quarta-feira, 27 de agosto de 2003

Icaraí

Antes do início, como marco zero, gostaria de fazer uma espécie de prefácio, uma justificativa, algo que demonstre o motivo de todo o texto e o porquê de seu caráter.

A linha que separa a realidade do que se convencionou chamar ficção se torna, a cada segundo, mais tênue. Todos os dias, somos abastecidos por uma coleção de atrocidades e situações que só eram imaginadas – e realizadas – em livros e filmes ficcionais. Por isso, quando, hoje, alguém chama seu texto de realista, eu o considero, no mínimo, corajoso.

Por outro lado, já que vivemos nessa tal era do inacreditável, inventar algo novo, que fuja de tudo o que já foi dito, ou que aconteceu, virou uma missão complicada, quando não impossível. Normalmente vejo que esses criadores se limitam pelo exagero e transformam suas criaturas em algo que vive muito distante do possível. Não os discrimino, muito pelo contrário, até tenho uma certa inveja, pois não consigo supor tamanha criatividade.

No meu caso, na circunstância desse texto que segue – o meu primeiro e único até agora – optei apenas por tentar descrever exatamente aquilo que vi e senti numa tarde, que deveria ser qualquer, em Icaraí. Talvez algumas pessoas não acreditem no que será dito, como eu não acreditaria. O relato parecerá algo fora do comum, e essa é exatamente o motivo que me fez sentar em frente a esse computador e escrever. Para falar a verdade, aquelas imagens não saem da minha cabeça e, por isso, pensei que se compartilhasse essas sensações, poderia melhorar, um pouco que seja, a confusão que me tomou desde aquela tarde.

Justificado o texto, quero me apresentar para o leitor, qualquer um que seja, para que ele saiba com quem está falando. Meu nome é João Rodrigo da Silva Feitosa. O primeiro nome, João, é homenagem ao meu avô, sargento do exército já na reserva daqueles que assistimos em filmes de quartel. Homem severo, rígido até o extremo, criou meu pai numa educação pior que a espartana.

Meu pai se chama Hamilton da Silva Feitosa, mas todos só o chamam de Feitosa. Seguindo os passos de meu avô, ele também entrou para as forças armadas. Em comparação ao pai dele, meu pai é o que se chama popularmente de uma flor. Entretanto, em absoluto, fica complicado encarar o touro à unha. É daqueles que briga com o tom de voz baixo. Parece que te martiriza mais, uma tortura que não acaba tão rapidamente.

Criei um certo desconforto com toda a família quando não optei pela carreira militar. Lembro que meu pai me chamou diversas vezes para conversar sobre o meu futuro quanto tinha apenas quatorze anos. Ele me pediu para fazer a prova para o colégio naval e eu respondi que não tinha nenhuma vontade de fazer o que ele fazia. Hoje acredito que ele está mais sossegado.

De resto minha família é das mais tradicionais, daquelas que ainda se esforçam para irem na missa aos domingos. Meu pai nunca permitiu que minha mãe trabalhasse e, então, ela teve que se ater apenas aos afazeres domésticos. Dona Miriam, minha mãe, é uma figura calada, quieta, sempre no canto à procura de algo para preencher o seu ócio. Lembro dela fazendo tricô e crochê na poltrona da sala com o sol se pondo depois da montanha que pode ser vista pela janela. Ou deitada na sua cama, de tarde, após o almoço, lendo algum tipo de romance. Aliás, ela lê muito. Acho que vem dela esse meu vício. Ela não tem um autor preferido, que eu saiba, e não faz muita distinção entre a chamada alta literatura e os autores mais populares. Já a vi com Stephen King, João Ubaldo Ribeiro, Sidney Sheldon, Morris West, Fernando Morais, Robin Cook, Carlos Heitor Cony e centenas de outros autores. Temos umas três estantes lotadas de livros de alto a baixo lá em casa. O importante para ela é manter a mente ocupada.

Minha irmã Jaqueline, coitada, tem quinze anos e começa agora a sofrer os efeitos diretos de uma família de cunho conservador. Acho que o meu pai queria vê-la sendo freira ou coisa parecida. É inacreditável a maneira como ele a trata. Não a deixa sair de noite com as amigas, tem horário para tudo, e promove questionamentos absurdos todas as vezes que volta para casa. Ultimamente eu é que comprei um pouco do barulho dela, mas nada ainda muito escabroso. Acredito que vamos ter problemas no futuro.

