quarta-feira, 31 de dezembro de 2003

acabei de ver uma placa de carro com os seguintes dizeres: "god creates the man, but simon colt made them equal".

talvez o que mais me assustou aqui no inicio, como um estranhamento antropologico, se me permitem a pseudice, foi a facilidade de se adquirir armas. no supermercado, encontramos rifles - dizem que eh para cacar - por apenas 35 dolares. no minimo, impressionante.

o sujeito que foi me buscar no aeroporto, pediu para eu colocar a minha mala "over this gun". fiz uma cara de assustado e ele, "yeah, this is a gun". exatamente como se dissesse, "o meu guarda-chuva, ora. vc nunca viu um guarda-chuva". depois, descobri que ele tem quinze armas em casa, mas nunca pensou em usa-las para se defender.

e olha que, apesar do bigode e de beber cerveja pelo gargalho ao dirigir, ele foge bastante do estereotipo do americano medio.

o que choca eh perceber que o que o michael moore mostrou no seu doc., nao eh aumentativo de nada. nao houve fantasia para fazer cinema. muito do que ele foi acusado (de falsificar a realidade) pode ateh pesar contra ele, mas como eh impressionante a maneira como ele captou a fascinacao americana por armas.

sigo aqui, esperando que algum dia um sujeito me aponte a arma apenas porque sou brasileiro. e nao, eles nao acham que somos macaquinhos de circo, eles nao acham anada. nao tem a menor ideia de quem somos, o que ateh acho pior.

terça-feira, 30 de dezembro de 2003

aqui, em South Carolina, North Charleston, nao ha nada para se fazer, caso vc nao tenha carro. e ha pouquissimo caso vc o tenha. assim, minhas distracoes se resumimem a ficar dentro de casa, lendo e escutando musica.

retirei dois paragrafos de um dos livros que estou lendo. achei interessante. nao irei destrincha-los. acho que sao auto-explicativos.

"coleridge observa que todos os homens nascem aristotelicos ou platonicos. os ultimos sentem que as classes, as ordens e os generos sao realidade; os primeiros que sao generalizacoes; para estes a linguagem nao passa de um aproximativo jogo de simbolos; para aqueles eh o mapa do universo. o platonico sabe que o universo eh de certo modo um cosmos, uma ordem; essa ordem, para o aristotelico pode ser um erro ou uma ficcao de nosso conhecimento parcial. atraves das latitudes e das epocas, os dois antagonistas trocam de dialeto e de nome: um eh parmenides, platao, spinoza, kant, francis bradley; o outro, heraclito, aristoteles, locke, hume, william james"

borges, o rouxinol de keats, outras inquisicoes.

"wells, inacreditavelmente, nao eh nazista. inacreditavelmente porque quase todos os meus conteporaneos o sao, por mais que o neguem ou ignorem. desde 1925, nao ha publicista que nao opinie que o fato inevitavel e trivial de ter nascido em um determinado pais e de pertencer a tal raca ( ou a tal mescla de racas) nao seja um privilegio singular e um talisma suficiente. vindicacoes da democracia, que se julgam muito diferentes de goebbels, instam seus leitores no mesmo dialeto do inimigo, a escutar o palpitar de um coracao que recolhe os intimos mandados do sangue e da terra. lembro-me de certas discussoes indecifraveis, durante a guerra civil espanhola. uns declaravam-se republicanos; outros nacionalista; outros marxistas; todos, com um lexico de gauleiter; falavam em raca e povo. ate os homens da foice e do martelo revelavam-se fascistas... tambem recordo com certo estupor uma assembleia convocada em repudio ao anti-semitismo. ha varias razoes para que eu nao seja um anti-semita; a principal eh esta: a diferenca entre judeus e nao-judeus parece-me, em geral, insignificante, `as vezes ilusoria, ou imperceptivel. ninguem, naquele dia, quis compartilhar minha opiniao; todos juraram que um judeu-alemao difere enormemente de um alemao. em vao lembrei-lhes que nao outroa coisa diz adolf hitler; em vao insinuei que uma assembleia contra o racismo nao deveria tolerar a doutrina de uma raca eleita; em vao citei a sabia declaracao de mark twain: "eu nao me pergunto de que raca eh um homem; basta que seja um ser humano ninguem pode ser nada pior" (the man that corrupted hadley burg, p. 204)."

