olhos de um negro fulgurante.

Com quem ela aprendeu esse italiano?, pensei comigo. Não tinha sotaque, quase. Você me apresentaria para ela? Meu amigo me olhou. Pude ler o seu pensamento. Queria dizer, O que houve contigo?, ontem era o derrotado, o fim do mundo e hoje, Maria. Ele sorriu. Parecia torcer.

Estava hospedado na casa dele. Ele era o correspondente da revista que escrevia na Itália. Eu havia pedido um tempo para eles. Tudo foi bastante de repente. Não esperava o que minha mulher fez. Nem éramos mais jovens irresponsáveis, para ser usado como desculpa. Nem jovens éramos. Hoje, até conversamos. Percebo que foi até melhor. De uma vez por todas. Sem martírio lento.

Esta é Maria. Olá. Vamos tomar alguma coisa?, sugeri. A nossa mesa era a do canto. Ela não poderia tomar nada muito gelado, me disse. Uísque sem gelo, para o garçom. Dois, olhei para ela, Para acompanhar, disse. Boca grande e vermelha que mostrou todos os dentes brancos.

Tenho que ir, ela disse após terminar o copo, Tenho um trabalho a fazer. Rimos os dois. Havia descoberto tudo sobre ela. Ela estudava na faculdade perto de onde estava. Tinha que encontra-la mais uma vez, pelo menos.

II

A vi correndo debaixo da chuva forte, ao sair da escola de música. Fui na sua direção. Só a alcancei porque ela parou debaixo de um toldo. Como você sabia que eu estaria aqui?, ela perguntou. Não sabia. Havia esperado por alguns momentos, algum tempo, algumas horas ela sair. Vamos tomar alguma coisa? Há um café aqui perto, ela respondeu.

Esperei por ela para pedir algo diferente. Apenas um cappuccino, Vocês têm algo com álcool aqui, Temos, mas misturado com café, Por favor, então. Café, licor e algo mais que não me lembro agora. Delicioso. E forte.

Gostaria de leva-la de volta para o Brasil, disse. Aqui tenho emprego. Eu produzo um show para você, um cd, faço contatos, eu tenho contatos, conheço pessoas, vamos comigo. Ela segurou a asa da xícara, misturou com uma pequena colher, colocou um pouco mais de canela e sorriu para mim. Tudo em ordem. Me deu um pequeno beijo no rosto. Fiquei vermelho. Comecei a mexer no cabelo dela, Quantos anos você tem?, perguntei. Houve um silêncio quando ela disse, Vou sentir saudade da Itália.

III

Ao chegar no Brasil, já havia algum burburinho por parte da mídia especializada sobre uma cantora brasileira que morava na Itália. E que eu a havia descoberto. E muita fofoca. Diziam que estávamos juntos. E não estavam errados. Porém, queria manter essa informação longe. Nada poderia atrapalhar.

IV

Saímos do Café, em Roma, e sugeri irmos para o meu apartamento. Ela sugeriu o dela. Era um pequeno apartamento com uma visão privilegiada da cidade. Havia grandes janelões e quase nenhum cômodo. Você bebe?, ela perguntou. Quase sempre. Conhaque, quente. Queima a garganta. Gengibre?, ofereceu. Não, obrigado. Quero sentir rasgar.

Ela sentou sobre o lençol branco. Havia tirado o casaco pesado. Apenas uma blusa de lã separava-a da nudez. Cheguei mais perto que pude. De joelhos na frente dela. Encostei-me nas suas pernas. Ela abaixou a cabeça.

Quando voltei a mim, já amanhecia. Fomos embora dezesseis dias depois.

V

A primeira coisa que fiz, depois de sair do aeroporto, foi ligar para um amigo meu músico. Chamei um grupo bom, que conhecia e confiava. Mas ela decidiria. Fomos para um estúdio perto da redação da revista. Fiquei encostado na porta durante todo o primeiro ensaio. Parecia que haviam crescido juntos. Os músicos riam. Ela ria. Entendia as improvisações, as mudanças de tom, as brincadeiras, as piadas internas. Falavam uma língua própria. Admirado estava e fiquei.

Só não gostei do baixista, ela me disse. Peguei o telefone, liguei para um outro produtor e exigi um baixista. Na semana que vem, ele confirmou. A banda estava formada em apenas duas semanas. CD ou show primeiro? Por que não gravamos um ao vivo?, ela me disse quando chegamos na minha casa.

Ela era do interior de Minas. Conhecia melhor a Itália do que o Rio. O Rio me lembra muito Nápoles, um misto de mar e montanha, falou na varanda de casa. Víamos a Lagoa. Eu abraçado nela na minha frente. Sentia o cheiro do cabelo. Aquela longa cabeleira negra. Comecei a beijar o seu pescoço.

VI

As semanas que se seguiram não foram calmas. Devia conseguir um lugar, bom para ela cantar, gente para gravar, para criticar, para falar bem e para assistir. Isso tudo, eu sozinho.