Eu, bem, como disse, me chamo João Rodrigo da Silva Feitosa. Tenho vinte e três anos, sou formado em ciências contábeis na faculdade do estado e trabalho hoje na secretaria estadual de administração. Cheguei até a passar para a fluminense, mas como moramos em Vila Isabel, resolvi estudar nas redondezas. Assim que acabei o curso, por sorte e coincidência, abriu este concurso público. Fiz a prova e, novamente por sorte, coincidência, e dessa vez por uma promessa da minha mãe para São Judas Tadeu, consegui passar. Ganho razoavelmente bem, mais que a grande maioria dos meus colegas de turma, e moro ainda com a minha família, o que me deixa numa situação bem confortável em comparação aos demais. Comprei um carrinho mil, saio de vez em quando com uns amigos e não sei se ainda tenho namorada. Não depois do que aconteceu em Icaraí.

Ela se chama Lívia e mora em Niterói, em São Francisco mais exatamente. A conheci numa festa de fim de ano que organizamos lá na secretaria. Era uma espécie de churrasco, num sítio, lá para os lados de Itacoatiara e ela foi por ser amiga de uma menina que trabalha no setor de RH. Não sei se devia dizer isso, mas foi uma espécie de amor à primeira vista. Ela é linda. Não tinha idéia do que iria acontecer, mas, por outro lado, era certo, para mim, que ela não era uma qualquer. Por mais idiota que possa parecer, tenho que escrever isso aqui, quando a vi, sabia que a conhecia de algum outro lugar. Não imaginava de onde, de como, de quando, apenas que já a tinha visto. Lívia tem uns cabelos lisos castanhos escuros que iam até quase a cintura e estava extremamente queimada de sol. Quando ela chegou todos os homens se viraram, eu incluído, e marca daí a minha perdição, ou salvação, dependendo do referencial. Lembro do Antunes, o chefe lá do setor, me perguntando, na hora que peguei uma latinha de cerveja, se eu sabia quem ela era. Sua amiga, Amanda, uma lourinha de cabelo queimado, gordinha, bem branca não é o que podemos chamar de mulher bonita, entretanto posso apostar que nunca foi tão paparicada quanto nesse dia.

Em nenhum momento, contudo, tive coragem de ir falar com ela. Fiquei na minha mesa com algumas pessoas, todos casados, com filhos, e eu, o mais novo da seção, me sentindo um pouco fora do meu habitat. Minha participação se resumia a ir buscar cerveja e pratinhos com comida para o tira-gosto. Tinha decidido ir embora cedo porque sabia que da forma como estava a festa, eu não iria me divertir mais que aquilo. Porém – e nessas horas as coincidências me fazem rever meus conceitos – de uma hora para outra o tempo fechou e uma chuva torrencial, típica do verão, desabou. Logo todos ficamos ilhados. Ao saber que eu queria ir embora, Amanda veio falar comigo se eu podia levar Lívia para a casa. Seria caminho, ela justificou. Não pude conter o meu sorriso ao dizer que seria um prazer. Depois de uns quarenta e cinco minutos, como acontece sempre com esse tipo de tempestade, ela deu uma melhorada. Partimos, eu e Lívia, então.

Ao entrar no carro, permanecemos em silêncio. Coloquei um som calmo (provavelmente cardigans) e dirigi com bastante cuidado porque as ruas estavam todas alagadas ou totalmente enlameadas. Quebrei o silêncio pedindo para ela me guiar até chegar na casa dela, já que não era habitué de Niterói. Para falar a verdade, podia citar de cor todas as vezes que tinha ido para a cidade do outro lado da baía. Ela me respondeu que não havia problema, com o tom de voz baixo, porém, me pareceu, bastante segura. Eu adoro mulheres seguras. Não uma segurança petulante, feita para incomodar, ou para medir vontades, mas aquela que sabe exatamente o que vai fazer. Ou, quando tem uma dúvida, é por questões muito amplas e significativas. Nada de “com que roupa eu vou?”, ou “qual a minha cor preferida?”.

Segurava o volante com as duas mãos e me aproximei do pára-brisa para melhor enxergar a estrada que aparecia repentinamente na minha frente e agradeci aos anos que joguei enduro no atari. Logo ela pegou uma flanela debaixo do painel e se ofereceu, sem que eu pronunciasse uma única palavra, para me ajudar a desembaçar o vidro. Eu virei minha cabeça e agradeci com todo o meu rosto sem precisar falar nada. Percebi que ela entendeu e sorriu de volta. Nossa, lembro perfeitamente do sorriso dela e de como ela estava linda naquele dia.

Depois de uns quinze, vinte minutos, entramos em perímetro urbano e a chuva parou por vez. Pareceu que nunca tinha chovido e o sol, que já tinha se posto, deu lugar a um céu estrelado. Dentro de mim eu sentia algo confortável, uma felicidade que não sabia de onde vinha, ou o motivo de existir, só tinha noção que queimava o meu rosto e me dava vontade de pular como uma criança pequena. Estávamos calados, sem pronunciar nenhuma palavra, mas sabia que as nossas sintonias eram as mesmas. Olhei para ela, e ela me olhou e rimos, mais uma vez, só por estarmos ali. Novamente tive a certeza que já a conhecia há muito tempo. “Boa música”, ela disse. O carro parou num sinal de trânsito. Puxei o freio de mão e me virei para ela. Ela fez o mesmo. Dessa vez não rimos.