Borges, dois livros, outras inquisicoes.
o que colocarei aqui embaixo, foi produzido em papel, a punho, por uma necessidade absurda de fazer tatil e de transformar em realidade a minha memoria. provavelmente parecera bobo (e sem nenhum acento). mas era urgente. e nas emergencias, relevamos um pouco a qualidade dos escritos.
como percebivel, estou sem acentos, por causa dos teclados americanos. como perceptivel, estou em terras confederadas, no sul da america do norte. nada, ou quase nada - porque temos sao paulo e nova iguacu - eh pior. enfim.

algo como uma resenha.

ontem, ao ler o quarto conto de "dublinenses", senti pela primeira vez a fisgada do genio que da ali, atras das costelas, entre a terceira e a segunda.

os primeiros eram de uma brandura que deixavam os olhos correrem e a memoria incolume. apesar de de ja faiscarem com lampejos das tintas dos grandes autores.

(talvez, devesse ter dado maior atencao `a orelha do livro que denuncia que joyce apenas cronicou, sem muita necessidade de exemplificar um inicio, meio, fim)

o primeiro, por exemplo. "as irmas" narra a morte e o funeral de uma paroco catolico do bairro. o conto so demonstra sua razao nas utlimas paginas quando as irmas (freiras e amigas do morto) conversam sobre o falecido. no inicio, declaram todas a admiracao, todo o respeito que possuiam, e como o padre era importante. com o tempo, a conversa descamba para a crueldade, citando morbidamente a fase final da vida do padre, com seus tiques e trejeitos. como se dissesse que na superficie todos mantemos uma capa de animosidade, entretanto ao aprofundarmo-nos dentro de cada alma, o que encontramos nao e nada bonito de se ver.

o segundo conto tambem tem no seu fim o seu porqu^e. tres garotos em idade escolar programam-se para gazetear por um dia. um deles falta e os outros dois andam a esmo por dublin ate que encontram um personagem para la de esquisito. o sujeito e a graca de toda a historia. assim como "as irmas", este sujeito apresenta-se bifacial, porem com visoes muito mais antagonicas e conservadoras que no conto anterior.

o terceiro e' uma pequenina historias ja bastante conhecida. uma garoto, para impressionar uma menina, promete um presente. porem, para consegui-lo, ele necessita do dinheiro do pai que, obviamente, implica o maximo possivel e o impede de atingir sua meta original. a fraqueza deste cointo pode ser exemplificadas pelas belissimas ultimas frases que nao a salvam do lugar-comum: "fitando a escuridao, eu me vi como uma criatura tangida e ludibriada por quimeras. meus olhos queimavam de angustia e odio".

ja o quarto mostra uma menina de dezenove anos dividida entre a sua chance de felicidade (fugir com o namorado marinheiro que aparentemente gosta dela para a argentina) e a obrigacao (ficar em dublin para cumprir uma promessa de cuidar do pai velho e doente que bate nela). apesar de sua extrema infelicidade na irlanda, evelyn - o titulo do conto - se sente culpada por abandonar o pai. apesar deste a maltratar, ela consegue, com um esforco anormal, recordar-se de boas lembrancas, de cenas felizes entre os dois. opta, em detrimento do namorado, ficar e cuidar do pai. a culpa vence a felicidade, ou altruismo vence o individualismo. depende do otimismo de cada leitor.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2003

Porta

Uma fina porta de madeira nos separa. Não toquei a campainha nem tocarei; mesmo assim, ela sabe que eu estou aqui estancado. O máximo que me permito é massagear a maçaneta, ou alisar o comprimento da porta ou sentir o cheiro do verniz. Ela – acredito – faz semelhante.

Se me perguntarem como cheguei aqui, é improvável a certeza. Estou sem norte há três dias, posso jurar sobre bíblias. Desde exatamente quando ela me disse que não poderia vir comigo. O porquê não importa, se foi algo fora das nossas órbitas, algo que é impronunciável, ou que não respeita vontades ou desejos, o que isso vale a pena? A certeza é única e presente e tátil como essa porta aqui.

