sábado, 20 de novembro de 2004

Da alvorada ao crepúsculo

Há anos atrás, um grande amigo meu se repetia ao me contar sobre um filme que ele havia gostado muito e que eu deveria ver. Achava curioso porque ele não é desse tipo que cometeu o erro de fazer comunicação, logo não é viciado na tríade: livros, cinema, música.

Mais exótico ainda foi quando uma menina que era a definição de jornalista tradicional (não o tipo hype) veio me confidenciar que, de todos os vários filmes que ela assistira, este, o mesmo dele, era o seu preferido.

Por anos fiquei com essa pulga, não só atrás de minha orelha, mas percorrendo todo o trajeto entre um ouvido e outro. Até que ano passado (não estou muito certo quanto à data) assisti à “Antes do amanhecer”, de Richard Linklater.

Esqueça o caráter cinematográfico e vamos falar de outra coisa mais inominável. Este diretor americano sofre uma forte influência do teatro, isso fica claro em cinco segundos de filme. Este longa em questão, por exemplo, não apresenta outra situação dramática além de um diálogo entre os dois protagonistas, um americano e outra francesa, que decidem passar uma noite em Viena por estarem viajando sozinhos pela Europa. Logo, não é cinema da maneira como o Batata gosta ou como estamos todos acostumados. Mas olvidemos disso por alguns instantes.

Antes, desse mesmo moço, já tinha visto, revisto e gravado em VHS “Waking Life”, uma animação surrealista, capaz de proporcionar dores de cabeça nas vistas mais sensíveis. E, também, que não é nada além de algumas esquetes teatrais filmadas e animadas por programas de edição de imagem. Vi outro, depois, chamado “Subúrbia”, este uma adaptação quase literal de uma peça ganhadora de alguns prêmios em Nova Iorque.

Então, o que torna esse diretor diferente de todos os outros, se não considerarmos seu caráter de ribalta? Seus diálogos. São excepcionais. Abordam assuntos completamente inéditos em qualquer cinematografia contemporânea (talvez somente na verborrágica francesa). Em “Waking Life”, por exemplo, há conversas inteiras sobre filosofia, de botequim, ou mais séria, existencialista, ou qualquer outra que eu não tenho a menor idéia de qual corrente de pensamento.

Mas, talvez isso seja o maior problema da animação. Falta conexão entre os pequenos curtas que formam o longa e entre a história toda e o espectador. Fica um sarapatel de nego que, se você pestanejar, perde alguma coisa. E, também, há um calhamaço de informações que tende a ser muito enfadonho para aquele que não estiver no clima.

OK, “Antes do amanhecer” não tem nenhum desses cacoetes. Como dito, o casal passa a noite na Áustria e, claro, conversam sobre os assuntos mais diversos possíveis. Criam-se situações para os dois passarem, mas o que importa é o diálogo. Na época, ambos são jovens, esperançosos e, o mais marcante, românticos até o último biquinho dela e petulância dele. Era isso que o meu amigo e a menina mais haviam gostado, óbvio. Ambos os meus chegados eram (são) visionários, imaginam um mundo que pode ser melhor, e neste mundo, claro, todos já terão encontrado suas caras-metade.

Talvez por ter assistido ao filme numa época diferente que eles, muito mais velho, ou por ser um cético ao natural, via naquela longa conversa, uma sucessão de sonhos impossíveis de se realizarem ou simplesmente cinematográficos demais para mim. Simplesmente o filme não dispunha dos códigos de comunicação necessários para falar comigo, era de uma felicidade eterna (mesmo que durasse apenas uma noite) que eu não cria.

OK dois. Nove anos depois, o diretor, incentivado sei lá pelo que, resolve filmar uma seqüência. Como em toda produção que é retomada décadas depois, senti um cheiro forte de mercantilismo barato no ar. Entretanto, fiquei curioso em saber como andavam as duas personagens com quem em outra oportunidade passara uma noite junto.

E foi então que “Antes do pôr-do-sol” me fisgou por completo. Se antes o americano e a francesa eram sonhadores, agora eles são tão ou mais céticos que eu. Por vias diversas (ele através de um casamento frustrado, ela por inúmeros relacionamentos falidos), ou por caminhos em comum, (os dois não terem se encontrado na data combinada), ambos haviam perdido a esperança no romance como algo perfeito e sem falhas.

Antes, contudo, percebemos que os dois protagonistas são “arquétipos” das personagens feminina e masculina. É claro que os dois não são exatamente iguais a quem assiste ao longa. Mas é impossível não se identificar com alguns detalhes de comportamento de ambos. Ela fala exageradamente, ele quer colocar piadas em suas vírgulas. Ele queria estar rodando o mundo numa motocicleta, ela mente sobre a memória que tem do último encontro deles. Ela faz alguns planos para tentar se manter em pé, ele quer apenas acordar mais um dia e continuar. Ela chega às lágrimas falando de como se lembrava da noite em que passaram juntos, ele fica desesperado quando ela, anteriormente, fingira não se recordar de “detalhes”. Ele acha que está jogando a vida fora, ela precisa de relacionamentos à distância porque não suporta um homem por muito tempo.

O que me deu alguma esperança (em mim mesmo, deixemos claro), foi que, até os mais incrédulos, e orgulhosos por isso, podem se pegar num lapso de otimismo. (Quem não viu o filme, pare de ler aqui). Ao final, ele vai deixá-la em casa, ela começa a dançar para ele. Ele tem que pegar um avião para ir embora de Paris, mas fica sentado. Ela lhe dirige a palavra: “Você vai perder o avião”, ele dá de ombros. Fim. Não se sabe, à exatidão, se ele sairá dali em segundos, ou se ignorará sua vida do outro lado do Atlântico na tentativa de ser tudo aquilo prometido pela imaginação, pela sua criação, pelos seus sonhos. Antes, ele próprio sugerira sutilmente que, de acordo com sua decisão, com o que você achasse que fosse acontecer, você poderia ser classificado ou como cético ou como romântico. E ele fica. Claro.

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