Dali, antes de leva-la em casa, paramos num quiosque onde tínhamos toda a praia de São Francisco como vista. Não tinha nada demais, mas foi uma das noites mais perfeitas da minha vida. Tudo o que não tínhamos conversado durante o trajeto, foi colocado em dia, em cima do capô do meu carro. A cada palavra que ela pronunciava, descobria que ela era uma mulher maravilhosa. Várias vezes me senti a vontade para poder tocar em determinados assuntos que nunca pude falar com mais ninguém. Outras, percebi o quanto éramos parecidos. A família dela era também bastante conservadora, ela era a filha única e tinha tido uma formação altamente católica. Como eu, tinha lutado contra hipocrisias e preconceitos entranhados na mesa do jantar, ou no almoço de domingo. Porém, atualmente, vivia um momento de relativa tranqüilidade, por ter atingido uma certa independência por causa do trabalho. Tinha terminado letras e dava aulas em alguns colégios de Niterói, assim conseguia tirar uma grana boa.

Deixei-a na frente do seu prédio com um pesar enorme. Não queria voltar para o Rio e sabia que ela também não queria subir para o apartamento. Fui embora quando quase amanhecia e com uma vontade louca de ligar para ela assim que chegasse em casa. Não sei até hoje como dirigi o carro na volta, já que não estava com a cabeça exatamente ali, nem conhecia o caminho. Acho que fui guiado por um instinto que me protegia dos erros.

Para namorar foi um pulo. Voltamos a sair várias outras vezes, e quando me dei conta, já conhecia toda a família dela e era apresentado como “genro” ou o “namorado de minha filha”. O fatídico dia aconteceu uns dois meses depois de nos conhecermos.