Desde então ela distanciou-se e em apenas alguns fragmentos de segundos que estivesse ao seu lado, fui grosseiro e egoísta. Não necessariamente por pretensão, apenas porque achava que era o certo ser como fui e agora acho que não era. Ela abriu a porta por instantes, para me ver, para que eu apoiasse sua cabeça e ela chorasse até secar suas águas e eu decidi ir ali na esquina, rapidinho, só vou comprar dois maços de cigarros e volto. Encontrei a porta fechada e eu estou aqui, do lado de fora e só.

Se fosse apenas isso, sei o certo que ela com o tempo entenderia que pequenas situações são passageiras e todo o qualquer que temos certeza um do outro é melhor, para não repetir o maior. Parece que consegui vê-la de relance, num momento de alta concentração, mas ela não mais quer saber que eu existo nesse exato instante. Quer dormir e acordar com uma lembrança.

Toda vez que sua imaginação trai seu raciocínio e fornece minha imagem para ocupar o tempo que temos para gastar até acabar nosso prazo de validade, ela desaba e não pára de desabar até que eu finja que já não existo há décadas e tudo o que ela sonhou nesse ínfimo espaço de tempo anterior faz parte de um lamaçal profundo que não deve ser revirado. Não agora.

Agora estou sentado no chão, jurava (poderia) que ela iria abrir a porta. A surpresa foi quando ela passou um papel por baixo da porta com delicadas três palavras escritas em sua letra infantil: “Espera por mim”.

sábado, 13 de dezembro de 2003

(Espaço em branco)

e - agora - você - me - diz

conversa comigo
eu calo sozinho
para escutar a tristeza tocar lá no fundo
e ecoar.
ou sorrio e rio
para limpar as vermelhas dos seus olhos.

nada sei sobre três meses
com a face do dado na vertical
nada a saber porque não há.

mesmo com a luz apagada
mesmo desligado
sinto falta
e incapaz de dizer qualquer coisa.

volto, eu juro,
com minhas pernas, rosto, boca
intáctil.
volto, eu juro
volto para e por.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2003

Cálice

O lugar não era um qualquer. Se o comparássemos com a nossa realidade, de maneira longe da que aprendemos em antropologia, atestaríamos, sem muita dó, que era atrasado. Entretanto, não sou partidário de tais resoluções finais; principalmente porque podemos sentir que muitas vezes nós, os “evoluídos”, buscamos nesses povos bárbaros as imagens que faltam na nossa pasteurização. E chego até a invejá-los quando produzem artistas –provavelmente nem recebem essa divina alcunha – sem respeito por regras e classicismos; enraizando-se ora numa linguagem, numa estética, e no instante seguinte numa oposta, que renega, que desdiz completamente a anterior, sem para isso ter nenhum peso, nem imaginar que deveria se culpar, por nossos padrões.

Esse era o lugar; povo de pés nos chãos, punhos fortes, colares pelo corpo, regras rígidas. O diário deles é desnecessário detalhar. Basta sugerir que grande parte de suas preocupações era obter alimento: caça, pesca e um pouco de plantio. Dentre estes não havia nenhum domador de encantos sobre-humanos. Mesmo assim, de noites em noites (apenas pela sugestão da coincidência, com luas novas no céu), reuniam-se na oca central e a maior para tomar uma beberagem de ingredientes desconhecidos por qualquer um, apenas o mais velho e o segundo mais velho a conheciam, e esperavam que os antepassados se comunicassem com eles. Exatamente igual ao clichê desse tipo de história.

Como a grande maioria das sociedades desconhecidas, era sexista e gerontocrata. Nessa reunião, apenas homens (nunca crianças, nunca garotos) podiam se sentar em roda, ficar em silêncio à espera da espécie de cantil e do espírito subseqüente. Nunca se soube de alguém que não fizesse contato. Em poucas horas, todos saltitavam desordenadamente, urros desconexos vazavam e as sombras e silhuetas eram visíveis até nas mais nubladas noites.

As mulheres, sabidamente mais sensatas, ficavam todas juntas, se divertindo com histórias umas das outras, com segredos dos maridos, e detalhes dos filhos. Os pequenos, até quando se sentissem pequenos, juntavam-se às mães; depois exigiam conviver com os adultos.

Então, montavam a cerimônia de passagem para a vida adulta. Hipócrita e ilusionista como a grande maioria das que conhecemos; mas também inofensiva para todo o grupo. “E essencial”, diziam os de cabelos mais grisalhos. Consistia – simplistamente – em oferecer os primeiros goles para os novatos. Enquanto não se alterassem, ninguém mais tomava a infusão.

