Cálice
O lugar não era um qualquer. Se o comparássemos com a nossa realidade, de maneira longe da que aprendemos em antropologia, atestaríamos, sem muita dó, que era atrasado. Entretanto, não sou partidário de tais resoluções finais; principalmente porque podemos sentir que muitas vezes nós, os “evoluídos”, buscamos nesses povos bárbaros as imagens que faltam na nossa pasteurização. E chego até a invejá-los quando produzem artistas –provavelmente nem recebem essa divina alcunha – sem respeito por regras e classicismos; enraizando-se ora numa linguagem, numa estética, e no instante seguinte numa oposta, que renega, que desdiz completamente a anterior, sem para isso ter nenhum peso, nem imaginar que deveria se culpar, por nossos padrões.
Esse era o lugar; povo de pés nos chãos, punhos fortes, colares pelo corpo, regras rígidas. O diário deles é desnecessário detalhar. Basta sugerir que grande parte de suas preocupações era obter alimento: caça, pesca e um pouco de plantio. Dentre estes não havia nenhum domador de encantos sobre-humanos. Mesmo assim, de noites em noites (apenas pela sugestão da coincidência, com luas novas no céu), reuniam-se na oca central e a maior para tomar uma beberagem de ingredientes desconhecidos por qualquer um, apenas o mais velho e o segundo mais velho a conheciam, e esperavam que os antepassados se comunicassem com eles. Exatamente igual ao clichê desse tipo de história.
Como a grande maioria das sociedades desconhecidas, era sexista e gerontocrata. Nessa reunião, apenas homens (nunca crianças, nunca garotos) podiam se sentar em roda, ficar em silêncio à espera da espécie de cantil e do espírito subseqüente. Nunca se soube de alguém que não fizesse contato. Em poucas horas, todos saltitavam desordenadamente, urros desconexos vazavam e as sombras e silhuetas eram visíveis até nas mais nubladas noites.
As mulheres, sabidamente mais sensatas, ficavam todas juntas, se divertindo com histórias umas das outras, com segredos dos maridos, e detalhes dos filhos. Os pequenos, até quando se sentissem pequenos, juntavam-se às mães; depois exigiam conviver com os adultos.
Então, montavam a cerimônia de passagem para a vida adulta. Hipócrita e ilusionista como a grande maioria das que conhecemos; mas também inofensiva para todo o grupo. “E essencial”, diziam os de cabelos mais grisalhos. Consistia – simplistamente – em oferecer os primeiros goles para os novatos. Enquanto não se alterassem, ninguém mais tomava a infusão.
E foi assim durante anos, milênios – nunca possível confirmar. O cotidiano não passava o tempo; histórias se repetiam por todo o sempre, como nomes e números sorteados aleatoriamente. Às vezes chovia, outras se ensolarava. Havia dias quentes e outros mornos. Filhos primaveravam, veraneavam e outonavam. Todos com o mesmo desenho de nariz, distância de um olho ao outro, cor da palma da mão.
Contudo – e o que faz a roda da fortuna girar são as adversativas, aquelas previsíveis que povoam qualquer narrativa, pois senão bastaria tirar fotos dos mesmos pontos cardinais no exato e igual instante durante toda a existência – houve uma oportunidade em que as previsões se enganaram.
Nada o qualificava de maneira diferente dos demais. Nem sua genealogia, nem seu proto-comportamento, nem suas argüições, muito menos suas respostas. Entre todos os que os nativos suspeitavam ter o mesmo tempo de vida, ele apenas figurava. Nem de perto era o mais forte, ou o que se destacava na caça. Asseguro que se não fosse por esse pequeno lapso de comportamento, nunca nem saberíamos quem ele era.
Todos os seus colegas resolveram – como era costume – ingressar juntos na oca matriz. Conforme o tradicional, levaram seus pedidos antes do início de uma das sessões e esperaram cerca de um mês, mesmo que ninguém contasse o tempo, até a próxima lua nova se revelar no céu, para que os adultos aprovassem seus nomes. Já houve raros nomes rechaçados por motivos nunca revelados, para logo depois (duas, quatro, vinte luas?) serem aceitos. Todos da aldeia ou são ou serão adultos, exceções não há.
No tal dia, fila formada antecipando-se à entrada da reunião, tudo perfeitamente dentro do planificado, nenhum nome com ressalva, adentram. A oca, igual a qualquer outra, apenas com dimensões superlativas, não merece descrições detalhadas. Todos os quatro garotos sentam-se na roda, onde os mais recentes situam-se. Aquele que está no grupo há mais tempo, levanta-se apoiado no cajado enrugado de madeira e traz o cálice e o oferece para os meninos. A voz embargada explica que pode demorar alguns minutos, não há motivo para receio, qualquer gota já é o suficiente.