Marcamos de ir ver um filme que só estava passando no cinema em Icaraí. Era o “Conto de Verão”, do Eric Rohmer, acho que nunca vou esquecer. Um domingo de céu nublado, num clima agradável, algo em torno das quatro da tarde. Havíamos comprado duas casquinhas de sorvete (eu de morango, ela de chocolate) e começamos a andar na orla só pelo passeio. Era a primeira vez que fazíamos este tipo de passeio, e era a primeira vez na minha vida que andava pela praia de Icaraí. O calçadão estava vazio, com apenas alguns casais que faziam exatamente a mesma coisa que nós. Resolvemos sentar num dos bancos de pedra de frente para o mar, que batia calmamente na areia. Ela sentou de frente para mim, e eu de frente para a água. Comecei a observar as ondas vindo e voltando, vagarosamente. Vinham e voltavam. Molhavam a areia tornando-a mais escura, depois se retiravam, e a água escorria entre cada grão, e a areia clareava, como num ciclo. As ondas vinham e voltavam, vinham e voltavam, vinham e voltavam, quase idênticas. Na minha frente, só o mar, nenhuma alma, nada além da água que vinha e voltava. Fiquei tanto tempo que perdi a noção. Então olhei para o lado e tomei um susto. Vi Lívia, mas ela não era ela. Sim, tinha os mesmos traços, a mesma tez, a mesma cor de cabelo, mas não era ela. Me olhava com a mesma vontade, tinha a mesma intenção, mas já não se vestia como estava há poucos instantes atrás, trajava um vestido antiqüíssimo, provavelmente do final século XIX, com um chapéu de abas longas. Já não sentava de frente para mim, porém de lado, mais recatada, não tinha o sorriso franco, era mais discreta. Já não se chamava Lívia, e eu não sabia o seu nome. Olhei assustado para a orla, e não achei nenhum dos prédios que deveria estar ali. Apenas um sítio ou uma chácara, algo dessa natureza que não consegui identificar de onde estava. Tudo havia desaparecido, todos os carros, todas as pessoas, o banco em que estava sentado, o chão de pedra-portuguesa, o calçamento da rua. Só o mar que vinha e voltava era o mesmo. “O que passa em teus sonhos?”, Lívia, ou a mesma mulher porém com outro nome, me perguntou, “Por que esses olhos tão assustados?”. Não sabia o que responder. Parecia que o que dissesse, me denunciaria e diria que eu não pertencia àquele lugar, nem àquele tempo. Fechei meus olhos com a intenção de deixar todas essas imagens para trás e voltar para a minha realidade, mas, quando os abri novamente, percebi que foi em vão. A primeira coisa que vi, foi um tílburi sozinho passando pela orla com apenas um homem que o dirigia. Lívia, ou a mulher ao meu lado, me inquiriu novamente, e eu apenas abaixei a cabeça e respondi bem baixinho que não havia acontecido nada. Ela se apoiou na pedra que estávamos sentados para poder olhar para o meu rosto e insistiu em perguntar, num português arcaico, o que havia acontecido. Pelo meu lado, eu persisti em afirmar que não tinha acontecido nada e me levantei grosseiramente. Toda a praia deserta, como eu não podia imaginar que pudesse ter acontecido em algum dia. Ela continuou falando que eu não deveria ficar preocupado, que o pai dela gostava de mim, que iria autorizar o nosso casamento. Eu já não conseguia me concentrar no que ela dizia. Tentei entender o que estava acontecendo comigo. Fiquei um tempo em pé, olhando para o mar novamente, as ondas que vinham e voltavam, exatamente iguais às que tinha visto depois do cinema. Elas vinham e voltavam, vinham e voltavam, nada mais era idêntico, apenas aquelas ondas, exatamente iguais, durante séculos gêmeas das primeiras ondas, e a senti me agarrando pela cintura. Fiquei um pouco surpreso e me virei assustado e ela já não era ela de novo. Novamente tinha as mesmas feições de Lívia, porém vestia-se de maneira diferente, uma calça jeans boca de sino, uma camisa florida e tinha o cabelo preso à cabeça por uma fitinha pequena. Eu a empurrei para que se afastasse de mim e me desse algum tempo para pensar. Ela se ajoelhou no chão de areia, “Pode dizer, é outra mulher, não é? Eu agüento, pode dizer”. Atrás dela, casas já apareciam aqui e ali. Um ou outro carro antigo passava na rua. Ela ficou ajoelhada no chão, parecia que chorava, e eu paralisado, estático. Tinha vontade de ir lá, beija-la, mandar, pedir, implorar para que se levantasse, afirmar com toda a minha força que nunca houve outra mulher além dela, mas não tive coragem. Alguma coisa muito maior que eu me segurava no chão. Não conseguia concatenar os pensamentos na minha cabeça, não fazia idéia do que acontecia comigo, conseguia escutar apenas duas vozes na minha cabeça, uma que gritava para que eu fosse embora, que esquecesse tudo, e outra que dizia baixinho para ficar ali, para enfrentar toda a situação, por mais inacreditável que fosse, que lutasse por Lívia, qualquer que fosse seu nome, porque ela era a minha mulher. As duas vozes tomaram toda a minha cabeça e começaram a me sufocar, já não enxergava mais nada, só tinha a noção da existência de ambas as vozes, uma aos berros, outra em sussurros, eu tinha que tomar alguma decisão, tinha que acabar com aquelas vozes, tinha que fazer algo... Abri meus olhos e só avistei meu carro parado na praia e para ele andei apressadamente. Tenho certeza que Lívia, que ela me gritou, só não sei o que disse. Eu tinha que resolver toda aquela situação e fugir foi a única coisa que me passou pela cabeça.

Entrei no carro e assim que dirigi um pouco, voltei ao normal, à minha realidade entre uma piscadela e outra. Assim, sem nenhuma explicação, tão rápido e tão imprevisível como foi a ida. Estanquei o meu carro assim que pude e retornei à praia o mais rápido possível. Quando passei pelo banco, Lívia, obviamente, não estava mais ali.

Passaram duas semanas desde a tarde de Icaraí e eu ainda não consegui entender o que me aconteceu. Não consegui achar nenhuma explicação racional, nem qualquer fato sensato e coerente. Nada. O que me parece mais óbvio é o que é mais difícil de se acreditar. Porém, o que mais me envergonho é do fato de ter sido tão covarde. Fugi de uma situação que não tinha a menor idéia de como ia acabar, só por não ter o total controle. Parece que eu só me sinto confortável quando sei exatamente onde piso. Quando aparece uma surpresa, ou algo fora dos planos, eu corro. Vivo apenas a minha vidinha média, tudo na média, no comum, no meio, nunca explorando o máximo que é permitido. Sempre planejado, dentro de limites, dentro das expectativas. Sou um ser comum, que não brilha diferente, que vai ser esquecido pela vida assim que me for. E não adianta ter outras oportunidades, sempre desistirei, fugirei, nunca vou colocar meu rosto para fora. Viverei sempre na defensiva. Isso é, se eu quiser. Isso é, se eu quiser, claro. Eu posso mudar isso ainda. Vou agora ligar para ela. Nunca mais falei com ela, nem ela me ligou, até hoje. Não tenho a mínima idéia de como as coisas se passaram para ela, nem do que aconteceu. Até para isso não tive coragem. Vou pegar aquele telefone que vejo agora, que está a quatro passos de onde estou agora e vou marcar de me encontrar com ela. Na praia de Icaraí.

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