E foi assim durante anos, milênios – nunca possível confirmar. O cotidiano não passava o tempo; histórias se repetiam por todo o sempre, como nomes e números sorteados aleatoriamente. Às vezes chovia, outras se ensolarava. Havia dias quentes e outros mornos. Filhos primaveravam, veraneavam e outonavam. Todos com o mesmo desenho de nariz, distância de um olho ao outro, cor da palma da mão.

Contudo – e o que faz a roda da fortuna girar são as adversativas, aquelas previsíveis que povoam qualquer narrativa, pois senão bastaria tirar fotos dos mesmos pontos cardinais no exato e igual instante durante toda a existência – houve uma oportunidade em que as previsões se enganaram.

Nada o qualificava de maneira diferente dos demais. Nem sua genealogia, nem seu proto-comportamento, nem suas argüições, muito menos suas respostas. Entre todos os que os nativos suspeitavam ter o mesmo tempo de vida, ele apenas figurava. Nem de perto era o mais forte, ou o que se destacava na caça. Asseguro que se não fosse por esse pequeno lapso de comportamento, nunca nem saberíamos quem ele era.

Todos os seus colegas resolveram – como era costume – ingressar juntos na oca matriz. Conforme o tradicional, levaram seus pedidos antes do início de uma das sessões e esperaram cerca de um mês, mesmo que ninguém contasse o tempo, até a próxima lua nova se revelar no céu, para que os adultos aprovassem seus nomes. Já houve raros nomes rechaçados por motivos nunca revelados, para logo depois (duas, quatro, vinte luas?) serem aceitos. Todos da aldeia ou são ou serão adultos, exceções não há.

No tal dia, fila formada antecipando-se à entrada da reunião, tudo perfeitamente dentro do planificado, nenhum nome com ressalva, adentram. A oca, igual a qualquer outra, apenas com dimensões superlativas, não merece descrições detalhadas. Todos os quatro garotos sentam-se na roda, onde os mais recentes situam-se. Aquele que está no grupo há mais tempo, levanta-se apoiado no cajado enrugado de madeira e traz o cálice e o oferece para os meninos. A voz embargada explica que pode demorar alguns minutos, não há motivo para receio, qualquer gota já é o suficiente.

De mão em mão passa a taça como um cachimbo até chegar nas dele. Há menos de um dedo do líquido que seria transparente se não fosse tão verde; ele levanta o sobrolho, o ancião sorri como uma estátua plantada ali com esse intuito, sua mão o encoraja e ele vira e se esbalda. Todos os presentes animam-se e conversam entre si, em poucos instantes, diferentemente do que ele acreditava, já tomavam também a infusão.

Não demora nada e um dos garotos se levanta e começa a dançar ao som de uma música ausente. Os mais velhos se congratulam e os sorrisos imperam. Não demora quase nada e mais outro repete quase as mesmas atitudes; os rostos rasgados e antigos felicitam cada vez mais. O terceiro levanta-se assim que o outro pula pela primeira vez e vai atrás de todos.

Ele, o nosso protagonista, sente-se exótico. Exatamente porque não tem nenhuma vontade de pular, não percebe nada dentro dele diferente; não sentira nenhum gosto além de água com matos amassados, e fica angustiado porque escutou nenhum ancestral pedindo que também levantasse e se comportasse anormalmente. E nesse tempo que ele se analisou, todos os olhos, num misto de interrogações e imposições, voltaram-se para ele e até que ele teve um impulso de se levantar; o que o impediu foi uma necessidade de ser real, de se ater à verdade e de fugir do engano. Assim, permaneceu sentado. O que talvez tenha sido o seu maior erro.

Um dos mais antigos, esquecido que também infringira uma das básicas regras desses eventos ao se embebedar antes que todos se manifestassem, levantou-se e o pressionou com palavras contra a parede que apoiava suas costas. Ele respondeu que seus sentimentos eram os mesmos, não cambiaram nem em gramas; uma voz que ele não identificou (tentavam sobrepor-se umas às outras), mas que o apaziguou por segundos, afirmou que essa era a vontade dos ancestrais. E outra disse que fora errado aceitar o menino, ele ainda não estava preparado, outro pedia que ele fosse exilado, outro que não saísse dali antes de contatar-se. As vozes eram todas e ao mesmo tempo.