De mão em mão passa a taça como um cachimbo até chegar nas dele. Há menos de um dedo do líquido que seria transparente se não fosse tão verde; ele levanta o sobrolho, o ancião sorri como uma estátua plantada ali com esse intuito, sua mão o encoraja e ele vira e se esbalda. Todos os presentes animam-se e conversam entre si, em poucos instantes, diferentemente do que ele acreditava, já tomavam também a infusão.
Não demora nada e um dos garotos se levanta e começa a dançar ao som de uma música ausente. Os mais velhos se congratulam e os sorrisos imperam. Não demora quase nada e mais outro repete quase as mesmas atitudes; os rostos rasgados e antigos felicitam cada vez mais. O terceiro levanta-se assim que o outro pula pela primeira vez e vai atrás de todos.
Ele, o nosso protagonista, sente-se exótico. Exatamente porque não tem nenhuma vontade de pular, não percebe nada dentro dele diferente; não sentira nenhum gosto além de água com matos amassados, e fica angustiado porque escutou nenhum ancestral pedindo que também levantasse e se comportasse anormalmente. E nesse tempo que ele se analisou, todos os olhos, num misto de interrogações e imposições, voltaram-se para ele e até que ele teve um impulso de se levantar; o que o impediu foi uma necessidade de ser real, de se ater à verdade e de fugir do engano. Assim, permaneceu sentado. O que talvez tenha sido o seu maior erro.
Um dos mais antigos, esquecido que também infringira uma das básicas regras desses eventos ao se embebedar antes que todos se manifestassem, levantou-se e o pressionou com palavras contra a parede que apoiava suas costas. Ele respondeu que seus sentimentos eram os mesmos, não cambiaram nem em gramas; uma voz que ele não identificou (tentavam sobrepor-se umas às outras), mas que o apaziguou por segundos, afirmou que essa era a vontade dos ancestrais. E outra disse que fora errado aceitar o menino, ele ainda não estava preparado, outro pedia que ele fosse exilado, outro que não saísse dali antes de contatar-se. As vozes eram todas e ao mesmo tempo.
Nessa noite, os ancestrais não apareceram para mais que os três recém homens, e ninguém se apercebeu no momento. Pela voz do consenso e do centro distante dos radicais, deixaram-no permanecer na aldeia desde que não confidenciasse exatamente o que acontecia no interior daquela palhoça (como se todas não soubessem). O intuito era fazer com que ele se auto-exilasse, por tamanha vergonha proporcionada aos demais companheiros. Assim que ele preparado estivesse para escutar os espíritos dos ancestrais, novamente deveria pedir audiência e outra vez o julgariam, exatamente como um garoto que era o que ele era.
Contudo, ele não mais se interessou em transformar-se em adulto. Nunca precisou dar um motivo para isso. Pela primeira vez havia um pária, um habitante do submundo; aquele que todos são aconselhados a evitar. Ele não resolveu sair logo de início, porque pensara que as discriminações eram momentâneas. O que, depois de outras milhares de luas de todos os gostos e sabores, percebeu ser eterno. Para todos os aldeões, ele simplesmente não existia, nunca existiu e nunca se soube dele. Pior que um morto que temos saudade, ou um exilado que pode remeter a lembranças e incitar a uma espécie de mártir, ele fora apagado, como fazemos com borrachas e erros nos cadernos infantis.
Nas reuniões seguintes, o que era impensado há algumas semanas atrás, começa a acontecer com freqüência. Alguns moderados não mais conseguem se conectar com os espíritos dos antigos. Apesar de diversas afirmações de que a receita continuava a mesma, não mais fazia sentido. No início, apenas se excluíam num canto e observavam toda a loucura que se apoderava dos demais; com o passar, decidiram não mais freqüentar as reuniões, pois eram ineficientes.
Nosso protagonista não presenciou as primeiras disputas entre territórios. Tinha juntado malas e coragem para um outro lugar para viver e nunca mais foi visto por aqueles rincões. Os primeiros desentendimentos logo se avolumaram e em poucas luas, a vila estava mapeada ao meio e depois em cinco pedaços. Cada um com o intuito de ser maior e melhor.
Não se conhece o final dessa história. Apenas que tal civilização, como a conhecíamos, desapareceu sem deixar muitos vestígios. Um ou outro pedaço de memória carcomida pelo tempo.
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