terça-feira, 5 de agosto de 2003

Quietude

É incrível como uma simples volta no quarteirão pode fazer com que lembranças escondidas voltem à frente dos nossos olhos. Ou pelo menos aticem a imaginação que andava preguiçosa. Porém, é possível imaginar algo que não tenha ainda sido visto, por isso, o que era impossível de ser lembrado? Talvez não lembramos de muitas das coisas que já vivemos. Ou talvez haja mesmo a tal consciência coletiva que nos faz rememorar de situações que não passamos. Enfim, teremos que passar uma vida inteira para descobrir isso e não tenciono, nem quero ter o desprazer, nem acredito poder desvendar qualquer dos segredos do homem, com “h” maiúsculo.

Quero contar uma história simples de uma volta no quarteirão, como disse no início, sem nenhuma pretensão a atingir conclusões ou moralizar algo ou alguém. Já tinha ido à minha geladeira procurar algo para comer e só consegui achar as grades de sustentação e vasilhames vazios. Decidi atravessar a rua para comer qualquer porcaria que as esquinas travestidas de vendedores nos fornecem. São ambulantes que cumprem uma função social que, por uma série de “regalias” – o não pagamento de impostos, ou de funcionários, por exemplo – eles conseguem atribuir para nós, seres urbanóides, habitantes de bairros de classe-média.

O ambiente é Botafogo, ao lado da estação de metrô, na saída da São Clemente. O local, uma daquelas barraquinhas verdes na quina, uma das únicas abertas. O dia, domingo, é noite, está fazendo um razoável frio para o Rio, uso casaco de moletom, meus óculos no pau do nariz e estou sem vontade de conversar. Peço para o atendente – provavelmente o balconista, o vendedor, o caixa e o dono – um sanduíche que venha o máximo de alimentos, pelo menor preço possível. Ele liga a chapa de aço e pergunta se eu quero me sentar na parte de trás da barraca, já que vai demorar um pouco. Agradeço e digo que não, prefiro ficar em pé.

Vejo ele passar a espátula na chapa que esquenta para tirar a gordura desprendida. Na hora, exatamente como aconteceu outrora com um outro personagem literário ao comer um quitute, aquele ato me lembrou um outro sujeito que fazia um outro sanduíche não sei quando, não sei onde. Apenas raspava a chapa de maneira parecida. Queria tirar todo o óleo antigo e repassava a espátula com cuidado, metodicamente, repetidas vezes. O ato me lembrava um zelo, algo que ele quisesse guardar com carinho, como se fosse importante aquele hambúrguer sair sem muita gordura. Depois, me lembro dele tacar um pouco de óleo de soja novo, e pude sentir o cheiro que evaporou na hora.

Voltei para o presente quando ele colocou a carne e o queijo no fogo para logo em seguida me perder novamente nesse sujeito que trabalhava na minha frente. Quem será que ele era? Um negro, grande, quieto. Será que estava revoltado por trabalhar no domingo? Será que tinha alguma religião? Escutava uma rádio evangélica e essa era uma resposta. Deve se agarrar na igreja como a resposta para todas as suas questões. Deve querer progredir, melhorar de vida, trabalhar no domingo para poder ter dinheiro e pagar um dízimo maior para a igreja. Não dizia nada, e eu olhava para fora, para os táxis estacionados, para a igreja universal do outro lado da rua, para a São Clemente vazia quando uma garotinha de vestes bem pobrezinha se aproximou. Perguntou com bastante dificuldade quanto era o hambúrguer. Ele responde que o simples era apenas um real. Eu olho para a tabuleta de papelão improvisada ao meu lado e vejo que o preço ali não é esse, é maior, mas finjo ignorância. Ele completa afirmando que por um e cinqüenta, viria queijo, tomate, alface e mais um guaraná natural.

A menininha sai e nem reparo quando volta. Já estava no dia anterior, dentro de um ônibus, às sete e meia da manhã, voltando de uma festa, na saída da rodoviária Novo Rio. Ônibus lotado, eu bêbado e cheio de roupas, ao meu lado, uma menina pequena, no máximo sete anos, de óculos de armação branca com detalhes delicados, séria, muito séria. Sua mãe, ou a mulher que estava ao seu lado, comenta algo com ela e ela não responde. Meus olhos querem fechar, mas a menina que franze a testa, com o semblante meio chateado olha para mim com uma certa curiosidade. Não reparei se carregava bolsa, mas considerei que ela não entendia o motivo de eu estar ali, naquela hora, no exato instante que ela chega de viagem com a mãe dela, eu um sujeito bêbado, mal encarado, barbado, ao seu lado dentro do ônibus, uma menininha tão novinha, tão inocente. Será que é sempre assim onde meu pai mora? Eu poderia chutar que ela pensou nisso.

Saltei perto de casa, porém a imagem da pequenina com a testa enrugada não saiu da minha cabeça. Ontem mais um personagem veio fazer companhia a ela. Andava na São Francisco Xavier, na Tijuca e chutava as pedrinhas do chão como a maior diversão do mundo. Até que de uma casa muito antiga – não me surpreenderia se fosse do século XIX – duas mulheres, que juntas passariam dos cem anos, provavelmente mãe e filha, ambas sozinhas, a menor encalhada, saíam pela janela para observar o movimento da rua. Quantas vezes a velhinha tinha visto a mesma cena, a mesma rua, com os mesmo carros? As duas quietas, sem se importar com o tempo ou qualquer dessas necessidades contemporâneas. Observavam a rua porque faziam isso há anos, décadas talvez, porque era uma tradição.

Tradições não se explicam, nem desejam serem explicadas. Voltei para o domingo passado quando a menina decidiu-se pelo hambúrguer de um e cinqüenta. Recebi o meu, paguei o meu e tomei o meu caminho. Sei que não tinha muitos motivos para ter pensado nisso tudo, apenas a idéia foi mais forte que eu. Tomou as rédeas e guiou um pouco a minha vida, sem que eu pudesse nem reclamar.

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