Nessa noite, os ancestrais não apareceram para mais que os três recém homens, e ninguém se apercebeu no momento. Pela voz do consenso e do centro distante dos radicais, deixaram-no permanecer na aldeia desde que não confidenciasse exatamente o que acontecia no interior daquela palhoça (como se todas não soubessem). O intuito era fazer com que ele se auto-exilasse, por tamanha vergonha proporcionada aos demais companheiros. Assim que ele preparado estivesse para escutar os espíritos dos ancestrais, novamente deveria pedir audiência e outra vez o julgariam, exatamente como um garoto que era o que ele era.

Contudo, ele não mais se interessou em transformar-se em adulto. Nunca precisou dar um motivo para isso. Pela primeira vez havia um pária, um habitante do submundo; aquele que todos são aconselhados a evitar. Ele não resolveu sair logo de início, porque pensara que as discriminações eram momentâneas. O que, depois de outras milhares de luas de todos os gostos e sabores, percebeu ser eterno. Para todos os aldeões, ele simplesmente não existia, nunca existiu e nunca se soube dele. Pior que um morto que temos saudade, ou um exilado que pode remeter a lembranças e incitar a uma espécie de mártir, ele fora apagado, como fazemos com borrachas e erros nos cadernos infantis.

Nas reuniões seguintes, o que era impensado há algumas semanas atrás, começa a acontecer com freqüência. Alguns moderados não mais conseguem se conectar com os espíritos dos antigos. Apesar de diversas afirmações de que a receita continuava a mesma, não mais fazia sentido. No início, apenas se excluíam num canto e observavam toda a loucura que se apoderava dos demais; com o passar, decidiram não mais freqüentar as reuniões, pois eram ineficientes.

Nosso protagonista não presenciou as primeiras disputas entre territórios. Tinha juntado malas e coragem para um outro lugar para viver e nunca mais foi visto por aqueles rincões. Os primeiros desentendimentos logo se avolumaram e em poucas luas, a vila estava mapeada ao meio e depois em cinco pedaços. Cada um com o intuito de ser maior e melhor.

Não se conhece o final dessa história. Apenas que tal civilização, como a conhecíamos, desapareceu sem deixar muitos vestígios. Um ou outro pedaço de memória carcomida pelo tempo.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2003

vícios

o mais curioso sobre a insegurança
é que ela vicia.

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Amarram-me os olhos
com vendas cegas
dentro de um avião blackout
abrem a portiola e

Depositam-me mãos
ambas em minhas costas
- o vento zunindo lá fora -
e, só, empurram.

Isolo-me sozinho
no meio de coisa alguma
inconsciente sobre minha rota
com uma certeza apenas

Restam-me incontados
poucos instântaneos
congelados e derretendo
com o solo aumentando de tamanho.

terça-feira, 2 de dezembro de 2003

O homem que escolheu escrever tudo para todos.

Não, não é importante apresentá-los. O que vale saber é que ele – quem quer que seja – se propôs a um destino absurdo, irreal. Talvez incentivado por um ou outro filósofo ainda na adolescência (entre dois chopes, provavelmente), ou numa leitura descuidada de algum autor mais ou menos relevante. Resignou-se em casa e repetiu para si mesmo durante dias para ver se acreditava – coisa complicada: deveria escrever algo que fosse tudo para todos. Exatamente isso, sem exagero ou ataques falsos de modéstia. Ignorou que vivemos fragmentados ora em ruas, ruelas, ora em avenidas e até mesmo em rodovias, e gritou a plenos pulmões de fronte colada num espelho que iria escrever essa mensagem.

Não, não deveria ser nada religioso, pois considerava a religião apenas um dos aspectos de sua narração. Começou a enumerar critérios para sua missão e podemos copiá-los aqui. Ele anota: “devo ser interpretado pelo leigo e pelo cristo. Pelo que perdoa e pelo que fala. Pelo velho e pelo mendigo. Devo corresponder a verdade para a mulher e para aquele ali que enxergo dessa sacada. Para o transeunte e o paciente. Devo ser indispensável para o crente e para o pobre, devo ser a voz para o conhecido e para a pedra no caminho, devo...”.