A licença da revista ajudou bastante. Tinha tempo, pelo menos. E contatos. Gravamos uma demo e mandei para uma gravadora pequena, de dois camaradas que haviam feito faculdade com o meu amigo de Roma. Eles disseram que se ela cantasse tudo o que a fita mostrava, eles gravariam o Ao vivo.

Havia indicado o teatro de um cara dentre os melhores para freqüentar na cidade, numa coluna minha antiga. Ele ficou me devendo um favor. Não era jabá, apenas troca de gentilezas. O teatro era pequeno, mas confortável. Ótima localização e acústica perfeita.

Escrevi dúzias de releases e centenas de cartas-convites. Enviei para todos os jornalistas amigos e até os que não eram. Os convites, eu mandei para todo mundo que forma a classe dita formadores de opinião, seja lá o que isso quer dizer.

Marquei para uma sexta-feira 13. Para dar sorte, disse para ela. Ela sorriu. Andava nervosa, parecia ansiosa. Insegura?, perguntei. Um pouco. Segurei o rosto dela com ambas as mãos e disse, Você é maravilhosa, escute o que os músicos da sua banda dizem, o que foi que o dono da gravadora afirmou, hein. Ela me beijou.

VII

No dia do show, eu fiquei apreensivo. Pensei que ninguém iria. Que estaria completamente vazio, que havia estragado a vida de uma menina maravilhosa. A havia tirado de Roma, onde ela trabalhava, estudava e trazido para cá, para destruir tudo o que ela era.

E os ingressos só esgotaram na hora do show. Mas a platéia lotou o teatro. A primeira música começava só com a voz dela, ela de preto, tudo sem luz, feixe em cima dela. O show foi só com clássicos brasileiros. Ela conhecia quase tantos quanto eu. E era quinze anos mais nova.

Todo mundo, e não é exagero, cantou durante o show. Fiquei circulando por entre as pessoas, com trabalho de relações públicas. O que está achando?, Como vai?, Quanto tempo?, E ai, ela vale o ingresso?, Dá para o gasto? Todas as respostas, sem nenhuma para comprovar a lei da unanimidade, foram favoráveis. Alguns mais outros nada empolgados. Mas todos gostaram. Ela era realmente ótima.

Por mais que o show não tenha sido concebido como intimista, tornou-se. Talvez pelo teatro pequeno, talvez por ela conversar, quase em todas as músicas, com a platéia, talvez por ela parecer gente, de carne e osso. E ela era linda. Linda com o vestido preto de renda que cobria todo o corpo até o chão. Linda com os cabelos pretos que desciam pelas costas e invadiam o corpo. Linda com os olhos que miravam cada ser humano como se fosse único.

As críticas no dia seguinte foram unânimes, Nascia uma nova estrela da MPB. Maria, a esperança. A nova revelação. Vale a pena conferir. Um espetáculo. Eu escrevi uma também para a revista. Foi a minha volta. Foi a minha chance de recomeçar.

VIII

A partir do show, ela andou com as próprias pernas. Não havia mais a necessidade da minha presença em tudo. Apenas gerenciava, à distância, a sua carreira. O CD estourou sem nenhum esforço. As rádios tocavam sem que eu entrasse em contato. As pessoas pediam, cantavam, amavam-na. Em um ano, ela se transformou na maior cantora que vivia no Brasil.

E em um ano, muita coisa aconteceu.

Após, o show e o CD, ela começou a compor. Queria um outro disco com composições próprias e sem necessariamente usar músicas consagradas. Um repertório mais renovado, como ela disse. Lançar gente nova, descobrir talentos. Essas coisas.

Ela começou a encontrar novas pessoas. Parceiros, músicos, admiradores, ou apenas fãs. Tentava acompanha-la, mas era quase impossível. E, injusto.

O primeiro baixista, que ela não quis no show, compôs algo para ela. Ela adorou. Começaram a se encontrar mais vezes. Logo um dia, ela me chamou para conversarmos. Eu sei, respondi. Gosto muito de você. Eu também, disse. Eu também. Não podemos nos prender. Não podemos ter horizontes pequenos. Não podemos ter limites.

Não. Nada estava bem. Eu a queria como nunca quis nada na minha vida. Fiquei irracional. Cheguei em casa um dia e fiquei duas semanas sem sair. Não queria ver nada porque nada tinha para ser visto. Todas as pessoas me pareciam chatas e sem graça. Só Maria fazia sentido. Só Maria poderia resolver aquilo. Mas ela não resolveu. Não que não quisesse, ela já não podia. Já não me pertencia.

Talvez soubesse desde o início. Ou apenas suspeitasse. Claro que achava que não havia ninguém melhor no mundo para ela do que eu. Mas era apenas ingenuidade e excesso de autoconfiança.

Quando me perguntam, hoje, se eu gosto da Maria, digo que ela faz parte da minha autobiografia. Até mais do que ela pode imaginar. Gosto dela todos os dias, como alcoólatras no AA que se enganam por apenas mais um dia. Refaço meus votos a cada mudança de calendário.

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