as próximas mini-coisas que colocarei aqui são para o concurso de narrativas curtas de um brógui. para saber mais, o endereço é esse: http://www.meguimaraes.com/concurso/
Duzentos anos
Aos duzentos anos de convivência, você vai chegar a conclusão de que estava errada desde o início. Vai perceber que todas as suas preocupações, neuroses e dúvidas eram infundadas. Vai descobrir que todas as minhas palavras eram tentativas de colar uma foto instantânea da minha alma na sua frente. Elas eram impulsivas porque tinham urgência de aparecer, e pareciam exageradas porque não controlamos a nossa vontade. Vai descobrir, tenho certeza, de uma hora para outra, num detalhe meu, ou quando você fizer algo sem pensar. Vai parar onde quer que esteja, numa rua, dentro de um elevador ou na redação do jornal, e, sem nenhum tipo de controle, sem nada que possa impedir, um sorriso brotará no seu rosto. Se você tivesse o controle nesse momento tentaria impedi-lo, mas, mesmo assim, seria em vão. O sorriso explodiria, como acontece com os mais raivosos vulcões. Você terá a certeza que sempre te quis, da maneira como ininterruptamente afirmei. Por enquanto, qualquer tentativa de mudar esse seu pensamento é inócuo. Você não acredita, como costuma dizer. Assim, vivo cultivando, igual a uma plantinha de estimação, essa sua insegurança. Sobrevivo todos os dias com ela. Porém no momento que perceber que tudo era verdade, aquele peso que você carrega bem no meio do seu ser desaparecerá como mágica. E nós continuaremos iguais, inteiramente apaixonados.
Instantes
Num instante, que durou um ou dois segundos no máximo, ele se viu não mais sentado no sofá da sala da casa lendo o jornal, mas deitado na cama de um hospital frio e desconhecido, ligado a aparelhos, com tubos saindo de todos os lados, e logo voltou a si e ficou na dúvida se aquele que estava deitado era ele, e se fosse, quem era o homem que lia o jornal, entretanto, depois daquele momento, concluiu que ele deveria ser os dois, que ele poderia estar em ambos os lugares, não ao mesmo tempo, e ficou boquiaberto, observando a parede branca na sua frente, não mais ali também, agora flutuava dentro da própria cabeça, tinha certeza que já tinha vivido tudo que achava que agora existia pela primeira vez, que o tempo não é necessariamente linear, não, não era a primeira vez, ele já tinha vivido, agora só relembrava como tinha sido, como já tinham dito para ele, quando se está para morrer se re-visita tudo o que viveu, como num cinema, se revê, se transforma novamente no protagonista, também num espectador, e ficou se perguntando se ao chegar novamente no final da vida, se tudo aconteceria novamente, se sonharia mais uma vez a mesma existência, comum, normal, cotidiana, e o fenômeno se repetiria eternamente, e não soube responder porque num baque tinha esquecido por completo dele na cama de hospital e voltou a ler o jornal na sala como se nada tivesse acontecido.
Fotografias
Os dois deitados de barriga para cima estavam ainda ofegantes. Ela, com os olhos fechados, cansada, quase dormindo. Ele, olhos vermelhos insones nas pás do ventilador no teto que giram, giram, giram, num vento quente e abafado. Lembrou de quando a conheceu. De como começou a namorar. Da conversa com o pai dela. Do pedido em casamento. De quando foram transferidos pela primeira vez por causa do trabalho dele. Da gravidez do primeiro filho. Do nascimento da filha. Viu a cor do quarto do menino, a primeira boneca da garotinha, os passeios no parque nos domingos. Ela estava linda na festa do menorzinho. A viagem para o Caribe. A ascensão no trabalho. Ele ensinou as crianças a andar de bicicleta. As viagens a negócio, como ele conheceu quase todo o país. Ela sempre ali, ao lado dele. O reveillon do milênio. A morte do sogro. As rotinas. Os jantares com os amigos. O seu aniversário de quarenta e cinco anos. As promessas não cumpridas. Lembrou de fatos mais recentes, da última viagem sozinho. Torceu o pescoço para o lado e os olhos marejaram. Não sabia como contar para ela que agora tinha aids.
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