Não, ele não se iludia em atingir todas essas propostas. Ele tinha a certeza; mais dura que pedras de gelo do norte do Canadá. Para o leitor mais acostumado com as ditas realidades cotidianas, que até agora acha que esse sujeito é louco (só e apenas), podemos confidenciar, já que não mudará o desenrolar de coisa alguma, que o sujeito dessa história não produzia nada para ninguém. Rolava de um lado para outro na cama com esse teorema afixado, que o espetava atrás dos olhos e dos ouvidos de cinco em cinco segundos, como se fosse um pequeno alfinete.

Não havia um pingo de escrota pretensão por trás dessa absurda idéia. Ele pensava em submergir tão profundamente dentro de si mesmo, como num transe, como um mergulhador de campos de petróleo, onde nenhum outro espírito jamais pisou e apenas descrever em altas e boas letras o que ele via e sentia. Queria fundir-se com todas as verdades e se transformar na única, isolada, solitária. O porquê de ser ele, e não outrem, não me pergunte, não faço a mínima, assim como você. Talvez, como citado parágrafos atrás, por (más) influências. Mas, quem escuta e não se empolga a fazer algo que não quer fazer, apenas porque naquela hora parece que é o sentido absoluto?

Não aparecerá ninguém para responder, tenho certeza. Fora alguns idiossincráticos, ou apegados em dogmas, os que não se incluem como pessoas físicas e mutantes. E, no caso específico dele, nada o impedia de se alvitrar o absurdo. Sentiu como numa obrigação, queria porque era esse o seu porto final. Recusaria todas as facilidades, queria rasgar a carne e deixar transbordar o sangue vermelho e viscoso, enxergar a única novidade, ou aquilo que abarcaria todas as outras, anunciadas como novas pela indústria publicitária que nos envolve desde o mais íntimo umbigo.

Não pense que ele desistiu logo no início. Pelo contrário, se fosse essa a minha intenção, poderia descrever o seu respirar depois de cada retorno à superfície. Entretanto, eles não diferiam muitos uns dos outros. Colecionou uma galeria de resultados inoperantes e de teses absurdas e nati-mortas. Litros de soluções atiradas literalmente ao léu. No início, e então poderemos presenciar seu improvável único erro crasso de cálculos, tendeu a escrever um grande romance. Setecentas páginas, esse era o número que circundava sua cabeça como um astro menor em torno de sua estrela de predileção. “Lembrai dos clássicos”, repetia sozinho.

Não passou de poucas palavras – como era dispensável dizer. De maneira mais que óbvia, ao reler seus rabiscos mal datilografados – pois era péssimo com máquinas – enxergou suas diferenças e defeitos que pulavam como milho de pipoca. Ele desenvolveu uma técnica, uma razão, para poder comparar e saber a eficácia de seus produtos. Fazia perguntas aleatórias para o papel e procurava respostas diretas, que não envolvesse nenhuma linguagem figurada. Nada. Não conseguiu nem uma quinta parte das respostas de maneira satisfatória. Foi então que ele adentrou o portão da literatura.

Não que ele também não tencionasse a isso: desde sempre a desejou quão um sedento do deserto a um copo, um único jarro de água doce. No entanto, para abarcar a todos os per ambulantes, como era esse seu deus torto e capenga, subestimou os corações de grande parte dos leitores. Percebeu nesse milésimo instante – já devia ter próximo dos quarenta anos – que se ele escrevesse tudo para todos, não haveria uma só alma penada que não entendesse, pois seria mais transparente que o ar do campo. Mesmo aqueles desacostumados em tratar com as letras, ou aqueles que não tiveram essa opção e (na opinião de alguns) privilégio.

Não, ele não retornou à loucura de escrever milhares de páginas. Resignou-se a uma pequena novela. “Cento e poucas páginas”, podia ecoar em sua casa de paredes brancas e desnudas. Se informo agora sobre seu habitat, o faço para aqueles que ainda não crêem numa existência longe da ideal. Retratava seu desespero frente ao inevitável, à sua total incapacidade de escrever uma pequena história (talvez com “h” maiúsculo) que não sofresse de esquizofrenia.

Não havia a menor possibilidade de escrever tal narrativa na qual embarcassem gamas das mais complexas e contrapontos das mais absurdas distâncias em muitas páginas. E cento e poucas páginas se transformaram num réquiem incessante; mesmo se ele se concentrasse além do normal. E percebeu que início meio e fim também não seriam suficientes – mesmo implorando para uma musa inspiradora qualquer. E ele resolveu sossegar, pois já era noite e estava cansado.

Não pense você, senhor leitor (mesmo que eu duvide que o haja), que eu fui literal; pelo contrário, fui literário. Ele, nosso protagonista, já está velho aqui, ao final da segunda página. Posso afirmar para cada um de vocês que a vida dele não está condensada aqui, está por inteiro. Como tantos outros personagens reais oriundos das imaginações de outros autores (estes sim, com relevância para que seja indispensável que o leiam), este não viveu muito além desta página.

Não há nenhum problema em adiantar o final dessa vida. Porque sabemos, uns desejosos, uns desprezando, outros mortos de medo, que sempre atingimos a mesma meta, uma hora ou outra. E foi exatamente então, já com setenta e alguns anos, que ele se perdeu e se achou no mundo da poesia. Pela primeira vez em sua curta vida tinha um assunto que seria comum, para todos, seria a verdade para todos.

“Não, não seria justo para aqueles pequenos”, e retornou ao marco inicial; com certeza por um julgamento pessoal e intransferível. Tinha tudo e agora não tem nada. Bastava que elucidasse, ele, que vivera tanto dentro de si, que tinha todos os mecanismos para se autodescobrir, o que era o final da vida, o que passa na frente de suas lentes oculares no ínfimo entre o tudo e o nada. Mas não, não, tem-se que fazer um juízo de valor; foi contrário a uma dica que dizia não ser possível ao criador ter moral sobre sua própria obra.

Não seguiu adiante o episódio da poesia. Por motivos diversos que podem ser resumidos, sem querer por isso, abarcar o real pretexto; ele ficou com receio de lembrar do episódio das crianças, tão a contra-ponto de sua vida que visivelmente findava-se.

Não tentou outras formas de literatura, apesar de freqüentar todas conhecidas até o presente momento muito bem. Decidiu cuspir palavras no papel higiênico que ficava em cima da mesa de madeira de lei na sua cabeceira. Assim, como acontecera no início dos tempos, pensou em neologizar, na maneira alemã; mas seu tempo escoava e cobrava-lhe impostos severos, e então preferiu exigir menos de si. Optou por palavras longas, depois palavras de significado obscuros, de cores estranhas, de gostos adocicados e chegou a apenas a duas e duvidou:

Não e sim. Já era o último dia para a sua morte e ele sabia, e todos sabiam e todos sabem agora. Ele tinha que decidir entre as duas mais importantes, àquelas que guiaram sua vivência, como um jóquei faz com um alazão. Um lado ou outro, sem muro para separar, antagonismos explícitos e embaçados quão um boxe de banheiro depois de uma ducha fervendo. Os limites se entrelaçavam exatamente e ele segurava a caneta logo acima do papel para que pudesse escrever o seu último suspiro, a que todos desejam, ao definitivo, ao supremo, e nada. Silêncio, branco, nenhuma palavra foi dita, escrita, ou mesmo copiada. O papel pareceu intocado como sempre foi e sempre será. O homem que se propôs a escrever tudo para todos, decidiu esperar a escolher.
num estalo silêncioso, descobri que talvez o prazo de validade seja a única coisa que dê sentido para todo o resto. porque, por estragarmo-nos, relevamos aquilo que não é realmente importante. e procurando, estaremos, algo com mais profundidade, e que queira dizer mais e melhor.

claro, subjetivismos à parte.

assim, escrevi esse troço (pseudo)neo-concreto num papel, porque não tinha pc debaixo das digitais:

Prazo de validade

o prazo de validade
do homem - do amén - do também
da união - da decisão - da comunhão
da amizade - da idade - da cidade
da vida - da lida - da querida
da dor
do amor
do sabor
da textura
da finura
da pura
da cura
da jura
Se tivéssemos uma bula
seria fácil
- x -

a carne nasce, avermelha-se, apodrece e se joga fora.
o fim releva
nublina o meio
a certeza da não eternidade
dá um sentido
mas e o eterno instante? se repete
complicando os cálculos e as deduções
a eternidade não tem prazo
porém validade